Valor Econômico
Resta à oposição contestar legado com igual
veemência
Repousa nos escaninhos do Tribunal de
Contas da União um relatório sobre a sonegação de informações por parte do
Exército, da Marinha e da Aeronáutica relativo a compras de equipamentos e
serviços no exterior. Acumulam-se R$ 2 bilhões nas contas a serem auditadas.
Desde o início dos anos 1990, quando foi retomado o acordo militar com os
Estados Unidos, denunciado por Ernesto Geisel em 1977, que o tribunal não
registra uma prestação de contas completa dessas compras, cujo carimbo da
segurança nacional dispensa de licitação. O relatório do TCU sugere que o não
atendimento às informações requeridas incorrerá em penalidades que vão de
multas ao afastamento dos responsáveis pelas despesas e seus superiores,
passando pelo arresto de bens.
É a contraface nacional da pressão de deputados democratas nos Estados Unidos. Eles tentaram condicionar as transações do orçamento do Pentágono com as Forças Armadas brasileiras a um compromisso democrático. Incluem-se nessas transações desde o crédito para a aquisição de equipamentos a cursos para oficiais passando pelo fornecimento a projetos sensíveis como os da vigilância das fronteiras. Seja pelo histórico dos anos 1970, quando o Brasil alegou ingerência em sua política de direitos humanos para romper o acordo militar, seja porque o Brasil, no momento, ocupa a presidência do Conselho de Segurança das Nações Unidas, os parlamentares americanos recuaram do veto.
O morde e assopra do governo Joe Biden tem
seu derradeiro capítulo na nota da embaixada americana que, numa frase sobre o
sistema eleitoral brasileiro, “um modelo para as nações do hemisfério e do
mundo”, resumiu o descrédito com o qual os ataques do presidente Jair Bolsonaro
às urnas eletrônicas foram recebidos lá fora. Este descrédito despertou do sono
profundo as instituições locais.
STF, Senado, ex-presidentes do TSE,
procuradores federais, diplomatas e servidores da Abin saíram em defesa do TSE,
mas a reação mais consequente veio mesmo da Polícia Federal. Não apenas pela
nota das três associações de delegados e peritos criminais em defesa do sistema
de votação que, Bolsonaro, distorcendo um inquérito da corporação, tentou
enxovalhar. Mas, principalmente, pela ação de ontem em cima da Companhia de
Desenvolvimento do Vale do São Francisco. Ao focar numa das principais bases de
operação dos rolos do Centrão no Orçamento, a Polícia Federal enfraquece o
principal eixo de sustentação de Bolsonaro na República, o presidente da Câmara
dos Deputados.
O momento em que a operação foi deflagrada
diz quase tudo. O esquema investigado, de fraudes em licitações e desvios de
verbas da Codevasf em prefeituras do Maranhão, já havia sido escarafunchado
pela Polícia Civil do Estado, pela Controladoria-Geral da União e pelo TCU. A
PF se mexeu num momento em que o jogo de Arthur Lira, de calar sobre o golpismo
de Bolsonaro para se cacifar como mediador de uma solução para a crise, se
desgasta. Até o Progressistas resolveu soltar uma nota ontem ante à mudez de
seu maior expoente.
A operação da PF enfraquece Lira porque
mostra que a perspectiva de troca de poder já contaminou as instituições de
controle. Com isso, o presidente da Câmara perde a capacidade de entregar tudo
aquilo que prometeu para depois das eleições com vistas a se cacifar para sua
recondução ao cargo em fevereiro de 2023. Pior do que isso só se o Supremo
desistir de julgar a retroatividade da nova lei da improbidade, da qual Lira
depende para deixar de exercer mandato com base em liminar.
O quórum do MDB no encontro com o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que teve a representação de 13
Estados, foi motivado por uma constelação de interesses, como a de tentar
evitar que o partido se subordine à necessidade de oferecer um palanque
presidencial da terceira via para o governador de São Paulo, Rodrigo Garcia
(PSDB). Nenhum desses interesses, porém, une tanto o MDB quanto acabar com a
hegemonia de Lira na Câmara. O partido já se articula com o PSD, que hoje tem a
vice-liderança do governo na Casa, e com o PSDB de Aécio Neves para compor uma
nova base na Câmara.
A disputa pela Petrobras é uma das
explicações por que Lira não soltou um ai contra o golpismo bolsonarista.
Depois do veto do comitê de elegibilidades e do Conselho de Administração ao
secretário-executivo da Casa Civil, Jônathas Castro, resta a Lira pressionar a
União a reapresentar o nome do operador do Centrão na assembleia de acionistas
em agosto. É um nome importante para o projeto de reocupação de poder na
Petrobras com o qual Lira também espera pavimentar sua recondução na Câmara.
Sem o último bastião bolsonarista, o que
restaria a Bolsonaro? As Forças Armadas das contas em atraso? Nos ataques da
segunda-feira, Bolsonaro demorou-se a falar do computador “terceirizado” que
totaliza as urnas e disse que a eleição de 2020 não deveria ter sido validada.
Sugeriu, dessa forma, que pode tentar adiar as eleições e, se não conseguir,
mobilizar hackers para invadir a totalização do resultado eleitoral. Vai
esbarrar no general que dirige o Departamento de Ciência e Tecnologia do
Exército e integra o Alto Comando, Guido Amin Naves, voz resistente no
colegiado à tentativa de desacreditar as urnas. Corre no Palácio do Planalto
que o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, está a
confeccionar a lista de generais que “estão com Bolsonaro”. Do Alto Comando só
é capaz de garantir Paulo Sérgio Oliveira, que a posse na Esplanada colocou na
reserva.
O isolamento de Lira e a incapacidade de
mobilizar o “dispositivo militar” limitaria as saídas de Bolsonaro. Uma delas é
proliferar o caos com a repetição de crimes como o do Paraná país afora, mas o
povo é ordeiro e a baderna pode se voltar contra sua própria candidatura.
Restaria, por fim, seu governo que tem
algumas boas notícias a administrar, o declínio do desemprego e perspectiva de
queda na inflação. É um desfecho certo pela redução no preço dos combustíveis,
mas com impacto duvidoso no custo de vida dos mais pobres. A inflação de
alimentos acumulada em 12 meses é de 16,7%. Em junho de 2018, o salário mínimo
comprava 2,1 cestas básicas. Em junho deste ano, 1,6. É este o legado que terá
a defender com a oficialização de sua candidatura neste domingo. Se a oposição
for capaz de contestá-lo com a mesma veemência com a qual se enfrenta o
golpismo, não haverá apelo a cabo ou soldado que dê jeito no bolsonarismo.
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