domingo, 21 de agosto de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

Diversidade de candidaturas faz bem à democracia

O Globo

Eleições terão recorde de candidatas e, pela primeira vez, mais candidatos negros que brancos

As eleições de outubro terão um número recorde de candidaturas de negros, mulheres e indígenas. O aumento da diversidade na política fortalece a democracia representativa brasileira. É um fato auspicioso para um país cuja tradição sempre foi reservar o poder de decisões para uma elite em sua quase totalidade branca e masculina.

Do total de 27.667 candidaturas registradas, 49,6% são de negros e 48,8% de brancos — é a primeira eleição em que os negros superam os brancos e chegam a um percentual quase compatível com sua representatividade na população. No caso das mulheres, as 9.415 candidatas ainda representam apenas 34% do total, mas já há mais de duas centenas de candidatas do que em 2018.

A ampliação da participação feminina resulta em parte das novas regras determinando que 30% das vagas para disputar cargos no Legislativo e dos recursos do fundo eleitoral sejam destinados a mulheres. Para cumpri-las, já houve casos de partidos apresentarem candidatas laranjas apenas para satisfazer à cota. É uma manobra que precisa ser punida de forma exemplar. Em que pesem os desvios, é bem-vindo o aumento do protagonismo da mulher na política, ainda mais diante do histórico gradual e conturbado de conquista de direitos cívicos e políticos.

As brasileiras passaram a ter o direito de votar apenas em 1932, 43 anos depois da proclamação da República. Ainda assim, o voto era facultativo. Puderam participar da Assembleia Constituinte de 1933, que redigiu a Carta de 1934, incluindo o voto feminino. Mas apenas em 1965 ele seria equiparado ao dos homens, tornando-se obrigatório.

Em 21 dos 32 partidos, mais da metade dos candidatos serão negros, proporção bem maior do que em 2018, quando eram 13 em 36. As legendas à esquerda apresentam maior participação de negros entre os candidatos: PSOL (60,7%), União Popular (60%) e PCdoB (58,7%). O PT, o maior partido desse bloco, está no 20º lugar no ranking daqueles com mais candidatos que se identificam como negros. Partidos à esquerda também predominam entre os com maior participação feminina: União Popular (68%), PCdoB (45%), PSTU (41%) e PSOL (40%), bem acima dos 30% estabelecidos em lei.

A entrada de indígenas na política continua em alta. Nas eleições de 2014, quando passou a vigorar a classificação racial dos candidatos, 84 candidatos se autodeclararam indígenas. Foram 134 em 2018 e 175 agora. No período, dobrou o número de indígenas em busca de algum cargo eletivo.

Por ironia, as políticas contrárias aos interesses dos índios e da Amazônia do governo Jair Bolsonaro podem ter estimulado lideranças indígenas a se candidatar para defendê-los também no Legislativo. Pela primeira vez, ao representar 0,62% dos candidatos registrados, eles deixaram de ser a categoria racial menos declarada à Justiça Eleitoral, posição que passou a ser ocupada pelos que se identificam como “amarelos” (0,40%).

Quando se constata, segundo estatísticas do IBGE, que as mulheres representam quase 52% da população e os negros mais de 56%, percebe-se que ainda persiste a sub-representação de ambos os grupos na política. Os registros de candidaturas na Justiça Eleitoral demonstram, no entanto, que o país está no caminho certo.

Domínio sobre republicanos abre caminho para volta de Trump

O Globo

Candidatos ligados ao ex-presidente vencem primárias para Congresso e vinculam partido ao trumpismo

A democracia mais longeva do mundo continua em perigo. Nos Estados Unidos, Donald Trump conquistou o domínio incontestável do Partido Republicano, e muitos apostam que será o candidato a presidente da legenda em 2024. Na semana passada, a senadora Liz Cheney, conservadora, filha do ex-vice-presidente Dick Cheney e principal voz antitrumpista no partido, foi derrotada nas primárias do estado do Wyoming. Seu nome não aparecerá na cédula do pleito que renovará o Congresso neste ano.

Entre os republicanos, ela era a principal opositora de Trump. Não foi a única a ficar pelo caminho. Oito dos dez deputados do partido que votaram em favor do impeachment de Trump por causa da invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 anunciaram aposentadoria da política ou foram derrotados por trumpistas nas primárias.

O controle exercido por Trump não se dá em razão de conhecer como poucos a máquina republicana ou de ser competente na costura meticulosa de conchavos políticos. Seu poder emana do enorme fascínio que exerce sobre os eleitores identificados com a legenda. Nesse contingente da população, ele detém 65% de aprovação. Mais: 70% dizem acreditar na mentira de que Trump foi roubado na última eleição e consideram Joe Biden um presidente ilegítimo.

Em 2016, quando estava em campanha, Trump chegou a afirmar: “Eu poderia ficar parado no meio da Quinta Avenida e atirar em alguém e, ainda assim, não perderia nenhum eleitor”. Entre a base republicana, a afirmação não está tão longe assim da verdade.

Há sérios indícios de possível ação criminosa de Trump na invasão ao Capitólio, que resultou em cinco mortos, como tem demonstrado a comissão de inquérito na Câmara dos Representantes. Como parte de uma investigação por violação da Lei de Espionagem, a casa de Trump foi vasculhada recentemente por agentes do FBI. Lá, eles encontraram documentos classificados como ultrassecretos que haviam sido subtraídos da Casa Branca. Outros processos contra Trump tramitam em diferentes instâncias. Na quinta-feira, o diretor financeiro da Organização Trump assumiu a culpa por 15 crimes ligados a evasão fiscal. Mas nada disso parece suficiente para abalar a devoção dos trumpistas.

Um sinal de que o caminho de volta à Casa Branca talvez não seja assim tão fácil é a pressão para que Trump adie o lançamento da candidatura. O medo é que um anúncio feito neste ano ajude a revigorar os democratas nas eleições para o Congresso em novembro. Pior: a parte dos independentes simpática aos republicanos, crucial para uma vitória, poderá perder a paciência se tiver de votar em Trump mais uma vez. O trumpismo é forte, sem dúvida. Mas a força do antitrumpismo não pode ser subestimada.

Nós do SUS

Folha de S. Paulo

Há muito a melhorar na gestão, mas saúde pública também precisará de mais verba

Houve um tempo em que o único "serviço" que o cidadão poderia esperar do Estado era um exército que protegeria a cidade de invasores. Aos poucos, vieram também uma força policial e algo que com muito boa vontade poderíamos chamar de sistema de Justiça.

A partir do século 18, países mais avançados adicionaram à lista a educação pública e, mais tarde, um sistema de pensões. Foi só depois da Segunda Guerra que veio a explosão de serviços que caracterizam os Estados contemporâneos. E o mais complexo deles é, sem dúvida alguma, a saúde.

O Brasil, num raro destaque positivo, é o único país de renda média do mundo a oferecer um sistema universal de saúde gratuito à sua população. E os desafios do SUS, já imensos antes da pandemia, tornaram-se ainda maiores depois, como mostrou reportagem da série Nós do Brasil, na Folha.

O problema de base é, evidentemente, o subfinanciamento. Embora os gastos públicos e privados do Brasil com saúde sejam até proporcionalmente maiores que de países desenvolvidos, o jogo muda inteiramente quando se consideram apenas despesas de governo.

Em 2019, os desembolsos totais chegaram a 9,6% do Produto Interno Bruto, ante 8,8% na média da OCDE. Já o dispêndio público ficou em 3,8% do PIB, ante 6,5%.

A pandemia escancarou o papel essencial do SUS. Embora nosso desempenho na crise sanitária tenha sido péssimo, muito pior seria sem o sistema de saúde.

A grande disposição com que a população arregaçou as mangas para tomar as primeiras doses da vacina, a despeito da insistente propaganda contrária de Jair Bolsonaro (PL), tem muito a ver com a confiança acumulada em vários anos do programa nacional de imunização, apontado como um dos melhores do mundo.

Seja como for, a pandemia colocou ainda mais pressão sobre o SUS. A demanda pelos serviços, que já era maior do que a oferta, foi reprimida por cerca de dois anos. A chamada Covid longa criou uma nova categoria de usuários; algo parecido vale para a saúde mental.

Embora o sistema esteja sendo mais exigido, é difícil imaginar como suas verbas possam aumentar de forma permanente. O Brasil lida com severa restrição orçamentária, agravada pela recente rodada de gastos eleitorais. Há amplo espaço para melhorias na gestão, mas isso não bastará para equacionar todas as carências.

O melhor caminho é cortar algo dos muitos subsídios e programas ineficientes bancados pelo Estado brasileiro para aumentar os recursos para a saúde pública. Politicamente, trata-se, na maior parte dos casos, de enfrentar grupos de interesse e suas benesses.

Virado à paulista

Folha de S. Paulo

Haddad lidera no Datafolha, mas Tarcísio ou Rodrigo podem ameaçá-lo em 2º turno

A julgar pelo instantâneo oferecido na última pesquisa Datafolha, as intenções de voto para o governo de São Paulo compõem quadro pouco definido. Em que pese a liderança distanciada de Fernando Haddad (PT), com 38% das preferências, os dois principais candidatos mais ao centro e à direita ainda têm chance na eleição.

O ex-ministro bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos) marca 16%, e o governador Rodrigo Garcia (PSDB), 11%. Disputa equilibrada, dado que a margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos e a campanha eleitoral mal começou, oficialmente.

A luta de ambos no presente é se tornarem conhecidos, diante de um adversário que teve larga exposição no último pleito presidencial, em 2018. Enquanto 89% dos eleitores relatam conhecer Haddad, meros 35% dizem o mesmo de Tarcísio ou Rodrigo.

Hoje, o bolsonarista parece contar com ligeira vantagem sobre o tucano. Na pesquisa de intenção de voto espontânea, em que não se apresentam nomes, o primeiro obtém 8%, ante 3% do segundo.

Para um recém-chegado ao estado, o ex-ministro até que se sai bem. Beneficia-se da popularidade relativa do padrinho Jair Bolsonaro (PL) e de pautas retrógradas em segurança pública e costumes. Se o presidente seguir diminuindo a desvantagem diante de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Tarcísio pode angariar pontos por inércia.

Já o governador paulista livrou-se do espectro evanescente de João Doria, seu antecessor no Bandeirantes, e tem a máquina do governo estadual sob controle. Vem prodigalizando benesses eleitoreiras, como represar tarifas de pedágio e aumentar o valor do vale-gás.

Pela fotografia do Datafolha, qualquer um deles teria tarefa dura num segundo turno, mesmo que herde todas as atuais intenções de voto de centro-direita e direita. A soma dos dois (27%) mal ultrapassa um quarto do eleitorado e fica 11 pontos aquém de Haddad.

O petista, entretanto, tem a rejeição mais alta (30%), ante 22% de Tarcísio e 20% de Rodrigo. O antipetismo é forte no estado, que nunca elegeu um governador do PT e é administrado há décadas por tucanos e aliados. Haddad terá trabalho pela para manter o favoritismo.

Tudo considerado, a eleição paulista ainda se encontra um tanto indefinida. Pode-se dizer, com alguma segurança, que dificilmente se decidirá no primeiro turno e tende a ser marcada pela polarização.

Muito a comemorar no Bicentenário

O Estado de S. Paulo

Os 200 anos de Independência são ocasião de um renovado olhar para o País. Há problemas, mas o Brasil não é mero “país do futuro”. Há conquistas a celebrar e preservar

O País está próximo a comemorar o seu Bicentenário da Independência e, ao olhar a realidade imediata, o panorama não é animador. A fome voltou, a pobreza cresceu, a desigualdade social aumentou e o crescimento econômico patina. Em outubro, haverá eleições e os problemas nacionais não estão sendo discutidos. O presidente da República difama a democracia brasileira e coloca em dúvida se respeitará o resultado das urnas. Por sua vez, o candidato ao Palácio do Planalto que aparece em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto, além de não reconhecer os graves delitos cometidos por seu partido nas administrações passadas, não propõe nada novo, insistindo na mesma perversa trilha.

No entanto, apesar do cenário pouco otimista, é preciso reconhecer que muito foi feito desde o 7 de Setembro de 1822. Seria uma enorme obtusidade ignorar a presença de conquistas muito significativas ao longo dessas 20 décadas, conquistas estas que não foram fruto do acaso, mas do trabalho abnegado de várias gerações de brasileiros. Sem a pretensão de fazer uma lista exaustiva, apresentam-se alguns avanços que merecem ser especialmente comemorados.

Houve um inequívoco fortalecimento dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, com a abolição da escravatura (1888), a Proclamação da República (1889), o reconhecimento de direitos políticos para todos os cidadãos (1932) e a reinstauração do Estado Democrático de Direito, com a Constituição de 1988. Certamente, há muito o que melhorar em todos esses pontos – basta pensar no racismo todavia presente na sociedade e na sub-representação da mulher na vida política –, mas os avanços são incontestáveis.

Outra vitória que merece ser destacada é a manutenção da integridade do território ao longo desses 200 anos, de forma muito diferente ao que se viu em muitos outros países. Em 1903, mediante acordo com a Bolívia, houve ainda a anexação do atual Estado do Acre ao território brasileiro. É também de justiça mencionar que, durante esses dois séculos, o Brasil foi um dos líderes mundiais na preservação ambiental, com intensa participação e investimento da iniciativa privada.

É triste que o governo federal se empenhe tanto em prejudicar, nas questões ambientais, o bom nome do País perante a comunidade internacional. De toda forma, os dados nacionais mostram uma realidade especialmente positiva. Com responsabilidade ambiental e inovação tecnológica, o Brasil conseguiu ser um dos maiores produtores de alimentos do mundo e manter dois terços do território nacional coberto por vegetação nativa (primária e secundária). É um feito cuja relevância só tende a aumentar ao longo do tempo.

O Bicentenário da Independência do Brasil remete também a outro tema fundamental para o desenvolvimento social e econômico do País. Nossa independência do Reino de Portugal abriu as portas para a instalação dos cursos superiores no Brasil. Enquanto Peru e México tinham universidades desde 1551, a primeira faculdade do Brasil (a do Largo de São Francisco) iniciou suas atividades acadêmicas em 1828. Hoje, sete universidades brasileiras estão entre as dez melhores da América Latina, segundo o ranking Times Higher Education.

Ainda que haja muitos pontos a melhorar, também se deve comemorar o muito que se caminhou desde 1822 em relação à educação fundamental e à saúde básica. Houve um espetacular trabalho de ampliação da oferta escolar em todas as regiões do País, como também se constata esta incrível conquista da sociedade brasileira, o Sistema Único de Saúde (SUS). Vários países mais ricos, considerados mais desenvolvidos, não têm um sistema público de saúde tão amplo e acessível como o nosso. O SUS tem muitos desafios, mas o que fez até aqui é digno de louvor.

O Bicentenário da Independência é ocasião de um renovado olhar para o País. Há muitos problemas, mas o Brasil não é mero “país do futuro”. Ao longo desses 200 anos, houve muito trabalho bem feito, cujos frutos são visíveis e merecem ser preservados e continuamente desenvolvidos.

A cracolândia e a escola

O Estado de S. Paulo

O calvário do tradicional Liceu Coração de Jesus expõe a degradação do centro paulistano e sobretudo o fracasso em solucionar a catástrofe humanitária que é a Cracolândia

O colégio paulistano Liceu Coração de Jesus anunciou o encerramento das atividades de ensino por problemas financeiros e queda nas matrículas. A penúria decorre dessa queda, e a queda, da insalubridade e insegurança que envolvem a escola: ela está a poucos quarteirões da Cracolândia.

Se o fechamento de qualquer escola é triste, nesse caso, o amargor é redobrado. Primeiro, porque ela é uma das mais tradicionais do Brasil. Segundo, por expor a degradação do centro de São Paulo, emblema de uma peste que devora o coração das metrópoles do País.

Fundado em 1885 pela Congregação Salesiana de S. João Bosco, para educar jovens de baixa renda, como filhos de escravos e imigrantes, “para a realização pessoal e o protagonismo na sociedade”, o Liceu foi a primeira instituição paulistana a oferecer ensino médio noturno e já contou com cursos técnicos e superiores. O conjunto arquitetônico, que, além do colégio e do Santuário de inspiração renascentista, conta com um teatro e um complexo esportivo, foi tombado. 

Lá foram forjados os corações e mentes de estadistas como Franco Montoro e Carvalho Pinto; intelectuais como Napoleão Mendes de Almeida; e artistas como Grande Otelo e Sérgio Cardoso.

A agonia desse patrimônio arquitetônico e cívico começou há 30 anos, com a concentração de dependentes químicos na região. O colégio chegou a abrigar mais de 3 mil alunos em todas as faixas de ensino. Hoje, são menos de 200, reduzidos ao fundamental. “A situação do bairro está muito difícil, cada dia mais inseguro”, declarou uma mãe à Folha de S.Paulo. “Era uma extensão da nossa casa, da nossa família”, disse outra.

Por décadas os prefeitos se sucedem, instituições fogem da região, edifícios apodrecem – só não muda a Cracolândia.

Ninguém espera soluções mágicas. A desgraça tem raízes profundas e complexas, entrelaçando famílias desestruturadas, miséria social, transtornos mentais e narcotráfico. Não faltaram ações voltadas a cada uma dessas mazelas. O que faltou foi uma ação coordenada, uma política de longo prazo que combine a cooperação das três esferas de governo, a Justiça e associações sociais e médicas para articular, de maneira orgânica, assistência social, atendimento clínico, repressão ao tráfico e reurbanização.

Muito da descoordenação reflete dogmatismos ideológicos. A tendência, à direita, de reduzir os dependentes a criminosos levou a ações policiais tão espetaculosas quanto inócuas. Da tendência à esquerda de reduzi-los a vítimas sociais já correram torrentes de eloquência humanitária e programas de transferência de renda, redução de danos e descriminalização, mas que, sem atacar a raiz do mal, foram igualmente inócuos.

Certamente essas pessoas incorrem em delitos e perturbam a ordem pública; certamente são miseráveis. Mas, mais do que “delinquentes” ou “sem-teto”, são doentes. A segurança pública é necessária. A assistência social é necessária. Mas são paliativos se não acompanhados de programas ostensivos de recuperação. Isso envolve mais gastos públicos do que muitos “liberais” estão dispostos a admitir, mas também medidas excepcionais – como compromissos de abstinência ou, em casos severos, internação compulsória – que escandalizam tantos “progressistas”.

Aos nove anos, João Bosco sonhou que estava no meio de jovens que se transformavam em feras, e, em seguida, em animais mansos. Por 137 anos o Coração de Jesus não poupou esforços para tornar esse sonho realidade, sobrevivendo até a bombardeios na Revolta Paulista de 1924. Diferentemente de outras escolas que migraram dos Campos Elíseos, nunca abandonou seu posto avançado em meio a um inferno crescente. Agora o sonho morreu. As feras venceram.

Ou não. Dias após o anúncio do encerramento, a Prefeitura se comprometeu a subsidiar 200 novas matrículas. Esse novo alento pode ser um recomeço, como um grão de mostarda, a menor das sementes, que se torna a maior das árvores. Mas, se nossa geração não for melhor que as anteriores na missão de ressuscitar para a vida civil as almas perdidas na Cracolândia, será só o último suspiro.

Brasileiros abandonados no sertão

O Estado de S. Paulo

Agruras da população sem água sugerem que milhões de reais para a construção de poços aplacaram outro tipo de sede

“A falta de água não é mais um problema para o povo do nosso Nordeste”, costuma jactar-se o presidente Jair Bolsonaro em lives, tuítes e discursos de campanha. A realidade, no entanto, é outra. No sertão do Piauí, por exemplo, em pleno século 21, cidadãos ainda precisam caminhar quilômetros em busca de água para beber, cozinhar e tomar banho – e nem sempre a encontram em condições próprias para o consumo.

Uma reportagem do Estadão visitou os municípios de Oeiras, Mata Fria e Alagoinha, no interior do Piauí, e encontrou um deserto de obras para abertura de poços inacabadas, muitas delas abandonadas definitivamente. Em cidades que foram contempladas pela “força-tarefa das águas”, anunciada com pompa por Bolsonaro há cerca de dois anos, hoje há poços furados, porém lacrados ou desprovidos de equipamentos adequados para captação e transporte da água para localidades mais altas e distantes.

As condições de vida dos piauienses deveriam ser melhores. O Piauí é o Estado do ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), prócer do Centrão e tido como uma espécie de chefe de governo de facto do País, tamanha a sua ascendência sobre o presidente da República. Ademais, Ciro Nogueira é “padrinho” da atual diretoria da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). Muitos contratos da União com as empresas responsáveis por levar água ao sertão nordestino foram firmados por meio da Codevasf.

Mesmo como senador licenciado, Ciro Nogueira também foi responsável direto pela destinação de milhões de reais em emendas do “orçamento secreto” para aquelas localidades. Empresas dirigidas por amigos do ministro da Casa Civil foram agraciadas com recursos oriundos de emendas parlamentares. Onde foi parar tanto dinheiro público? Decerto essa dinheirama aplacou outro tipo de sede, haja vista o padecimento das pessoas que deveriam ter sido beneficiadas por esses investimentos no interior do Piauí.

Jair Bolsonaro jamais deu a devida atenção às aflições dos brasileiros mais carentes. Basta ver que todas as políticas públicas de seu governo que, supostamente, seriam voltadas aos desvalidos revelam falhas de planejamento e execução. Não raro, tornam-se focos de corrupção.

Isso ocorre porque, em geral, essas ações não são pensadas tendo como norte as necessidades dos cidadãos que dependem do Estado para ter condições mínimas para uma vida digna. São concebidas na medida dos interesses eleitorais do presidente da República e seus sócios, entre os quais Ciro Nogueira. Estão submetidas, portanto, à lógica de uma campanha eleitoral ininterrupta, quando, à luz do interesse público, deveriam ser pensadas a longo prazo.

A falta de espírito público, foco e planejamento do governo federal, para dizer o mínimo, custa muito caro ao erário. Mas é particularmente cruel por frustrar as expectativas de muitos brasileiros que há décadas convivem com os mesmos problemas. É gente sofrida que só é lembrada a cada ciclo eleitoral, como se fossem cidadãos de segunda classe.

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