O Estado de S. Paulo
O embate mais árduo virá depois da eleição,
quando se tratar de reconstruir as instituições e resgatar as promessas da
civilização brasileira.
Quando a História acelera e a política toma
rumos imprevisíveis, é comum que se sucedam os instantes que, segundo o
espanhol Javier Cercas, merecem os cuidados de uma aula clássica de anatomia.
No seu país, com as feridas ainda mal curadas décadas depois do flagelo da
guerra civil, a irrupção de um vulgar militar golpista no Parlamento, no
inverno de 1981, pôs em questão a transição pós-franquista, intimidando os
deputados e colocando a Espanha mais uma vez na encruzilhada. De pé,
inscrevendo corajosamente seus nomes na “religião civil” que nem a mais secular
das democracias dispensa, só o primeiro-ministro Adolfo Suárez, o vice, general
Gutiérrez Mellado, e o eurocomunista Santiago Carrillo. A democracia seguiria
adiante, como sabemos.
Poucos anos antes, do lado de cá do Atlântico, outra transição também inspirava gestos de alto valor cívico, como a cerimônia ecumênica por Vladimir Herzog ou, dois anos mais tarde, a carta lida por Goffredo Telles nas arcadas da Faculdade de Direito da USP. Ao mesmo tempo, assimilávamos um vocabulário inédito, no qual se destacava um conceito-chave da teoria moderna, o de “sociedade civil”. Tal conceito podia ser declinado de variadas formas, mas o certo é que ele afastava a ideia da política seja como expressão passiva da economia, seja como mero disfarce da força bruta. Estávamos literalmente obrigados a ir além dos modos e costumes do autoritarismo.
O aprendizado coletivo consistia no fato de
que, na democracia que se entrevia, seria preciso vencer e convencer – e também
perder, como é próprio da rotina de qualquer comunidade civilizada. E todo este
movimento desaguaria mais adiante na Constituinte, em cujo ponto mais solene o
herói-fundador diria, de modo lapidar, que “traidor da Constituição é traidor da
Pátria”. Os contornos da nossa religião cívica estavam assim delineados por
muitas décadas afora.
Pondo entre parênteses a diversidade de
contextos, vivemos agora uma inesperada repetição. Há pouco, Dom Pedro
Stringhini, em comovente ato inter-religioso na Sé paulista, evocou o grande
cardeal de 1975, ali sepultado, ao celebrar Dom Phillips e Bruno Araújo
Pereira, assassinados numa Amazônia dolosamente convertida em terra sem lei. E
a “sociedade civil” se reergueu nas mesmas arcadas do Largo de São Francisco,
com documentos – um dos próprios juristas, outro das “classes produtoras”
reunidas na Fiesp – que recolheram centenas de milhares de assinaturas e, por
esta e outras razões, têm como alma a ampla frente democrática que possibilitou
a saída pacífica do regime militar.
Nos últimos anos, antes do pacto entre
Executivo e Centrão tramado nos desvãos do “orçamento secreto”, tivemos muitos
chamados ao fechamento do Congresso e, ainda, continuados lances de agressão ao
Supremo Tribunal Federal (STF). Ensaios de golpe ao velho estilo, ora
provavelmente arquivados, eles foram substituídos por tentativas reiteradas de
sabotar as “instituições invisíveis” da República (Pierre Rosanvallon), como a
confiança nas eleições e na sua legitimidade. Isso, que é do conhecimento
geral, prefigura os perigos de um eventual segundo mandato do governante
autocrata, de resto abundantemente escrutinados na literatura internacional
sobre as recorrentes e diversificadas manifestações da extrema-direita
populista.
O espírito da frente democrática vai muito
além das fronteiras de qualquer partido, mesmo daquele mais organicamente
estruturado e que, por isso, apresenta a candidatura mais forte entre as que se
opõem à reeleição do autocrata. Em tese, parece não haver tempo para uma alternativa
viável no campo oposicionista, ainda que tal circunstância não vá cancelar a
pluralidade de programas e visões de futuro. A observância dessa pluralidade é
que avalizará a indispensável “ida ao centro” pela esquerda, e não,
naturalmente, a escolha de um “vice decorativo” ou a cooptação de políticos
avulsos, acima e além do diálogo entre partidos e suas direções regularmente
constituídas. E isso para não falar da aguda compreensão, mais do que nunca
necessária, das múltiplas faces da “sociedade civil”, irredutível a pretensões
de mando ou controle faccioso, sejam quais forem.
Sem menosprezar o desafio eleitoral, que
anuncia sobressaltos de montanha-russa, o embate mais árduo virá depois, quando
se tratar de reconstruir pouco a pouco as instituições e promover o resgate das
promessas da civilização brasileira. Num cenário de terra arrasada, virtudes
cívicas diferentes, como a paciência e a vontade permanente de diálogo,
deverão, então, ser continuamente mobilizadas. Caso se confirme nas urnas – o
que não está dado de antemão! –, um novo governo capitaneado pela esquerda terá
de recorrer às artes de um heroísmo cotidiano, nada retórico, ultrapassando o
círculo do interesse próprio e pondo-se decididamente a serviço da República.
Há quem diga que, até hoje, nos governos anteriores esta travessia corajosa
rumo ao interesse comum nem sempre se realizou com a maestria esperada. Outra
razão forte para começar a empreendê-la desde agora.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das Obras de Gramsci no Brasil
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