O Globo
O Brasil de 2022 tem um presidente em
estado de combustão pré-eleitoral. Entende-se, foi uma semana tensa, iniciada
com um evento de inglória pública
Anos 1960 — sim, aqueles da geração rebelde
idealizados até hoje. Nos Estados Unidos, o repórter Hunter S. Thompson estava
a caminho de se tornar ícone da contracultura por atropelar os cânones do
jornalismo e inventar a forma imersiva de fazer “jornalismo gonzo”. Interessado
em compreender um grupo que parecia encarnar os aspectos mais violentos e vingativos
da natureza humana — a gangue de motoqueiros Hell’s Angels —, ele aceitou
proposta da revista The Nation e mergulhou por um ano naquele universo. A
fluvial reportagem que resultou desse visceral convívio serviu de base para sua
retumbante estreia como escritor. “Hell’s Angels — Medo e delírio sobre duas
rodas”, publicado em 1966, é cultuado até hoje.
A vivência como drogado terminal abraçada por Thompson desde jovem até seu suicídio com arma de fogo, aos 67 anos, não o impediu de estudar com agudeza o caráter violento do ser humano. Considerava o recurso à vingança, à violência e ao ilícito pouco eficazes no dissenso político. Seriam produtos de mentes ignorantes, indicativos de moral fraquejante. Viu na gangue dos Hell’s Angels um microcosmo grotesco da violência sem propósito que hiberna nas sociedades.
O Brasil de 2022 tem um presidente em
estado de combustão pré-eleitoral. Entende-se, foi uma semana tensa, iniciada
com um evento de inglória pública. A extraordinária coreografia da cerimônia
de posse do novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), na
terça-feira, tem tudo para deixar rancores fundos em Jair Bolsonaro. Com a
fisionomia enrijecida pelo dissabor, ele manteve a raiva trancada à força
durante o evento. Contudo, sendo o capitão quem é, ficou desarvorado ao ver a
nata da elite branca da República aplaudir alegremente o discurso repleto de
facadas democráticas, explícito e contundente, do novo xerife eleitoral,
Alexandre de Moraes. Isolado no palco em sua carranca, Bolsonaro ainda teve de
testemunhar, na plateia à sua frente, a descontraída algazarra que acompanhou o
ex-presidente petista Luiz Inácio Lula da Silva à cerimônia. Pílula amarga para
a primeira-dama Michelle e para Carlos, o filho especializado em manipulação do
ódio humano, ambos presentes à tietagem do adversário.
Entre a histórica cerimônia no TSE e a mais
recente pesquisa Datafolha divulgada na quinta-feira (47% dos votos para Lula,
32% para Bolsonaro, portanto tudo ainda em aberto), despontou o destempero do
chefe da nação em mansa manhã brasiliense. Foi
caricato por imortalizar nas redes sociais a expressão “tchutchuca do Centrão”,
lançada por um youtuber/advogado/ex-cabo do Exército que surfa no TikTok contra
o ex-capitão/comandante em chefe das Forças Armadas e presidente do Brasil. Mas
soou um alarme por Bolsonaro ter perdido as rédeas — ele chegou a sair do
carro, pegar o insolente pelo cangote e tentar lhe apreender o celular à força.
Também nada caricato foi o total despreparo da segurança institucional que é
devida ao chefe da nação. Falha grave. Difícil dizer o que faz o general
Augusto Heleno enquanto seus agentes são filmados em modo barata-voa. Um deles,
justamente o que carrega a pasta com supostos documentos importantes da
República, foi visto correndo atrás do youtuber pelo descampado brasiliense.
Teve também a live semanal desta quinta,
direto do Palácio do Planalto, em que Bolsonaro anunciou um decreto algo obtuso
à nação: fora eliminada a alíquota de 11% sobre as importações de suplementos
esportivos como a creatina, BCAA (aminoácidos) e outras multivitaminas usadas
por marombados de academias. A medida incluía o whey protein, apresentado pelo
presidente em inglês mesmo, à intenção do “pessoal que malha”.
Nessa toada, torna-se difícil acompanhar a
visão de Bolsonaro para o Brasil do futuro. Depois de zerar as alíquotas sobre
jet skis, balões, dirigíveis e asas-deltas, o presidente informa que coletes e
jaquetas infláveis para motociclistas também serão contemplados com redução de
imposto de importação. Sem falar nos mais de 20 atos presidenciais que vêm
facilitando a importação, a compra e a posse de armas no país. Nem mesmo os
Hell’s Angels dos anos 1960 sonhavam com motociatas com porte legal de armas.
Uma das características mais marcantes de
mentes fascistoides é sua incurável falta de senso de humor — sentem no máximo
um gozo meio sádico pela dor ou pela humilhação do outro, ferramenta também
usada para espalhar obediência no entorno. Quando esse tipo de machão se sente
humilhado em público, o ódio não lhe dará sossego. Entre as muitas pérolas da
escritora Ursula Le Guin, temos uma sob medida para estes tempos de altíssima
tensão presidencial: “A raiva alimentada para além de seu prazo de utilidade se
torna perigosa. (...) Acarreta regressão, obsessão, vingança, farisaísmo.
Torna-se corrosiva, pois alimenta-se de si mesma”.
No caminho, acaba destruindo seu portador.
Um comentário:
A raiva vira doença,física e/ou psíquica,segundo a filosofia espírita.
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