O Globo
O aumento dos gastos sociais no início do
novo governo reacendeu o debate macroeconômico frequentemente caracterizado, no
Brasil, pela primazia das políticas fiscais restritivas diante do aumento da
dívida pública. Por vezes, este debate é permeado por soluções frágeis ou com
severas consequências, sobretudo em conjunturas de retração econômica
provocadas por choques exógenos como a pandemia, por exemplo. Parte da solução
para o equilíbrio entre a saúde fiscal e as necessidades da população passa
pela qualificação do gasto público. Para isso, há dois instrumentos essenciais,
mas incipientes aqui: monitoramento e avaliação.
Até temos políticas que, por circunstâncias
específicas, passaram por esses processos (o Bolsa Família, por exemplo). No
entanto, há tantas outras que nascem, vivem e morrem ou permanecem sem que
saibamos se atingiram seus objetivos. Avaliações são centrais para aferir
efetividade, bem como corrigir rumos da implementação, checar consistência das
hipóteses e permitir ajustes de rota.
Para avançar, precisamos de um sistema institucional, técnico e político de avaliações estratégicas e periódicas da estrutura de gastos do governo. Uma prática que tem ganhado cada vez mais relevância, sobretudo em países desenvolvidos, chama-se Spending Review (revisão de gastos). Trata-se de um marcador institucionalizado de revisão frequente (não brusca), transparente e sistemático.
De acordo com um estudo de 2022 do FMI, 84% dos países da Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) adotavam práticas de
Spending Review em 2020, quase o dobro dos 43% verificados em 2011. Os
economistas José Roberto Afonso e Leonardo Ribeiro argumentam, em estudo de 2020, que uma das vantagens desta prática é
evitar ajustes fiscais imediatistas fortemente reativos, posto que as revisões
periódicas são realizadas com base no desempenho das políticas públicas.
Por outro lado, existem desafios a serem
mencionados. Primeiro, cerca de 90% do orçamento federal é de despesas
obrigatórias previstas em lei e revisá-lo solicitará fluída articulação
política junto ao Congresso. Segundo, as implicações ao pacto federativo exigem
afinada coordenação entre os entes federativos. Por fim, há a inércia
institucional na administração pública. Segundo Lindblom, em estudo seminal
de 1979, isso ocorre porque decisões tomadas no passado constrangem decisões
futuras e limitam a adoção de novas políticas públicas, em particular as de
natureza orçamentária, de que resultam mudanças apenas incrementais.
Além do mais, é importante lembrar que nem
toda ação precisa, deve ou pode ser avaliada. Mas, entre as que devem sê-lo,
cumpre assegurar que reúnam boas condições para que o Spending Review seja
efetivo. Parte disso pode ser endereçado a partir do desenho da política, com
uma teoria da mudança bem-feita que revele seu mapa de hipóteses e expectativas
de incidência, criando parâmetros para a mensuração dos efeitos diretos e
indiretos, de curto, médio e longo prazos. Adicionalmente, devemos dispor de
sistemas de monitoramento robustos o suficiente para garantir ajustes ágeis na
implementação. Exemplos relevantes no Brasil que podem nos inspirar são a
Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação, do Ministério do
Desenvolvimento Social, e o Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas
Públicas, do Ministério do Planejamento.
Vale frisar que esses esforços não devem
ser vistos como o domínio da tecnocracia sobre a política. Conforme argumentam
Gabriela Lotta e Pedro Abramovay no livro Democracia Equilibrista (2022), soluções
para os problemas do país não podem sair apenas de “estatísticas e gráficos de
técnicos muito qualificados”. Segundo os autores, é “a democracia, por meio da
política, que escolhe os caminhos que o país deve tomar, enquanto as
instituições republicanas, a burocracia técnica, oferecem os materiais para
pavimentar as estradas que resultarão dessas escolhas”. Confeccionar um sistema
institucionalizado de revisão e qualificação do gasto público é uma das formas
de colocar isso em prática.
Felizmente, há bons sinais emitidos pelo
novo governo, como a criação da Secretaria de Avaliação e Monitoramento de
Políticas Públicas, no Ministério do Planejamento. No entanto, de nada
adiantará a boa vontade do Executivo se não estiver sintonizado com o
Congresso, atores políticos relevantes, a academia e a sociedade civil.
*Ricardo Henriques, economista, é superintendente-executivo do Instituto Unibanco e professor associado da Fundação Dom Cabral
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