Ana Rosa Alves / O Globo
Em México e Israel, tentativas dos governos
aumentarem seus poderes geram protestos maciços; 56% da população do planeta
vive em países com retrocessos
O projeto
de reforma judicial do primeiro-ministro Benjamin
Netanyahu e seus riscos para a democracia. No México, os protestos
são contra as contestadas
mudanças no sistema eleitoral impulsionadas pelo presidente Andrés
Manuel López
Obrador. Em países como Hungria e Polônia, os reveses
no Estado de Direito causam dor de cabeça há anos na União Europeia.
De acordo com o levantamento anual de 2022
do World Justice Program, organização independente sediada nos Estados Unidos,
61% dos 140 países analisados registraram piora no cumprimento do Estado de
Direito, e 39% viram melhorias. É o quinto ano consecutivo de saldo negativo e,
ao todo, 4,4 bilhões de pessoas, ou 56% da população mundial, vivem em países
onde houve deterioração. O Brasil ocupa o 81º lugar.
— A deterioração do Estado de Direito é definitivamente uma tendência — disse ao GLOBO Margaret Satterthwaite, relatora especial da ONU sobre a independência de juízes e advogados. — Vemos em muitos, muitos lugares o aumento da autocratização. Em alguns casos, o uso de poderes autoritários. Também a erosão da democracia.
À frente da coalizão mais à direita da
História israelense, Netanyahu tenta aprovar uma reforma que aumentaria
o controle do governo sobre a escolha de juízes e daria ao Legislativo
o poder de reverter com maioria simples decisões da Suprema Corte. O temor é
maior frente ao histórico do chefe de Estado, ele mesmo em julgamento por
corrupção e fraude.
A instância mais alta israelense, lembra
Satterthwaite, tem um histórico importante em um país onde há muito em jogo. A
gestão antiárabe tem planos de expandir os assentamentos considerados ilegais
pelo direito internacional e fomenta as tensões israelo-palestinas: só neste
ano mais
de 70 palestinos já morreram em ações ou operações israelenses,
cenário que desperta o temor de uma nova Intifada.
— A Suprema Corte israelense teve um papel
em particular na proteção de direitos humanos básicos em uma série de
contextos, e o impacto dessas reformas legislativas mudaria tal capacidade —
afirmou Satterthwaite. — Limitaria o papel dos tribunais exercerem seu papel em
um momento no qual há grandes debates sobre os direitos humanos em Israel.
'Manual da autocracia'
Para Satterthwaite, há um "manual da
autocracia" que os líderes com tais tendências normalmente seguem,
copiando uns aos outros. E os tribunais, argumenta o professor da Universidade
de Chicago, Tom Ginsburg, são um "alvo fácil".
Autor do livro "Como Salvar
Democracias Constitucionais", ele crê que a onda mais recente de afrontas
passa pelos movimentos de redemocratização dos anos 1990. Houve na época uma
multiplicação de cortes constitucionais e tribunais eleitorais, considerados
necessários para monitorar a governança. Isso significou mais força para os
Judiciários e uma alteração no equilíbrio dos Poderes.
— É quase uma lei da física. Quando uma
instituição exerce poder, ela se torna mais política porque toma decisões que
têm consequências políticas — disse Ginsburg, que integra o World Justice
Project. — Os tribunais estão sendo politizados no sentido que as forças que
não gostam de suas decisões vão tentar atacá-las.
À tormenta perfeita soma-se a onda
populista da década passada. Primeiro em países
como Hungria e Polônia, onde um aparelhamento do Judiciário começou de
forma parecida com o que hoje se vê em Israel. Mais recentemente, com figuras
como Jair
Bolsonaro e Donald Trump,
freados pela derrota nas urnas.
Tais mandatários, no geral, compartilham a retórica de que são os únicos representantes do povo (ou da parte do povo que representam) e que qualquer instituição entre eles é inconstitucional. O imbróglio é complicado ainda mais pelas guerras culturais da atualidade: cabe aos tribunais legislar sobre questões como os direitos LGBT ou o combate ao racismo, veredictos com frequência polarizantes.
Atenção no micro
Parte da solução para os Judiciários é se
comunicar com uma população de quem é historicamente distante, argumentam os
especialistas: a barreira imposta pela toga deve dar lugar para a humanização
dos juízes, maior transparência e melhor comunicação. A eficácia das instâncias
menores também é importante, já que são raros os processos que chegam às
Supremas Cortes.
— No mundo, 5,1 bilhões de pessoas não têm
suas necessidades judiciárias atendidas — disse Elizabeth Andersen, diretora
executiva do World Justice Project, citando disputas familiares, trabalhistas e
assuntos relacionados à moradia e consumo. — A inabilidade de resolver tais
problemas pode culminar na desconfiança no sistema judicial ou outras
instituições de Justiça. E essa ineficiência pode levar a uma erosão do Estado
de Direito.
Outro alvo fácil são as autoridades
eleitorais, na mira das reformas que o governo do esquerdista López Obrador tenta
implementar, e lembrete de que os reveses não se limitam a um lado do espectro
político. As autocracias na Nicarágua, na Venezuela e em Cuba são os exemplos
mais extremos do fenômeno na região.
O presidente trava há anos um pé de guerra
com os tribunais e os responsáveis pelas eleições, mas a reforma mais recente
diminui a estrutura do Instituto Nacional Eleitoral (INE) e lhe retira poderes
de sancionar funcionários públicos que interferiram indevidamente nas eleições.
São pontos significativos no ano anterior à eleição que o partido governista
Morena corre o risco de perder.
Roda viva democrática
As autoridades eleitorais, diz Ginsburg,
foram importantes para que as democracias brasileiras e americanas
sobrevivessem aos testes de estresse motivados por líderes que consistentemente
puseram em xeque as instituições em seu próprio benefício. Em Washington, o
ataque ao Capitólio, a casa do Congresso. No Brasil, as turbas foram também ao
Palácio do Planalto e ao Supremo Tribunal Federal.
Ambos países, para o professor, são
exemplos positivos de sistemas que suportaram afrontas contundentes devido à
burocracia que os sustenta. No caso americano, os funcionários estaduais que
barraram tentativas trumpistas de reverter o voto popular. No Brasil, as ações
da Justiça Eleitoral para garantir que o pleito do ano passado transcorresse de
forma pacífica, transparente e ordenada.
Reformas nem sempre são negativas, contudo,
e às vezes, são particularmente necessárias para conter o excesso de
politização dos tribunais — uma régua é se as mudanças promovem ou não maior
independência entre os Poderes. Uma teoria é que o balanço de forças é cíclico
e a democracia, um corpo vivo:
— Quando as cortes ficam demasiadamente politizadas, tem seu poder reduzido, mas então se tornam menos importantes. Depois de algum tempo, tomam decisões importantes que as põem novamente nos holofotes — disse Ginsburg. — Pode-se chegar ao ponto em que há políticas judicializadas, quando os juízes tomam decisões importantíssimas, como na Itália nos anos 1990 ou na Operação Lava-Jato, que afetam todo o sistema político. Mas depois, sempre haverá demandas para contê-las.
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