O Globo
No que tange à questão fiscal, os discursos
de Fernando Haddad e do presidente da República estão gritantemente
desalinhados
Não falta hoje quem se esforce para
acreditar que o anúncio da tão aguardada proposta de um novo arcabouço fiscal
dará, afinal, credibilidade ao suposto compromisso do novo governo com a gestão
responsável das contas públicas, abrirá amplo espaço para a queda da taxa
básica de juros e trará perspectivas bem mais promissoras para a economia nos
próximos anos.
O ministro da Fazenda tem feito o possível para reforçar a esperança de que a deflagração desse círculo virtuoso está prestes a ocorrer. Em boa hora, decidiu antecipar a concepção do novo arcabouço fiscal. E, com o devido cuidado, preocupou-se com formar consenso entre ministros da área econômica em torno da proposta para, afinal, conseguir que seja respaldada pelo Planalto e submetida ao Congresso.
O que ainda parece pouco convincente nesse
cenário otimista é que, no que tange à questão fiscal, os discursos de Fernando
Haddad e do presidente da República estão gritantemente desalinhados. Não há
nada, por enquanto, que permita considerar plausível a ideia de que Lula esteja
disposto a se impor regras de controle fiscal que venham a tolher de forma
relevante a expansão de dispêndio público que seu governo vem contemplando.
Basta ver o que o presidente vem
reiteradamente declarando. “Não dá para a gente ficar achando que o gostoso
neste país é guardar dinheiro. Não, dinheiro bom é dinheiro transformado em
obra, melhoria de qualidade de vida do povo, saúde, educação. Sobretudo
emprego, que é o que dá dignidade ao povo brasileiro”.
Trata-se de declaração feita na semana
passada, em reunião com 11 ministros, para discutir obras de infraestrutura e o
novo Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), ocasião em que o presidente
se permitiu deixar ainda mais clara sua visão peculiar sobre restrição fiscal.
“Por isso que o Haddad é ministro da Fazenda, ele é criativo. Se a gente não
tiver dinheiro, a gente vai atrás dele, e ele vai ter que arrumar. Ele e a
Simone (Tebet) vão sentar na mesa e arrumar o dinheiro que nós precisamos para
fazer investimento nesse país.” (Folha, 11/3)
Nada disso impedirá o governo de submeter
uma proposta de novo arcabouço fiscal ao Congresso, exigência prevista na PEC
do Estouro, aprovada no apagar das luzes do ano passado. Mas é difícil que o
grau de “criatividade” que será exigido pelo Planalto, no detalhamento de tal
arcabouço, ainda permita que se anuncie um conjunto de restrições fiscais
efetivas que possa dar credibilidade ao suposto compromisso do governo com uma
gestão responsável das contas públicas.
Na entrevista em que concedeu à BandNews no
início do mês (2/3), o presidente reagiu com indisfarçável irritação a uma
pergunta que insinuava que, na disputa em torno da restauração da tributação
federal sobre combustíveis, teria havido vitória da ala econômica sobre a ala
política do governo. Lula fez questão de enfatizar que tal interpretação não
fazia sentido porque “no meu governo, todas as decisões passam por mim”.
Na discussão sobre a concepção do novo
arcabouço fiscal, o enfoque mais promissor é ter em mente que Lula atuará como
líder inconteste da ala política do governo. Nada será feito sem que ele esteja
de pleno acordo. E não é de hoje que o presidente vem dando evidências
inequívocas de que tem plena convicção de que regras de contenção fiscal, como
teto de gastos e arranjos assemelhados, constituem estorvos totalmente
desnecessários. Não há sinais de que tenha mudado de opinião.
Por outro lado, Lula bem sabe que a
aprovação do novo arcabouço fiscal é o que lhe permitirá se livrar de vez do
teto de gastos. Terá de procurar manter as aparências e encontrar a medida
certa de afrouxamento das novas restrições fiscais, evitando a inconsequência
escancarada que possa deflagrar reações desestabilizadoras e complicar a
aprovação da proposta de novo arcabouço no Congresso, onde o governo anda
pisando em ovos.
Goste-se ou não, esse é o jogo medíocre e
arriscado que está prestes a ser jogado pelo Planalto. Triste país.
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