Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Nas
últimas semanas, foram vários casos de preconceitos sociais vindos de
indivíduos dos mais variados lugares da sociedade brasileira
Foram mais de dois anos de
pandemia de covid-19, com um número enorme de mortos e sequelados no Brasil. A
vacina nos salvou de uma situação pior e agora houve uma grande redução dos
casos e dos óbitos. Há um quadro de quase normalidade, com todas as crianças na
escola, as pessoas novamente indo a festas, shows e atividades esportivas, além
do prazer inenarrável de voltar a frequentar o teatro. Mas nem tudo são flores,
pois uma nova epidemia está assolando a sociedade brasileira: a praga da
intolerância.
Nas últimas semanas, foram vários casos de preconceitos sociais contra nordestinos, mulheres, negros, transexuais/travestis, pessoas com deficiência e gente com mais idade (etarismo). Foram falas vindas de indivíduos dos mais variados lugares da sociedade brasileira, como empresários, parlamentares, estudantes, donas de casa e humoristas. O que chama primeiramente a atenção é que não são episódios isolados. Trata-se de uma epidemia de intolerância
Claro que o Brasil, tão
marcado pelo patriarcalismo e pela escravidão, sempre foi preconceituoso. Todos
já presenciamos situações ou falas marcadas pelo preconceito nas piadas de
salão, nas conversas de bar e nos almoços de família. Só que, desde a
promulgação da Constituição de 1988, houve um processo civilizatório contínuo
para considerar, no mínimo, mal-educado e, nas hipóteses mais grosseiras, crime,
qualquer forma pública que defendesse visões que consideram pessoas ou grupos
sociais como inferiores ou indesejáveis.
A ascensão do bolsonarismo
abriu a caixa de Pandora dos ódios e preconceitos mais profundos da sociedade
brasileira. Perdeu-se a vergonha pública ou o temor de ser punido pela Justiça.
É este clima de barbárie que possibilitou a um vereador gaúcho tratar os
baianos como raça inferior e um deputado federal mineiro ridicularizar, a um só
tempo, mulheres e transexuais/travestis, exatamente no dia em que se comemorava
o Dia Internacional da Mulher.
Parlamentares precisam ter
imunidade para dizerem o que quiserem do governo de ocasião. Podem ter ideias
diferentes de como governar o país, achar que o capitalismo ou comunismo são as
melhores formas de organizar a sociedade e propor mudanças legais em matérias
controversas como aborto ou drogas, com opiniões diferentes sobre esses
assuntos. Só que a Constituição disse que todos somos iguais perante a lei e
que devemos seguir o aparato legal vigente. Como o Brasil tornou crime a
expressão verbal do racismo e da LGBTfobia, inclusive imprescritível e
inafiançável, quem o fizer está praticando um delito. Políticos eleitos podem
descumprir a legislação, qualquer que seja ela? Se isso for verdadeiro, rasga-se
o Estado de Direito e a classe política torna-se uma casta acima dos outros
mortais que devem seguir a lei. Depois não adiante reclamar que o Congresso
Nacional é cada vez mais mal avaliado pela população, sobretudo pelos mais
pobres.
Na verdade, em ambos os
casos, a defesa da imunidade parlamentar é só um biombo para esconder algo mais
profundo. O próprio deputado federal mineiro chegou a dizer que não se
importava com uma possível cassação ou até que o matassem, porque muitos outros
o substituiriam. Ele sabe que é um vetor da epidemia de intolerância que assola
o país, atuando junto com muitos outros bolsonaristas, incluindo o chefe máximo
desse grupo fascista, que fez um governo voltado à proliferação do ódio e dos
preconceitos.
Para quem achar que a alcunha
fascista seja forte, lembro de uma palestra nos anos 1980 com Sergio Paulo
Rouanet, um dos maiores pensadores do país no século XX. Rouanet contou naquela
ocasião que uma das táticas dos fascistas italianos para mostrar sua
superioridade contra os inimigos era rir publicamente deles, como a mobilização
de multidões para dar voltas nas prisões onde estavam os perseguidos, como
judeus e comunistas, dando gargalhadas como se o arbítrio e o ódio social se
expressassem melhor na forma de um humor que serve à aniquilação do outro. As
piadas de Bolsonaro contra mulheres, negros, homossexuais e pessoas que estavam
sofrendo com a covid-19 sempre foram fascistóides e seus seguidores seguem essa
trilha.
O resultado da epidemia de
intolerância que vem sendo alimentada nos últimos anos aparece cada vez mais na
esfera pública brasileira. Pode ser vista no episódio do humorista que
ridicularizou um possível ato sexual com uma cadeirante. Essa piada serviu para
mostrar como as pessoas com deficiência são “inferiores”, embora crueldade não
combine com riso. Vale lembrar que um dos ministros da Educação de Bolsonaro,
aquele envolvido em processo judicial sobre o uso de verbas públicas para
comprar Bíblias de pastores amigos da primeira-dama, chegou a dizer que seria
melhor evitar o aumento de alunos com deficiência nas escolas para não
atrapalhar os outros estudantes. Mais uma vez fica claro: bolsonaristas e
fascistas não acreditam na igualdade entre todos os seres humanos.
Em Ceilândia, no Distrito
Federal, um aluno de ensino médio deu uma palha de aço como presente do Dia
Internacional da Mulher para sua professora negra. O estudante queria expressar
preconceito contra o tipo de cabelo dela, mas foi muito além: mostrou como numa
sociedade com alma escravocrata ainda não se libertou da ideia de quem pode
ensinar algo são pessoas brancas. Muitos vão retrucar que foi apenas uma
brincadeira, de um jovem ainda em formação. Mas é isso que preocupa: deve-se
cortar os preconceitos no ambiente escolar, evitando que a população brasileira
no futuro se torne cada vez mais intolerante.
A escola deveria ser o
principal lugar para ensinar a tolerância. Pensadores como Theodor Adorno e
Amos Oz já mostraram como é no processo educativo e na construção do
conhecimento por meio de histórias sobre a diversidade humana que podemos
ensinar a evitar o ódio totalitário e o fanatismo. Estudantes ridicularizando
sua colega mais velha de faculdade - que só conseguiu chegar ao ensino superior
aos 40 anos de idade - demonstram não entender a essência da educação, qualquer
que seja o curso que façam. A melhor forma de aprender é saber lidar com a
riqueza de saberes, gostos e jeitos da humanidade. Como dizia Stuart Mill, os
seres humanos não devem se equiparar às máquinas, e devem ser mais parecidos
com as árvores, pois nunca sabemos de antemão quantos galhos vão surgir nelas
(e com qual formato, ademais). Essa maravilhosa variedade de possibilidades é
muito melhor como ideal de sociedade do que um mundo único, opressivo e
autoritário imposto sobre as pessoas.
Os proliferadores da epidemia
de intolerância sabem que ser preconceituoso tornou-se um ativo social no
Brasil: com esse comportamento se ganham likes, fiéis, admiradores e votos. E
muitas vezes, em nome de Deus, dissemina-se o ódio; em nome do humor,
dissemina-se a opressão; e em nome de identidade grupal exclusivista e
anti-humanista, dissemina-se a exclusão ou mesmo a eliminação do outro.
A existência de uma parcela
importante da sociedade que apoia a expressão pública de preconceitos intolerantes
traz dois riscos ao futuro do Brasil. O primeiro vincula-se à democracia. Não é
possível se ter um regime democrático sem o respeito às leis e aos diferentes.
Visões monistas, que não aceitam outra concepção de mundo e querem destruir as
demais, ferem um princípio básico expresso pelo filósofo Jürgen Habermas: só é
democrata quem pelo menos supõe mudar de opinião. Acrescentaria aqui também a
ideia central do pensamento de um maiores teóricos da democracia, Norberto
Bobbio: apenas um país que respeita os direitos humanos de todos, sem exceção,
pode ser considerado efetivamente democrático.
O segundo risco relaciona-se
com o sentido da nação brasileira, ou seja, com a convivência razoavelmente
harmoniosa entre nós. A história brasileira não foi a democracia racial que
muitos propagaram, e a desigualdade, em seus vários formatos, constituiu nossa
principal marca. Mesmo assim, havia um espaço para a diversidade de religiões,
de grupos étnicos e de modos de vida, sobretudo se compararmos o Brasil com
outros países complexos. Desde a ascensão da epidemia da intolerância,
impulsionada por Bolsonaro, a desigualdade aumentou e a aposta no
recrudescimento da intolerância entre os grupos sociais ganhou força, e ficamos
no pior dos mundos.
Se quisermos ter democracia e
uma nação com convívio mais saudável e civilizado, será preciso combater a
epidemia da intolerância e seus propagadores. Isso passará pela ação política,
cumprindo as leis e construindo um ambiente baseado no diálogo, no respeito à
divergência, na proteção dos direitos humanos e no combate aos extremismos. Mas
é fundamental também semear a tolerância em todos os espaços públicos
relevantes: escolas, igrejas, empresas, ruas e metrôs, além das manifestações
culturais.
E por falar no poder da
cultura, deixo aqui uma dica para enfrentar essa epidemia: a peça “Eu de Você”,
de Denise Fraga. Ela apresenta com humor algumas formas preconceituosas que
surgem em diferentes ambientes do nosso cotidiano, discutindo ainda como
superar as intolerâncias que atrapalham o desenvolvimento de cada um e de todos
nós. É uma vacina poderosa contra todas as formas de ódio contra o outro que
vêm se espalhando pelo Brasil.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
2 comentários:
É fato de que desde o Governo Figueiredo a preparação do idealismo social desenvolvido por José Sarney a ideologia golpista apoiava LULA às escondidas até na elaboração dos cadernos da Constituinte de 1988 que logo após o afastamento das Forças Armadas do poder público deu sumisso em Ulisses Guimarães do MDB pelo fato de permitirem aos militares concorrerem aos pleitos eleitorais sempre dando margem para a volta ao poder cujo fracasso ocorreu no processo do empeatchement de Dilma e a polarização Bolsonaro X Lula enquanto a população produtiva carrega o peso dessa história sem fim, haja saco nessa espera pela prosperidade com a queda dos valores educacionais da maioria, o trunfo das Nações dominadoras...
Magnífico! Parabéns ao colunista e ao blog que divulga seu trabalho!
"Muitas vezes, em nome de Deus, dissemina-se o ódio"! Eis uma outra maneira, perfeita, de descrever o bolsonarismo e seu líder máximo, o GENOCIDA.
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