Folha de S. Paulo
Tem-se por óbvio que só o que o outro lado
diz é fascista, preconceituoso, extremista
Pelo número de reportagens e colunas
publicadas nas últimas semanas sobre o assunto, a pergunta sobre se o Estado
vai, deve ou pode fazer alguma coisa para dar um jeito no vale-tudo da esfera
pública política digital se tornou uma questão central no país.
Como costuma acontecer em momentos em que a angústia da sociedade encontra vontade de tomar providências por parte do governo, do Parlamento e, para completar a trinca, do Judiciário, emergem várias abordagens para um problema que, no fundo, é o mesmo.
Assim, há quem diga claramente que se trata
de aprovar uma norma legal que imponha obrigações às empresas de plataforma,
entre elas a dita "obrigação de cuidar" —que é uma forma carinhosa de
dizer que quem pariu o Mateus das fake news e da radicalização online que
embale a sua cria.
Há quem coloque o foco nos usos sociais que
interesses políticos espúrios fazem dos instrumentos e recursos tecnológicos da
vida online (as tais "affordances") e reivindique um tipo penal
específico para fake news (desculpem, "desinformação"), de modo a
facilitar e a tornar juridicamente mais precisa a atuação de juízes e
promotores, nas eleições e além delas.
Recentemente, adotou-se uma abordagem em
termos de proteção dos direitos humanos (combate ao discurso de ódio)
e, enfim, da ordem republicana contra o vilipêndio dirigido a minorias ou
contra a incitação e a glorificação do terrorismo, de massacres escolares, de
golpes de Estado.
Quem olha esse negócio de fora vê
principalmente uma grande confusão. Há um sentimento predominante de que algo
está ruim, e acho que até há uma maioria que pensa que algo deveria ser feito.
Mas a paz termina exatamente depois dessa constatação.
Há divergências sérias em relação a
basicamente tudo: o objeto (empresas de plataformas, usos políticos ou
comportamentos?), os meios (transparência dos algoritmos, supervisão das
plataformas, criminalização da desinformação e da incitação à sedição), os
diagnósticos (tudo culpa do monopólio das comunicações digitais, do capitalismo
eletrônico, da extrema direita, do "ódio do bem" da esquerda, das
pessoas que viram feras em ambientes online?) e até as expectativas
(constituição de espaços negociados, mas justos, em que se garanta o direito de
existir mesmo de discursos ofensivos e opiniões contra a corrente, como requer
a liberdade de expressão, ou a criação de um utópico "safe space",
isento de ódio, em que o lobo pastará com o cordeiro?).
Sem mencionar os que acham que nada deve
ser feito, seja porque esse ímpeto de limitar a liberdade de expressão acaba
geralmente mal para a democracia, seja porque não confiam na neutralidade ou na
boa-fé de quem agora "está por cima" e pode regular.
Por fim, há um desacordo em relação aos
princípios que deveriam orientar as iniciativas de regulação, pois, afinal, a
liberdade de expressão é fundamental para a democracia e identificar certas
expressões odiosas que não estejam protegidas ou cobertas pelo princípio da
liberdade de expressão não é tarefa simples.
Numa sociedade em que pessoas confundem
"discurso do ódio" e a fala preferida com raiva e acham que só
abnegados monges tibetanos "teriam moral" para condenar o ódio que
escorre nas redes digitais, talvez o tema exija sutilezas e distinções demais.
Do mesmo modo, em um país em que cada um dos lados das trincheiras não acredita
em "ódio reverso" (embora seja pródigo em brandir o chicote no lombo
dos adversários), uma vez que considera que o furor ético que lhe serve de
motivação goza de autorizações e imunidades morais, expedidas pela própria
tribo, toma-se por óbvio que só o que o outro lado diz é fascista,
preconceituoso, extremista e ofensivo e, portanto, é só dele que se trata
quando se fala de ódio e discurso.
Em suma, há uma afobação generalizada no
governo, com grupos tropeçando uns nos outros, há um Parlamento com a sua velha
crença de que todos os problemas sociais se resolvem com novas leis, e há uma
sociedade civil, a organizada e a desorganizada, a que publica e a que comenta,
que anda bem perdida nas várias camadas de complicações e nuances envolvidas
nessa conversa.
Fazer alguma coisa é preciso, mas é fato
que não há paz sobre o que exatamente deve ser feito no assunto
*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
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