quarta-feira, 8 de março de 2023

Wilson Gomes* - No labirinto da regulação

Folha de S. Paulo

Tem-se por óbvio que só o que o outro lado diz é fascista, preconceituoso, extremista

Pelo número de reportagens e colunas publicadas nas últimas semanas sobre o assunto, a pergunta sobre se o Estado vai, deve ou pode fazer alguma coisa para dar um jeito no vale-tudo da esfera pública política digital se tornou uma questão central no país.

Como costuma acontecer em momentos em que a angústia da sociedade encontra vontade de tomar providências por parte do governo, do Parlamento e, para completar a trinca, do Judiciário, emergem várias abordagens para um problema que, no fundo, é o mesmo.

Assim, há quem diga claramente que se trata de aprovar uma norma legal que imponha obrigações às empresas de plataforma, entre elas a dita "obrigação de cuidar" —que é uma forma carinhosa de dizer que quem pariu o Mateus das fake news e da radicalização online que embale a sua cria.

Há quem coloque o foco nos usos sociais que interesses políticos espúrios fazem dos instrumentos e recursos tecnológicos da vida online (as tais "affordances") e reivindique um tipo penal específico para fake news (desculpem, "desinformação"), de modo a facilitar e a tornar juridicamente mais precisa a atuação de juízes e promotores, nas eleições e além delas.

Recentemente, adotou-se uma abordagem em termos de proteção dos direitos humanos (combate ao discurso de ódio) e, enfim, da ordem republicana contra o vilipêndio dirigido a minorias ou contra a incitação e a glorificação do terrorismo, de massacres escolares, de golpes de Estado.

Quem olha esse negócio de fora vê principalmente uma grande confusão. Há um sentimento predominante de que algo está ruim, e acho que até há uma maioria que pensa que algo deveria ser feito. Mas a paz termina exatamente depois dessa constatação.

Há divergências sérias em relação a basicamente tudo: o objeto (empresas de plataformas, usos políticos ou comportamentos?), os meios (transparência dos algoritmos, supervisão das plataformas, criminalização da desinformação e da incitação à sedição), os diagnósticos (tudo culpa do monopólio das comunicações digitais, do capitalismo eletrônico, da extrema direita, do "ódio do bem" da esquerda, das pessoas que viram feras em ambientes online?) e até as expectativas (constituição de espaços negociados, mas justos, em que se garanta o direito de existir mesmo de discursos ofensivos e opiniões contra a corrente, como requer a liberdade de expressão, ou a criação de um utópico "safe space", isento de ódio, em que o lobo pastará com o cordeiro?).

Sem mencionar os que acham que nada deve ser feito, seja porque esse ímpeto de limitar a liberdade de expressão acaba geralmente mal para a democracia, seja porque não confiam na neutralidade ou na boa-fé de quem agora "está por cima" e pode regular.

Por fim, há um desacordo em relação aos princípios que deveriam orientar as iniciativas de regulação, pois, afinal, a liberdade de expressão é fundamental para a democracia e identificar certas expressões odiosas que não estejam protegidas ou cobertas pelo princípio da liberdade de expressão não é tarefa simples.

Numa sociedade em que pessoas confundem "discurso do ódio" e a fala preferida com raiva e acham que só abnegados monges tibetanos "teriam moral" para condenar o ódio que escorre nas redes digitais, talvez o tema exija sutilezas e distinções demais. Do mesmo modo, em um país em que cada um dos lados das trincheiras não acredita em "ódio reverso" (embora seja pródigo em brandir o chicote no lombo dos adversários), uma vez que considera que o furor ético que lhe serve de motivação goza de autorizações e imunidades morais, expedidas pela própria tribo, toma-se por óbvio que só o que o outro lado diz é fascista, preconceituoso, extremista e ofensivo e, portanto, é só dele que se trata quando se fala de ódio e discurso.

Em suma, há uma afobação generalizada no governo, com grupos tropeçando uns nos outros, há um Parlamento com a sua velha crença de que todos os problemas sociais se resolvem com novas leis, e há uma sociedade civil, a organizada e a desorganizada, a que publica e a que comenta, que anda bem perdida nas várias camadas de complicações e nuances envolvidas nessa conversa.

Fazer alguma coisa é preciso, mas é fato que não há paz sobre o que exatamente deve ser feito no assunto

*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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