Regime fiscal passa em meio a derrotas em série do governo
Valor Econômico
Encontrar um modo de convivência produtivo,
sem ceder a chantagens e pautas-bomba, é uma tarefa inevitável que se coloca
diante do Planalto
O governo petista tem demonstrado um
amadorismo que não condiz com sua experiência de 13 anos no poder. Contradições
e incoerências levam-no a colher votações desastrosas para seus interesses -nem
sempre para os do país - no Congresso. O novo regime fiscal, cuja tramitação
relativamente tranquila foi quase toda acertada antes da posse, por Lula e o
presidente da Câmara, Arthur Lira, é a exceção que vai configurando uma regra -
sem base governista relevante, o governo torna-se refém do deputado alagoano.
Mais que isso, depende dos interesses imediatos e abrangentes que Lira
representa para aprovar medidas em um Congresso dominado pelas legendas do
Centrão, que saíram das urnas mais fortalecidas do que nunca.
Lula e o PT urdiram um esquema
intermediário para a continuidade do orçamento secreto, em troca da aprovação
da PEC da Transição, que lhes deram todo o dinheiro que precisavam para
governar (R$ 168 bilhões extras). Com isso contavam com uma transição
tradicional, em que o poder dado pela vitória nas urnas e pelos revigorados
cofres públicos fossem suficientes para atrair, em número suficiente, os
oportunistas de sempre, espalhados por todos os partidos no Congresso. Não foi
o que aconteceu.
Em entrevista à Globonews, o presidente da Câmara fez mais uma avaliação didática sobre as agruras do governo Lula. Disse que já dera sinais “educados e claros” ao governo de que “o mundo de 2002 não é o mesmo de 2023”. A principal mudança sublinhada foi a de que “o Congresso não tinha tanto protagonismo”. Lira tem cobrado diálogo do governo e a formação de uma base de apoio, mas é claro que não lhe interessa lidar com uma maioria a favor do Planalto, salvo nos casos em que ele próprio a agenciar - como na votação do novo regime fiscal. Uma forte base pró-Lula torna prescindível a intermediação de Lira e lhe retira poder.
Lula venceu por pouco as eleições, e, como
se previu, seu cacife político no início de governo foi muito diminuído. A
tarefa de reconstruir um Estado arrasado pelo bolsonarismo é difícil e desvia
energias da negociação política. Mas, além disso, Lula parece alheio a boa
parte do que acontece ao seu redor, se empenha em batalhas erradas e aplica
muito esforço em causas que lhe rendem pouco, se é que não prejudicam sua imagem,
como a de mediador da guerra da Rússia contra a Ucrânia.
Então o Congresso, com a ajuda do PT,
colocou-lhe um enorme problema exatamente aonde o presidente poderia colher
seus maiores trunfos domésticos e externos: na causa ambiental. Em uma
sequência arrasadora, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira,
criticou Marina Silva pelo veto do Ibama às perfurações exploratórias da
Petrobras na foz do Amazonas, o líder do governo no Congresso, senador Randolfe
Rodrigues, rompeu com a Rede, sua legenda e rifou o Meio Ambiente na MP da
reorganização ministerial, a Comissão Mista dessa MP, a 1154, presidida por
Davi Alcolumbre, que prometeu lutar até o fim para derrubar o veto do Ibama,
aprovou parecer do relator que retirou funções e responsabilidades que fazem a
razão de ser do Meio Ambiente: Cadastro Ambiental Rural, política de recursos
hídricos e resíduos sólidos. Além disso, os ruralistas da Câmara decidiram dar
um salvo conduto legal para mais devastação na Mata Atlântica, aprovando
dispositivos em MP que prorrogava o Programa de Reparação Ambiental (PAR).
Como se não fosse pouco, o poder de
demarcar terras indígenas foi retirado do Ministério recém-criado e transferido
ao da Justiça, quase que simultaneamente à aprovação do regime de urgência para
o projeto de lei que estabelece como “marco temporal” para as demarcações a
data da promulgação da Constituição de 1988. As imagens de Marina Silva,
Amazônia e povos indígenas estão firmemente associadas à luta ambiental global.
Um ataque em toda a linha aos três pode anular todo o esforço propagandístico
que Lula fez como defensor intransigente do meio ambiente e pôr em xeque as
evidentes credenciais que o Brasil possui para exercer um papel de primeira
linha no combate ao aquecimento global.
O alheamento do presidente, que mal fala em
reforma tributária ou novo regime fiscal, e tem agenda passadista, poderia ser
minimizado em outros tempos, mas agora pesa diante de uma oposição numerosa e
ativa no Congresso. A sequência de ações do Planalto também incomoda pela
incoerência. No dia seguinte ao da divulgação de lista de milhares de empresas
que se beneficiam de subsídios legais, votados pelo Congresso, e logo após a
vital aprovação do novo regime fiscal, que se apoia no crescimento da
arrecadação, o presidente anuncia um pacote de corte de impostos para as
montadoras ressuscitarem o carro popular.
O início de mandato tem sido inóspito e não se trata, ao que parece, de um período de adaptação, mas de uma condição “estrutural”: a Câmara é comandada pelo Centrão e as legendas fisiológicas já não se sentem atraídas, como foram no passado, por Lula e o PT. Encontrar um modo de convivência produtivo, sem ceder a chantagens e pautas-bomba, é uma tarefa inevitável que se coloca diante do Planalto.
Incentivar carro popular é insistir em erro
conhecido
O Globo
Brasil sempre destinou bilhões a montadoras
com retorno pífio. Prioridade é o transporte coletivo
A sucessão de equívocos do governo Luiz
Inácio Lula da
Silva repetindo políticas anteriores do PT inclui agora a
tentativa de relançar o carro popular. As montadoras, privilegiadas
com todo tipo de benefício e isenção fiscal ao longo de seis décadas, receberão
novos descontos em impostos, apesar do acúmulo de evidências demonstrando que
se trata de um erro. Por três motivos.
Primeiro, a criação de empregos que norteia
essas políticas é uma ilusão. Os avanços tecnológicos e a automação reduziram
brutalmente a necessidade de mão de obra nas montadoras. Mesmo nos anos 1990,
quando o governo Itamar Franco lançou a ideia do carro popular, elas respondiam
por apenas 6% das vagas na cadeia automotiva. “Embora a produção nacional de
veículos tenha crescido quase quatro vezes entre 1990 e 2013, o emprego no
setor de montadoras ficou relativamente estável no período”, escreveu o
arquiteto e urbanista Roberto Andrés em artigo no jornal Folha de S.Paulo.
Apesar disso, as montadoras foram
beneficiadas em todos os governos brasileiros. Entre 2000 e 2021, receberam
quase R$ 70 bilhões em incentivos fiscais. Só no ano passado, foram R$ 10
bilhões, mais de 2% do total de subsídios do governo. Destinar mais dinheiro do
contribuinte para subsidiar montadoras é insensatez, quando se poderia melhorar
o orçamento da Saúde, da Educação ou liberar verbas para proteger a Amazônia.
Ainda mais num momento de crise fiscal, em que o governo precisa rever os
benefícios tributários para aumentar a arrecadação. “Como dizer ao empresário
que perderá um desconto tributário que outro setor ganhará um desconto no mesmo
momento?”, pergunta Andrés.
O segundo motivo são os efeitos do
automóvel para a sociedade. De todos os custos externos associados aos veículos
automotores, o transporte individual — carros e motos — responde por 90%,
incluindo emissões de poluentes, doenças respiratórias, barulho e várias outras
mazelas. Segundo cálculos citados por Andrés, num ano em que gerou R$ 57
bilhões em impostos (2016), a indústria automotiva custou perto de R$ 500
bilhões à sociedade.
O terceiro motivo é que, ao contrário do
que o nome sugere, o carro popular não beneficia o povo. Em vez disso, os
pobres são os mais penalizados com o estímulo ao transporte individual, como
principais vítimas da poluição e das mortes no trânsito. A própria classe
média, alvo das medidas, se viu nas últimas gestões petistas atolada em dívidas
contraídas para financiar carros. Entre 2008 e 2013, a profusão de
congestionamentos fez dobrar o tempo de deslocamento em ônibus em várias cidades.
Não foi acaso que a rebelião popular de 2013 tenha começado pelo transporte.
Nesta hora em que o governo concede novos
benefícios à indústria automotiva, é fundamental lembrar tudo o que sociedade
já lhe deu, com retornos pífios. A preferência pelo transporte individual no
Brasil engarrafa as cidades, aumenta a poluição e contribui para o aquecimento
global. “A experiência anterior mostra que incentivar montadoras não é bom
negócio”, conclui Andrés. “Consome dinheiro público, gera poucos empregos qualificados,
degrada a condição de vida nas cidades e contribui para a crise climática. A
indústria de transporte do século XXI é de ônibus, trens, bondes e bicicletas.”
São esses, diz ele, os meios de transporte que beneficiam os mais pobres e o
planeta. Não há como discordar.
Esvaziamento da pauta ambiental e indígena
terá repercussão mundial
O Globo
Reveses no Congresso colocam na mira acordo
Mercosul-UE e bilhões destinados ao Fundo Amazônia
Depois da alta na devastação da Amazônia
sob Jair Bolsonaro, o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva foi eleito prometendo acabar com as sucessivas “boiadas” sobre a
legislação ambiental e amparar populações indígenas deixadas à míngua. Cinco
meses depois de assumir, porém, a imagem de Lula subindo a rampa do Palácio do
Planalto de mãos dadas com representantes dos povos da floresta parece a cada
dia mais onírica.
Marina Silva,
ex-aliada que engoliu rancores para se engajar na campanha lulista, foi
brindada com um superministério do Meio Ambiente e
ganhou destaque internacional. Foi o cartão de visitas do novo Lula de figurino
verde nas cúpulas ambientais e encontros bilaterais. Com ela à frente da política
ambiental, o planeta acreditava saber o que esperar do Brasil. Já não sabe
mais.
Marina atravessa uma espécie de inferno
astral político. Não bastasse o fogo amigo depois que o Ibama negou licença
para a Petrobras perfurar um poço na foz do Rio Amazonas, assiste ao
esfacelamento de seu ministério. Assim como a titular do Ministério dos Povos
Indígenas, Sonia
Guajajara. No Congresso, o relatório
da Medida Provisória (MP) que reestruturou a Esplanada, aprovado na comissão
mista, retira poderes de ambas as pastas.
Pode-se argumentar que o relator da MP,
Isnaldo Bulhões (MDB-AL), avança sobre atribuições do governo eleito, que
deveria poder organizar os ministérios como lhe conviesse. Mas a reação do
Planalto às mudanças, se houve, foi tíbia. Não está claro se o governo, para
facilitar a aprovação do novo arcabouço fiscal, negociou o esvaziamento das
pastas ou se fez vista grossa. Nenhuma das hipóteses o favorece.
O desmonte das pastas não foi a única
medida do Congresso contra as agendas ambiental e indígena. Na quarta-feira, a
Câmara afrouxou as exigências do Código Florestal, ignorou mudanças feitas pelo
Senado e ressuscitou o jabuti que
abranda as regras de proteção da Mata Atlântica. No mesmo dia, deputados
aprovaram urgência para o projeto do marco temporal, que
restringe a demarcação de terras indígenas às áreas já ocupadas em 5 de outubro
de 1988, quando a Constituição foi promulgada, contrariando políticas do
governo. Desde que assumiu, Lula homologou seis novas reservas.
Não há dúvida de que a investida do
Congresso expõe o Brasil e o governo Lula no cenário internacional. A reação,
inevitável, é só questão de tempo. Os danos não ficarão restritos à imagem. O
acordo do Mercosul com a União Europeia, em que a questão ambiental é
ponto-chave, pode virar fumaça. As robustas doações ao Fundo Amazônia, como os
US$ 500 milhões prometidos pelos Estados Unidos, podem secar de uma hora para
outra.
Ficou claro no encontro do G7, no Japão, que Lula, visto na diplomacia mundial como contraponto ao desastre Jair Bolsonaro, já não é tão celebrado, principalmente depois das declarações infelizes sobre a guerra na Ucrânia. Até aqui, ele escorava sua credibilidade na agenda de preservação ambiental e defesa dos povos indígenas. Agora esse pilar também está cedendo.
A reboque
Folha de S. Paulo
Derrota na área ambiental expõe fragilidade
política e falta de rumos do governo
A reorganização do ministério, com criação
ou extinção de pastas e remanejamento de órgãos subordinados, está sempre entre
as primeiras providências dos presidentes no Brasil. Pode-se questionar se esse
vaivém é benéfico para a gestão, mas o fato é que a prática se tornou rotineira
desde a redemocratização do país.
Até um passado recente, a aprovação das
medidas provisórias que promoviam tais mudanças era tida como mera formalidade.
Não mais. Em 2019, o
Congresso impôs dificuldades e reveses a Jair Bolsonaro (PL). Agora,
é a vez de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —ou, mais particularmente, da
ministra Marina Silva, do Meio Ambiente.
Uma comissão de deputados e senadores
aprovou alterações expressivas na MP 1.154, de 1º de janeiro, que ampliou o
número de ministérios de 23 para os atuais 37. Com o novo texto, Marina perdeu
estruturas importantes para outros colegas de Esplanada.
Ademais, a recém-criada pasta dos Povos
Indígenas viu a competência de demarcação de terras transferida para a Justiça.
Aí se nota, sem dúvida, a ação de forças
retrógradas e adversárias da pauta ambiental. Não por acaso, o Congresso também
aprovou normas que afrouxam a proteção da mata atlântica e a urgência de um
projeto para limitar a homologação de terras indígenas.
Mas, não menos relevante, chama a atenção
que o governo Lula tenha optado por aceitar sem maior enfrentamento a derrota
legislativa —o que tem sua lógica política.
Num processo que se acentuou após o
impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016, o Congresso tem assumido mais
influência sobre as decisões de governo e poder sobre as verbas do Orçamento.
Sob Bolsonaro, um presidente de baixíssima
capacidade de articulação e diálogo, Câmara e Senado conduziram a reforma da
Previdência e a criação do auxílio emergencial durante a pandemia.
Lula, eleito por margem mínima de votos e
apoiado por uma coalizão partidária frágil, parece ter entendido que o Planalto
não é mais capaz de dar as cartas da administração como há 20 anos —quando todo
o jogo se organizava em torno da distribuição de cargos e verbas por parte do
Executivo.
É racional, pois, que o governo escolha as
batalhas que precisa e que pode travar. O que não parece evidente, decorridos
quase cinco meses de mandato, é se o presidente tem clareza de quais são elas.
Fora o relançamento de programas do
passado, com direito aos arcaicos subsídios para automóveis, permanecem
obscuros os rumos do governo —até mesmo na área ambiental, como se vê também no
imbróglio em torno da exploração de petróleo na foz do Amazonas.
Redes de risco
Folha de S. Paulo
Danos para a saúde mental podem ser
combatidos com ciência e educação midiática
Novas tecnologias de comunicação despertam
fascínio quando surgem e, depois, preocupação, até pânico. Foi assim com o
cinema, a televisão e, neste século 21, é o que se passa com as redes sociais.
Na quarta (24), o médico e
secretário de Saúde dos EUA, Vivek Murthy, emitiu um alerta sobre os riscos
dessas mídias. O relatório afirma que, apesar de a ciência ainda não
ter alcançado consenso a respeito, há fortes indícios de que elas possam
prejudicar a saúde física e mental dos mais jovens.
O aumento do uso das plataformas tem sido
acompanhado por uma alta nos casos de ansiedade, depressão, automutilação e
ideação suicida —mas ainda não se comprovou se a relação é causal.
Há pesquisas que mostram que o sistema de
recompensa das redes sociais, por meio das chamadas "curtidas",
estimulam processos neurológicos similares aos verificados em dependentes
químicos; já outras revelam benefícios, como conexão emocional e comunitária
entre os jovens.
A falta de consenso leva o relatório
americano a pedir por um esforço científico de investigação. Enquanto isso,
medidas vão sendo tomadas. Em março, Utah proibiu que menores de 18 anos tenham
contas em redes sem a anuência de pais ou responsáveis.
Entretanto, em vez da proibição,
especialistas apontam para a importância da educação digital.
O objetivo deve ser capacitar crianças e
adolescentes para lidarem com a poluição informacional das redes: diferenciar
textos opinativos de noticiosos, investigar a veracidade das informações,
produzir conteúdos com responsabilidade, proteger a privacidade, reconhecer
abusos e buscar ajuda, quando necessário.
Assim, busca-se a redução dos potenciais
efeitos nocivos das fake news, do discurso de ódio, da superexposição e do
cyberbullying —que podem gerar ou agravar transtornos mentais.
No Brasil, o Congresso discute uma
regulamentação das redes repleta de dispositivos controversos, enquanto a Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) já recomenda o chamado letramento midiático.
Falta capacitar professores e colocar a orientação em prática.
Pela disseminação recente e pelas mudanças provocadas, é natural que o uso das redes sociais gere preocupação e até medo. Mas o conhecimento obtido pela ciência e pela educação é a forma mais sensata de lidar com as adversidades.
Choque de realidade
O Estado de S. Paulo
Lula nunca perdeu o sono em razão de
questões ambientais, pois só se preocupa com o exercício do poder, razão pela
qual permitiu que o Congresso desossasse o Ministério de Marina
Corria o ano de 2010 quando o então
presidente Lula da Silva, com a verve que lhe é peculiar, entretinha plateias
de seus comícios contando a história da perereca impertinente que atrasava
obras. Segundo o petista, a obra de um túnel no Rio Grande do Sul ficou
paralisada por seis meses enquanto órgãos de proteção ambiental avaliavam o
impacto do projeto depois que foi encontrado ali um anfíbio ameaçado de
extinção. “Não podemos parar tudo por causa de uma perereca”, dizia Lula,
provocando gargalhadas.
Não foi uma queixa isolada. Lula sempre
reclamou de quem atrapalhava suas obras a pretexto de proteção do meio
ambiente, tema do qual jamais foi um entusiasta. Os tempos, contudo, são
outros, e a questão ambiental se tornou decisiva no mundo, razão pela qual Lula
teve que pelo menos fingir que se interessa pelo assunto. No seu terceiro
mandato, tratou de restabelecer o Ministério do Meio Ambiente e de reatar com
Marina Silva, a popstar do ambientalismo, anos depois de tê-la atropelado para
construir a hidrelétrica de Belo Monte.
Mas o compromisso de Lula com Marina durou
menos de seis meses. O presidente não mexeu um músculo enquanto o Congresso
desossava a medida provisória (MP) que reestruturou os Ministérios e órgãos
ligados à Presidência, devastando particularmente os Ministérios do Meio
Ambiente e dos Povos Indígenas, pastas caras à sua base de apoio popular. Tudo
isso em troca da manutenção do poder do núcleo palaciano.
Restou evidente que a Lula falta tônus
político até para impor a organização do primeiro escalão de seu governo. Mas
que o leitor não se engane, pensando que Lula possa ter sido vítima de uma
suposta ingerência do Congresso em suas prerrogativas constitucionais, como o
ministro da Justiça, Flávio Dino, insinuou de forma marota em uma publicação no
Twitter. Na realidade, o presidente, que de bobo não tem nada, decerto foi um
dos avalistas desse arranjo.
Dos 15 votos favoráveis ao relatório da
comissão mista encarregada de analisar a MP da reorganização do governo, nada
menos que 14 foram dados por parlamentares da base governista. Marina Silva
acordou no dia seguinte à votação contando apenas com a força de seu capital
simbólico. Quase tudo o mais foi embora. Sua pasta perdeu o controle sobre o
Cadastro Ambiental Rural (CAR) – documento voltado à regularização ambiental de
propriedades rurais – para a ministra da Gestão, Esther Dweck, que não
demonstra ter qualquer familiaridade com o assunto. O Meio Ambiente também
perdeu a Agência Nacional de Águas (ANA) para o Ministério da Integração e
Desenvolvimento Regional, chefiado por Waldez Góes, afilhado político do
senador Davi Alcolumbre (União-AP).
Os reveses na seara ambiental não ficaram
circunscritos à alteração da MP que reorganizou os Ministérios. A Câmara também
aprovou o regime de urgência para a votação do Projeto de Lei (PL) 490/07, que
restringe a demarcação de terras indígenas àquelas já ocupadas pelos povos
originários em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Os
deputados também aprovaram flexibilizações na Lei da Mata Atlântica com potencial
de aumentar o desmatamento de áreas do bioma protegidas pelo Código Florestal.
O PT de Lula da Silva deu votos decisivos
para a aprovação de todas essas medidas, desmascarando a falácia eleitoral
segundo a qual este seria um governo genuinamente comprometido com a
preservação ambiental e com a qualidade de vida dos povos indígenas. Atropelada
como a colega Marina Silva, a ministra Sonia Guajajara, que perdeu o poder de
demarcar terras indígenas para a pasta da Justiça, hoje não é mais que figura
decorativa na Esplanada.
Mudanças tão substanciais em um setor que
Lula vendeu durante a campanha como o grande diferencial de seu governo, em
contraste com a política de terra arrasada de seu adversário, Jair Bolsonaro,
decerto serviram como um choque de realidade para todos os que acreditavam que
Lula havia se tornado um herói da floresta. Ora, como todos deveriam saber a
esta altura, o petista jamais se deixará manietar por imperativos que não sejam
os do exercício do poder. A perereca gaúcha que o diga.
Uma corte constitucional contra a
Constituição
O Estado de S. Paulo
Mais uma vez prorrogados, os inquéritos
secretos do STF, que contrariam a Constituição e a jurisprudência da Corte,
ameaçam o Estado Democrático de Direito que deveriam defender
O ministro do Supremo Tribunal Federal
(STF) Alexandre de Moraes prorrogou por mais 90 dias o Inquérito 4.874, aberto
em julho de 2021 para investigar supostas milícias digitais. É a sétima vez que
a conclusão do inquérito é protelada. Mais longevo é o inquérito 4.781, de abril
de 2019. Ambos foram instaurados sob a justificativa de defender o Estado
Democrático de Direito e a independência da Suprema Corte. Mas sua perpetuação
está desmoralizando a autoridade da Corte e ameaçando a normalidade do Estado
Democrático de Direito.
O inquérito 4.781 (das “fake news”) foi
aberto para apurar ameaças na internet à Corte e seus ministros. Foi medida
legítima, escorada na lei e no Regimento Interno do STF. Mas já então ela foi
lanhada por um vício de origem. Sem justificativa razoável, o relator,
Alexandre de Moraes, contrariou o princípio da publicidade e decretou sigilo
sobre as investigações – o mesmo que impera sobre o inquérito das milícias
digitais.
Desde então, acumularam-se irregularidades.
Ainda em 2019, por exemplo, Moraes censurou reportagem da revista Crusoé por
suposta injúria ao ministro Dias Toffoli. Pouco depois, o próprio Moraes
corrigiu esse erro. Mas outros não tiveram a mesma sorte.
Todo poder emana do povo. O da Justiça
também. Mas, ante a capa do sigilo, o povo não pode escrutinar a competência e
a legalidade de diversas medidas excepcionais no âmbito desses inquéritos, como
a prisão ou censura de representantes eleitos, jornalistas, empresários e
influenciadores, quebras de sigilo, bloqueios de contas ou multas exorbitantes.
Além de início, meio e fim, toda
investigação deve ter objeto certo e determinado. Mas, sob o pretexto de
circunstâncias excepcionais, os inquéritos foram alargados a ponto de conferir
à Corte uma espécie de juízo universal de defesa da democracia. Um inquérito de
2019 instaurado para investigar informações fraudulentas e ameaças ao STF foi
empregado em 2023 para arbitrar o debate sobre o projeto de regulação das redes
digitais, através da censura a manifestações críticas das plataformas. Até denúncias
de falsificação do cartão de vacinação do ex-presidente da República e outras
autoridades foram fagocitadas pelos intermináveis e indetermináveis inquéritos.
A excepcionalidade dos atentados do 8 de
Janeiro também serviu de pretexto a toda sorte de discricionariedade.
Contrariando a Lei Orgânica da Magistratura, Moraes se manifestou várias vezes
fora dos autos em redes sociais, qualificando investigados como “terroristas” e
ameaçando-os com punição implacável. Prisões preventivas foram decretadas de ofício
e estendidas arbitrariamente. Prova disso foi a decisão de soltar, entre os
presos por alegado envolvimento no 8 de Janeiro, apenas mulheres (149 no total)
por ocasião do Dia Internacional da Mulher, como se sua liberdade não fosse um
direito fundamental a ser garantido tão logo verificadas as condições legais,
mas um beneplácito concedido pelo ministro em razão de uma efeméride.
Em tempos trevosos e turbulentos, o STF
prestou grandes serviços à Nação na defesa firme da Constituição.
Particularmente importante para a restauração da ordem jurídica foram as
retificações de abusos cometidos no âmbito da Operação Lava Jato em nome do
combate à corrupção, como as competências extensivas autoatribuídas pela 13.ª
Vara Federal de Curitiba, inquéritos sem prazo certo, prisões arbitrárias e
outros atropelos do devido processo legal, muitas vezes motivados, como
reconheceu a Corte, por parcialidade política.
Se não há no direito brasileiro competência
universal para combater a corrupção, tampouco há para investigar todas as
ocorrências relativas à Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito. Exceto
em condições excepcionalíssimas, inquéritos devem ser conduzidos com
transparência e publicidade, e, sobretudo, devem ter objeto determinado e um
desfecho, seja a denúncia, seja o arquivamento. É o que determina a
Constituição, a lei e a jurisprudência da Corte. Mas, em nome da defesa da
democracia, a própria Corte – guardiã da Constituição e instância máxima do
Poder Judiciário – as está descumprindo.
Mais pressão sobre o Banco Central
O Estado de S. Paulo
Com arcabouço fiscal e inflação menor,
empresários se unem ao governo para demandar queda nos juros
Com a rejeição dos destaques, a Câmara
concluiu a votação do arcabouço fiscal. O projeto segue agora para o Senado,
onde a expectativa é aprová-lo antes do recesso parlamentar. Na Câmara, o
espaço extra para gastos foi reduzido de mais de R$ 80 bilhões para algo entre
R$ 15 bilhões e R$ 28 bilhões, condicionado ao cumprimento do ambicioso
objetivo de zerar o déficit em 2024. Mais rígido do que o governo queria e mais
frouxo do que a oposição desejava, o sucesso do arcabouço dependerá fortemente
do aumento de receitas.
Bem ou mal, trata-se da primeira vitória do
governo Lula no Legislativo, e ainda que ela se deva menos à articulação
política do petista e de seus ministros e mais à liderança do presidente da
Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e ao esforço do ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, é fato que o mercado financeiro reagiu bem à aprovação da proposta.
Mais do que o reconhecimento do compromisso
fiscal do governo, da credibilidade das projeções, da perenidade do dispositivo
e de sua capacidade para estabilizar a trajetória da dívida pública no médio
prazo, o movimento foi um ajuste de posições de investidores diante da
diminuição da percepção de risco. Afinal, bem ou mal, o País voltará a ter
algum limite para o crescimento das despesas, o que não existia desde a
completa desmoralização do teto de gastos.
Assim, as atenções se voltam imediatamente
para o Banco Central (BC), alvo preferencial de Lula. O BC já havia afirmado,
nas atas das reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom), que a
apresentação do arcabouço reduzia incertezas, embora não houvesse relação
mecânica entre a aprovação da proposta e a convergência da inflação. A
autoridade monetária havia reconhecido, no entanto, que um arcabouço sólido e
crível poderia levar a um processo desinflacionário mais benigno, reduzindo as
expectativas e, consequentemente, as projeções com as quais o Copom trabalha.
Horas antes da aprovação do arcabouço, no
entanto, o presidente do BC, Roberto Campos Neto, foi instado a levar em conta
em suas decisões, além das expectativas do mercado, a percepção das empresas
sobre a economia brasileira. Como mostrou o Estadão, em um almoço com a cúpula
do Congresso, ele ouviu de alguns dos maiores empresários do País críticas
sobre o patamar da taxa básica de juros e alertas sobre a situação delicada por
que passa o setor produtivo.
Para completar o quadro, no dia seguinte à
aprovação do arcabouço, o IPCA-15, prévia do índice oficial de inflação do mês
de maio, subiu 0,51%, menos do que o esperado. Ainda assim, Campos Neto manteve
o discurso. Disse que ainda é preciso ter certeza de que a inflação vai
convergir à meta e mencionou a lentidão do ritmo do processo desinflacionário,
um trabalho que requer “paciência e sinergia”.
Há dúvidas sobre se o arcabouço será capaz
de estabilizar a dívida pública – e o endividamento, afinal, é um fator que
contribui para manter os juros em níveis elevados. O que é certo é que a
pressão sobre o BC deve aumentar ainda mais.
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