Eu & / Valor Econômico
No atual momento, o mais importante para os
defensores de uma democracia robusta no Brasil não é saber se devem ser governo
ou oposição
A democracia é a combinação da soberania
popular - expressa por eleições livres, limpas e competitivas - com a garantia
de direitos individuais e coletivos, com base na Constituição e na atuação de
seus intérpretes legítimos. Em poucas palavras, o primeiro campo é o da
política, e o segundo, o do controle democrático. Desde 1988 o Brasil avançou
bastante nesses dois mundos institucionais. Porém, há hoje uma crise em ambos e
no relacionamento entre eles. Mudar este cenário é decisivo para o futuro do
país.
Qualquer proposta de aperfeiçoamento da
democracia brasileira passa, em primeiro lugar, por fazer justiça em relação ao
seu avanço recente. O Brasil não teve uma trajetória democrática na maior parte
de sua história. Teve períodos oligárquicos e autoritários, ambos contrários à
participação popular e ao controle republicano do Estado. Somente com a
redemocratização, e especialmente a partir da Constituição de 1988, montou-se
um sistema genuinamente democrático.
No campo mais especificamente político, têm sido realizadas eleições nacionais, estaduais e municipais com alto teor democrático, particularmente se comparadas à história do país e da própria região. O Brasil é um país territorialmente complexo e desigual do ponto de vista político, com 5.568 eleições locais para prefeito num sistema multipartidário. Quantos países fazem isso? O plano federal foi governado por presidentes de quatro partidos diferentes desde 1985, que tiveram de montar amplas coalizões e realizar diversas negociações para governar.
É inegável que há imperfeições no sistema
político brasileiro, mas foram lideranças políticas democráticas, e não
tecnocratas protegidos por governantes autoritários, que criaram políticas
públicas importantes que garantiram a estabilidade financeira e produziram
ampla inclusão social. A cara do país é bem melhor do que a legada pela
ditadura militar, quando havia os famintos do Nordeste, a alta taxa de
mortalidade infantil, o baixo percentual de escolaridade, em suma, gigantesca
desigualdade. O Bolsa Família é copiado por outras nações, assim como inovações
de governos subnacionais, como a política educacional de Sobral. Tudo isso foi
obra da política, com muito diálogo e busca de legitimidade mais ampla.
As instituições de controle também têm um
lugar importante nas conquistas democráticas recentes. As ações do Estado
brasileiro são muito mais transparentes e controladas do que no passado. Falar
que há mais corrupção hoje é comparar uma situação em que há a luz iluminando
as coisas com outra em que a escuridão inviabiliza o conhecimento dos fatos.
Mas o avanço foi muito além dessa agenda. Os Ministérios Públicos têm tido um
papel muito relevante em áreas como meio ambiente e proteção das crianças e
adolescentes, garantindo efetivamente direitos difusos. A atuação dos Tribunais
de Contas e da Controladoria Geral da União têm se voltado gradativamente para
uma agenda de melhoria das políticas públicas, com menos ênfase na mera
punição.
Não se pode esquecer das diversas decisões
do Supremo Tribunal Federal que reforçaram direitos individuais e coletivos. No
período conturbado do bolsonarismo, o STF foi a salvaguarda mais importante da
democracia brasileira. Mais do que isso, junto com o TSE, garantiu a
continuidade democrática do país após a conturbada eleição de 2022 e,
sobretudo, está investigando uma enorme tentativa de golpe de Estado, que vai
muito além dos fatos de 8 de janeiro de 2023.
Feita a justiça em relação ao sucesso, é
preciso falar dos problemas da política e do controle institucional. No caso do
mundo dos políticos, as dificuldades e os erros sempre são mais expostos, por
conta da dinâmica eleitoral, da competição entre situação e oposição, bem como
pela maior facilidade de a população entender o que acontece no Executivo, pois
seus atos têm impacto direto sobre a vida dos cidadãos.
Muitas reformas políticas têm sido feitas
para corrigir tais problemas. Isso faz parte da vida democrática, podendo até
ser um indício de vitalidade. As instituições de controle têm aqui um papel
relevante em ajudar no aperfeiçoamento do sistema político e administrativo,
tendo realizado essa função por diversas ocasiões. Entretanto, como mostrou o
estudo seminal de Rogério Arantes, desde a década de 1990 havia sinais de que
determinados controladores poderiam optar pelo personalismo voluntarista e por
comportamentos autoritários e opacos.
Poucos devem se lembrar do procurador
federal da República Luiz Francisco de Souza e seu jacobinismo investigatório
durante os anos FHC. Ali já se vislumbrava que os órgãos de controle poderiam
exacerbar suas funções em nome de objetivos pretensamente nobres, mas que no
fundo encobriam um forte desejo de influenciar a política por meio de
instrumentos falsamente impessoais. Mas não se tratava apenas de um conjunto de
diletantes, mas sim de modelo organizacional que abarcava grupos e coalizões
políticas internas, especialmente nos Ministérios Públicos e na magistratura.
Uma leitura imperdível para entender a
politização exacerbada dos controladores é o livro de Rafael Viegas “Caminhos
da política no Ministério Público Federal”, que será lançado no início de
junho. Fiz o prefácio da obra e ressaltei que o amplo material empírico
revelava que procuradores, como promotores estaduais, por vezes vendem a ideia
de que estão defendendo o interesse público quando estão atuando para proteger
os seus projetos e visões de mundo. O texto é fundamental porque revela em
detalhes diversas formas que tornam o MPF menos “accountable” para a sociedade
e mais poderoso junto ao sistema político.
Só que há uma possibilidade pior do que
criar modelos organizacionais que falseiam o sentido público da ação de
procuradores e promotores. Algo feito por alguns deles, junto com integrantes
da magistratura e de outros órgãos de fiscalização e controle, como bem
expresso na Lava-Jato: a utilização de instrumentos pretensamente imparciais
para fazer política de fato, inclusive ignorando regras básicas do direito e
lutando para tornar ilegítimos os eleitos democraticamente. O conluio indevido
e antidemocrático entre Ministério Público e Judiciário, representado pela
dupla Moro-Dallagnol, foi um desserviço para a enorme importância que devem ter
os órgãos de controle no combate à corrupção e na garantia de direitos.
Talvez seja necessário ir um pouco além no
argumento: a Lava-Jato representou um projeto de destruição institucional do
sistema político, procurando substituir a legitimidade dos eleitos por membros
não eleitos que tinham o poder absoluto do Estado para vigiar e punir. Essa
politização exacerbada e fora do esquadro democrático desorganizou o sistema
político e claramente permitiu a ascensão da extrema direita ao poder, cujo
objetivo, como se percebe cada dia mais, era acabar com a própria democracia.
A reação ao excesso de poder dos
controladores foi, num primeiro momento, a busca de autoproteção, encontrando
um “inimigo” para expelir do jogo com o intuito de mostrar à sociedade que tudo
estava voltando ao normal. Foi o plano Romero Jucá: um acordão de salvação, com
“o Supremo, com tudo”. O paradoxo é que foi possível por um tempo manter a
Lava-Jato como poder maior da República, tirar Dilma da Presidência para
sinalizar a limpeza do sistema e salvar grande parte da elite política
tradicional. Para entender o enredo vertiginoso e trágico dessa história, não
deixem de ler o novo livro de Fernando Limongi, “Operação impeachment”.
O que parecia o auge dos controladores foi
o começo da queda, simbolizado pelo governo Bolsonaro, que tentou acabar com
toda a “accountability” democrática de seu governo, tendo Sergio Moro em seu
ministério, a maior das ironias. As resistências da sociedade, de parte da
Federação e do STF, bem como da comunidade internacional, evitaram a autocracia
bolsonarista, mas o custo pago por este processo ainda nos aflige. O sistema político
vingou-se dos seus algozes e tornou-se, desde o início da presidência de Arthur
Lira na Câmara dos Deputados, em 2021, mais ensimesmado e fora de controle
democrático.
O novo mundo opaco e grandioso das emendas
parlamentares, mesmo com a decisão recente do STF sobre o chamado Orçamento
secreto, está vivíssimo e se tornou o coração do sistema político. O
financiamento público dos partidos, necessário após o fim da forma privada e
corrupta que vigorava antes, gerou uma partidocracia sem limites. A PEC que
anistia as legendas por crimes eleitorais, não só devido ao mau uso dos
recursos, mas também por terem burlado os mecanismos para aumentar a presença
de negros e mulheres no sistema político brasileiro, é um tapa na cara da
democracia e do espírito republicano da Constituição de 1988.
No atual momento, o mais importante para os
defensores de uma democracia robusta no Brasil não é saber se devem ser governo
ou oposição. O desafio maior é como melhorar a política e os controles, pois os
dois são fundamentais para manter o regime democrático. A fragilidade de ambos
os campos institucionais favorece o sentimento antipolítico que alimentou o
extremismo bolsonarista e pode no futuro alçar outras formas aventureiras e
autoritárias de volta ao pináculo do poder.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário