sexta-feira, 26 de maio de 2023

Fernando Abrucio* - Melhorando o controle e a política

Eu & / Valor Econômico

No atual momento, o mais importante para os defensores de uma democracia robusta no Brasil não é saber se devem ser governo ou oposição

A democracia é a combinação da soberania popular - expressa por eleições livres, limpas e competitivas - com a garantia de direitos individuais e coletivos, com base na Constituição e na atuação de seus intérpretes legítimos. Em poucas palavras, o primeiro campo é o da política, e o segundo, o do controle democrático. Desde 1988 o Brasil avançou bastante nesses dois mundos institucionais. Porém, há hoje uma crise em ambos e no relacionamento entre eles. Mudar este cenário é decisivo para o futuro do país.

Qualquer proposta de aperfeiçoamento da democracia brasileira passa, em primeiro lugar, por fazer justiça em relação ao seu avanço recente. O Brasil não teve uma trajetória democrática na maior parte de sua história. Teve períodos oligárquicos e autoritários, ambos contrários à participação popular e ao controle republicano do Estado. Somente com a redemocratização, e especialmente a partir da Constituição de 1988, montou-se um sistema genuinamente democrático.

No campo mais especificamente político, têm sido realizadas eleições nacionais, estaduais e municipais com alto teor democrático, particularmente se comparadas à história do país e da própria região. O Brasil é um país territorialmente complexo e desigual do ponto de vista político, com 5.568 eleições locais para prefeito num sistema multipartidário. Quantos países fazem isso? O plano federal foi governado por presidentes de quatro partidos diferentes desde 1985, que tiveram de montar amplas coalizões e realizar diversas negociações para governar.

É inegável que há imperfeições no sistema político brasileiro, mas foram lideranças políticas democráticas, e não tecnocratas protegidos por governantes autoritários, que criaram políticas públicas importantes que garantiram a estabilidade financeira e produziram ampla inclusão social. A cara do país é bem melhor do que a legada pela ditadura militar, quando havia os famintos do Nordeste, a alta taxa de mortalidade infantil, o baixo percentual de escolaridade, em suma, gigantesca desigualdade. O Bolsa Família é copiado por outras nações, assim como inovações de governos subnacionais, como a política educacional de Sobral. Tudo isso foi obra da política, com muito diálogo e busca de legitimidade mais ampla.

As instituições de controle também têm um lugar importante nas conquistas democráticas recentes. As ações do Estado brasileiro são muito mais transparentes e controladas do que no passado. Falar que há mais corrupção hoje é comparar uma situação em que há a luz iluminando as coisas com outra em que a escuridão inviabiliza o conhecimento dos fatos. Mas o avanço foi muito além dessa agenda. Os Ministérios Públicos têm tido um papel muito relevante em áreas como meio ambiente e proteção das crianças e adolescentes, garantindo efetivamente direitos difusos. A atuação dos Tribunais de Contas e da Controladoria Geral da União têm se voltado gradativamente para uma agenda de melhoria das políticas públicas, com menos ênfase na mera punição.

Não se pode esquecer das diversas decisões do Supremo Tribunal Federal que reforçaram direitos individuais e coletivos. No período conturbado do bolsonarismo, o STF foi a salvaguarda mais importante da democracia brasileira. Mais do que isso, junto com o TSE, garantiu a continuidade democrática do país após a conturbada eleição de 2022 e, sobretudo, está investigando uma enorme tentativa de golpe de Estado, que vai muito além dos fatos de 8 de janeiro de 2023.

Feita a justiça em relação ao sucesso, é preciso falar dos problemas da política e do controle institucional. No caso do mundo dos políticos, as dificuldades e os erros sempre são mais expostos, por conta da dinâmica eleitoral, da competição entre situação e oposição, bem como pela maior facilidade de a população entender o que acontece no Executivo, pois seus atos têm impacto direto sobre a vida dos cidadãos.

Muitas reformas políticas têm sido feitas para corrigir tais problemas. Isso faz parte da vida democrática, podendo até ser um indício de vitalidade. As instituições de controle têm aqui um papel relevante em ajudar no aperfeiçoamento do sistema político e administrativo, tendo realizado essa função por diversas ocasiões. Entretanto, como mostrou o estudo seminal de Rogério Arantes, desde a década de 1990 havia sinais de que determinados controladores poderiam optar pelo personalismo voluntarista e por comportamentos autoritários e opacos.

Poucos devem se lembrar do procurador federal da República Luiz Francisco de Souza e seu jacobinismo investigatório durante os anos FHC. Ali já se vislumbrava que os órgãos de controle poderiam exacerbar suas funções em nome de objetivos pretensamente nobres, mas que no fundo encobriam um forte desejo de influenciar a política por meio de instrumentos falsamente impessoais. Mas não se tratava apenas de um conjunto de diletantes, mas sim de modelo organizacional que abarcava grupos e coalizões políticas internas, especialmente nos Ministérios Públicos e na magistratura.

Uma leitura imperdível para entender a politização exacerbada dos controladores é o livro de Rafael Viegas “Caminhos da política no Ministério Público Federal”, que será lançado no início de junho. Fiz o prefácio da obra e ressaltei que o amplo material empírico revelava que procuradores, como promotores estaduais, por vezes vendem a ideia de que estão defendendo o interesse público quando estão atuando para proteger os seus projetos e visões de mundo. O texto é fundamental porque revela em detalhes diversas formas que tornam o MPF menos “accountable” para a sociedade e mais poderoso junto ao sistema político.

Só que há uma possibilidade pior do que criar modelos organizacionais que falseiam o sentido público da ação de procuradores e promotores. Algo feito por alguns deles, junto com integrantes da magistratura e de outros órgãos de fiscalização e controle, como bem expresso na Lava-Jato: a utilização de instrumentos pretensamente imparciais para fazer política de fato, inclusive ignorando regras básicas do direito e lutando para tornar ilegítimos os eleitos democraticamente. O conluio indevido e antidemocrático entre Ministério Público e Judiciário, representado pela dupla Moro-Dallagnol, foi um desserviço para a enorme importância que devem ter os órgãos de controle no combate à corrupção e na garantia de direitos.

Talvez seja necessário ir um pouco além no argumento: a Lava-Jato representou um projeto de destruição institucional do sistema político, procurando substituir a legitimidade dos eleitos por membros não eleitos que tinham o poder absoluto do Estado para vigiar e punir. Essa politização exacerbada e fora do esquadro democrático desorganizou o sistema político e claramente permitiu a ascensão da extrema direita ao poder, cujo objetivo, como se percebe cada dia mais, era acabar com a própria democracia.

A reação ao excesso de poder dos controladores foi, num primeiro momento, a busca de autoproteção, encontrando um “inimigo” para expelir do jogo com o intuito de mostrar à sociedade que tudo estava voltando ao normal. Foi o plano Romero Jucá: um acordão de salvação, com “o Supremo, com tudo”. O paradoxo é que foi possível por um tempo manter a Lava-Jato como poder maior da República, tirar Dilma da Presidência para sinalizar a limpeza do sistema e salvar grande parte da elite política tradicional. Para entender o enredo vertiginoso e trágico dessa história, não deixem de ler o novo livro de Fernando Limongi, “Operação impeachment”.

O que parecia o auge dos controladores foi o começo da queda, simbolizado pelo governo Bolsonaro, que tentou acabar com toda a “accountability” democrática de seu governo, tendo Sergio Moro em seu ministério, a maior das ironias. As resistências da sociedade, de parte da Federação e do STF, bem como da comunidade internacional, evitaram a autocracia bolsonarista, mas o custo pago por este processo ainda nos aflige. O sistema político vingou-se dos seus algozes e tornou-se, desde o início da presidência de Arthur Lira na Câmara dos Deputados, em 2021, mais ensimesmado e fora de controle democrático.

O novo mundo opaco e grandioso das emendas parlamentares, mesmo com a decisão recente do STF sobre o chamado Orçamento secreto, está vivíssimo e se tornou o coração do sistema político. O financiamento público dos partidos, necessário após o fim da forma privada e corrupta que vigorava antes, gerou uma partidocracia sem limites. A PEC que anistia as legendas por crimes eleitorais, não só devido ao mau uso dos recursos, mas também por terem burlado os mecanismos para aumentar a presença de negros e mulheres no sistema político brasileiro, é um tapa na cara da democracia e do espírito republicano da Constituição de 1988.

No atual momento, o mais importante para os defensores de uma democracia robusta no Brasil não é saber se devem ser governo ou oposição. O desafio maior é como melhorar a política e os controles, pois os dois são fundamentais para manter o regime democrático. A fragilidade de ambos os campos institucionais favorece o sentimento antipolítico que alimentou o extremismo bolsonarista e pode no futuro alçar outras formas aventureiras e autoritárias de volta ao pináculo do poder.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

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