O Globo
Animalização e desumanização sempre
integraram o repertório dos que tentaram se impor como grupo superior
Erra quem atribui ao comportamento de
manada típico dos torcedores em arenas a escalada de violência racial
contra Vinicius
Junior nos estádios de Espanha. Erra
quem defende o racismo recreativo
disfarçado de humor como livre criação artística. Erra quem enxerga como mero
deslize a oferta de game supremacista na prateleira virtual de uma big tech.
Não é exagerada paixão futebolística. Não é exercício de liberdade de
expressão. Não é entretenimento de mau gosto. A multiplicação de ataques contra
pessoas negras e minorias tem motivação político-ideológica; está assentada em
estratégias de cooptação e doutrinação do extremismo de direita que se expande
mundo afora.
O craque que São Gonçalo (RJ) legou ao Real Madrid sofreu quase uma dezena de ataques racistas sob silêncio cúmplice ou condenação tímida de colegas, clubes, liga, federação, patrocinadores, autoridades. Grupos de torcedores adentravam estádios ofendendo o jogador excepcional que, um ano atrás, marcou o gol que deu ao time o título da Liga dos Campeões. Chamavam-no de macaco. Animalização e desumanização sempre integraram o repertório dos que tentaram se impor como grupo superior.
Em janeiro, um boneco vestindo a camisa 20
de Vini Jr. foi pendurado pelo pescoço num viaduto da capital espanhola. A cena
de violência extrema remetia à Era dos Linchamentos, que durou quase um século
nos Estados
Unidos, até os anos 1950, e tirou a vida de mais de 4 mil pessoas, a
maioria homens negros. A fotografia de um desses crimes do período de
segregação numa revista, em 1936, deu num poema indignado de Abel Meeropol. O
mesmo autor, mais tarde, musicou “Strange fruit” (“Estranha fruta”), canção
eternizada por Billie Holliday: As árvores do Sul dão uma fruta
estranha/Sangue nas folhas e sangue na raiz/Corpos negros balançando na brisa
do Sul/Estranha fruta pendurada nos álamos.
Foi outro signo poderoso do supremacismo
branco dirigido a Vinícius. Mas as autoridades locais só começaram a agir
depois que os ataques ameaçaram as relações diplomáticas Brasil-Espanha. No
mesmo domingo em que se tornaram públicas as imagens de um estádio inteiro, em
Valencia, xingando o jogador, o presidente Lula e
os ministros Anielle Franco, da Igualdade Racial, e Silvio
Almeida, dos Direitos Humanos, manifestaram solidariedade ao
jogador, um jovem negro brasileiro de 22 anos.
Vini Jr. interrompeu a partida, apontou
criminosos na arquibancada, foi agredido por um adversário em campo e terminou
expulso. Recebeu do árbitro o cartão vermelho, após uma aferição em vídeo que
deliberadamente omitiu o golpe que sofreu. A sequência de agressões combinada à
impunidade até então vigente fez o governo brasileiro emitir uma nota conjunta
de cinco ministérios — além de Igualdade Racial e Direitos Humanos, Justiça,
Esportes e Relações Exteriores. A embaixadora da Espanha no Brasil foi
acionada; o primeiro-ministro Pedro Sánchez se manifestou numa rede social.
A reação firme do jogador, em campo e em
posts, a avalanche de apoio público e a intervenção do governo provocaram a
resposta na Espanha. Por muito tempo, o presidente da Liga Espanhola (La Liga),
Javier Tebas, fez o que pôde para minimizar os ataques e desqualificar as
queixas do jogador. Ele é ligado ao Vox, partido de extrema direita saudoso da
Espanha franquista. Só se desculpou depois que sentiu a pressão financeira de
perder patrocinadores. O árbitro de vídeo foi expulso e o cartão vermelho
suspenso, em decisão inédita. Sete torcedores foram presos por crime de ódio,
mas liberados mediante fiança.
Organizações sociais se mobilizaram por
justiça. Centro de Articulação de Populações Marginalizadas e Movimento
Nacional de Direitos Humanos apresentaram ao Defensor del Pueblo queixa por
racismo e xenofobia. Quarta-feira que vem, a ONG Geledés promove evento sobre
estratégias de enfrentamento ao racismo global, em iniciativa paralela à sessão
do Fórum das Nações Unidas sobre Afrodescendentes. A intenção é discutir formas
de mitigar o “racismo ideológico reforçado pelo discurso nacionalista e
discriminatório da extrema direita”. Ao menos 160 entidades endereçaram à
delegação da União Europeia no Brasil carta reivindicando responsabilização e
justiça nos crimes contra o jogador.
Aqui, o Ministério Público Federal abriu
investigação para apurar a oferta do Simulador da Escravidão na Play Store, do
Google. No jogo, excluído da loja virtual após denúncias, usuários assumem o
papel de donos de escravizados. Além da ideia abjeta de fazer do período infame
entretenimento, o aplicativo chamava a atenção pela estética. Personagens,
ambientes e figurinos remetiam ao período colonial, como em gravuras de
Jean-Baptiste Debret. Traziam representações fiéis da época em que negros e
indígenas foram subjugados por um regime brutal de exploração que ficou para
trás. Mas que extremistas contemporâneos —inconformados com a luta coletiva por
direitos e com vitórias individuais de pessoas como Vinícius — tentam
ressuscitar. Não passarão.
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