Valor Econômico
Economias capitalistas já criaram programa similar para tornar um sistema financeiro mais saudável para todos
É da maior relevância para o país a nova Medida Provisória nº 1.176, de 6 de junho de 2023, que institui o programa emergencial de negociação de dívidas de pessoas físicas inadimplentes, o “Desenrola Brasil”: num país com 69,4 milhões de inadimplentes, número 7,8% maior do que no ano passado, qualquer programa que busque resolver problemas de crédito com uma reestruturação organizada da inadimplência merece calorosa recepção. O anúncio foi eclipsado pelo programa governamental do carro popular e ainda não está operacional, mas, mesmo assim, o Desenrola passou por muita discussão e diversas resistências foram superadas, inclusive de problemas de compatibilidade de informações e sistema.
Em primeiro lugar, há o princípio do leilão
holandês (também conhecido por leilão reverso), leilão em que o lance vai
diminuindo gradualmente até que algum participante esteja disposto a pagar pelo
maior deságio, num processo cujo lance mínimo para venda geralmente alcança
maiores preços do que em outras formas mais tradicionais. Em segundo lugar,
também de forma controlada do ponto de vista de recursos públicos, prevê o
estabelecimento de um fundo de garantia de operações (FGO), que alinhará
incentivos para que os credores possam participar do programa com uma limitação
na primeira faixa de até R$ 5 mil no somatório das dívidas financeiras.
Aliás, renegociar dívidas já é prática
corrente em todo o sistema capitalista, uma vez que são dívidas de natureza
privada que constam do cadastro de inadimplentes e hoje representam o maior
obstáculo à concessão do crédito. O crescimento no número de operações ativas
das carteiras de crédito dos bancos desaguou numa onda de inadimplência,
consequências conjunturais de uma economia volátil sujeita às variações do
momento.
A limitação temporal (até 12/22) e de valor
que o Desenrola Brasil permite, nesta primeira faixa, não abrangerá dívidas com
garantia real ou garantia de financiamento imobiliário ou mesmo funding e risco
de terceiros.
O programa limita adequadamente o efeito do
moral hazard. O conceito de moral hazard é o da “rede de proteção universal”,
segundo o qual sempre haverá mecanismos para resgatar o agente que incorreu em
tamanhos riscos (valendo a máxima de que, se o salvamento é automático e independe
do risco, maior será a vontade de arriscar-se).
No Desenrola Brasil, parte desses recursos
serão destinados ao programa Pronampe, que envolve pessoas jurídicas e,
portanto, endereçam os créditos concedidos no período da pandemia. Há uma
diferença entre anistia, a concessão de perdão incondicional, e uma
renegociação estruturada de dívida, que é o caso aqui.
Do ponto de vista de recuperação da
inadimplência, são os agentes financeiros intermediários que devem participar
desse leilão e contar com a garantia do Tesouro Nacional, o que beneficiará até
40 milhões de pessoas, na primeira faixa, com mais de R$ 50 bilhões de dívidas
negociadas, representando verdadeiro programa social.
A prática bancária apresenta algumas
soluções para o tipo de risco de inadimplência em questão, a saber: a exigência
de garantias adicionais, a exigência de uma provisão adequada para devedores
duvidosos, a limitação das operações com ativos e/ou clientes individuais; o
estabelecimento de limites de alavancagem operacional, entre outras. Trata-se
de formas tradicionais de lidar com a possível inadimplência de clientes em
qualquer tempo e lugar. A participação do Estado na solução do problema tem
enfoque diferente e não deveria ter matiz ideológica alguma. A maior parte das
economias capitalistas já desenharam algum tipo de programa similar com o único
e meritório objetivo de tornar um sistema financeiro mais saudável para todos.
Já na segunda faixa, a estimativa do
próprio Ministério da Fazenda é de abranger cerca de 30 milhões de pessoas, e
segundo o Secretário de Reformas Econômicas, Marcos Pinto, o Desenrola Brasil
estará acompanhado de um programa de educação financeira, opcional, que é
fundamental para orientar aqueles que aderirem ao programa a não voltarem a
incidir no mesmo comportamento de descontrole financeiro.
O assunto está relacionado ao
superendividamento, que representa quase 15% do total de famílias pelo Brasil.
Já se falou em criar certos mecanismos dentro de uma estrutura institucional
que pudessem flexibilizar o direito absoluto do credor, como, por exemplo,
trazer o conceito de primariedade, alterar o indexador de taxa de juros,
determinando um limite mínimo abaixo do qual não seria permitido negativar uma
única vez o inadimplente etc., mas conquanto não se tenha avançado nisto, o
programa mitiga riscos maiores de moral hazard.
O Desenrola Brasil também acerta quando
estabelece uma segunda faixa em que pessoas físicas e jurídicas também têm
incentivos para negociar suas dívidas, já que estes agentes financeiros poderão
apurar, depois, créditos presumidos e créditos tributários, decorrentes de
diferenças temporárias. Tais efeitos são importantes, ainda que não
inteiramente novos, para certos programas de capital de giro e também de
estímulo ao crédito.
Assim, é importante pensar no Desenrola Brasil como um programa de saneamento do consumidor bancário, um programa que visa regularizar e devolver a saúde ao consumidor. Ganham todos, bancos, porque recuperam seus créditos, governo, porque recupera o cidadão, e o próprio consumidor, que recupera a sua reputação, pois, segundo o Instituto Locomotiva, 71% dos inadimplentes acreditam que o “nome limpo” é o seu bem mais precioso.
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