sexta-feira, 9 de junho de 2023

Vera Magalhães - Lula precisa de reforma para além de agrado a Lira

O Globo

Sem um programa claro do governo e um canal permanente para entender as demandas da sociedade, cada votação custará bilhões

As dificuldades enfrentadas por Lula no início de sua gestão decorrem menos dessa ou daquela peça que não esteja funcionando na engrenagem do governo e mais da cisão na sociedade, que permanece passados quase seis meses da posse.

Não será uma mexida ministerial para contentar esse ou aquele grupo de deputados que fará o presidente se aproximar do eleitorado evangélico, como se constata depois da vaia destinada a ele na Marcha para Jesus, nesta quinta-feira.

A reforma tem de ser mais profunda e passar pela compreensão das forças que regem a sociedade e de formas de dialogar com elas, sem necessariamente trair compromissos históricos e aqueles professados na campanha. Pelo contrário: talvez a definição clara de princípios e prioridades para este mandato trate de amalgamar um apoio para além da vazia e cada vez mais instrumentalizada divisão do Brasil grosseiramente em “esquerda” e “direita”.

Quando Lula e o PT estavam mais à esquerda do que hoje e não tinham governado o país ainda, conseguiram atrair evangélicos, empresários, a maioria do agronegócio, industriais e segmentos do mercado financeiro. Por que não agora? Porque houve o impeachment, Jair Bolsonaro, a polarização foi alimentada pelos dois lados, e hoje todos os setores parecem estar viciados em analisar todo e qualquer problema complexo sob lentes redutoras meramente ideológicas.

O que Alexandre de Moraes fez em seu voto sobre o marco temporal foi tirar o assunto desse ringue emburrecedor e trazê-lo para o campo do Direito, combinado com o bom senso. Disse o óbvio: a Constituição não estabeleceu marco temporal algum ao reconhecer o direito dos indígenas ao seu território. Porém esse direito tem de ser cotejado com demandas muitas vezes legítimas, seja de fazendeiros estabelecidos, seja para os casos em que municípios estão consolidados, e simplesmente desalojá-los não é uma possibilidade factível.

É para isso que governos, parlamentares e juízes existem: para compatibilizar o que dizem as leis e as demandas concretas dos indivíduos e dos grupos sociais. Esse deveria ser o olhar a guiar Lula e o PT para uma reaproximação não oportunista com os evangélicos. Não apenas por uma necessidade eleitoral, que existe, mas porque, para governar um país complexo como o Brasil, é necessário ter o que propor a um contingente de mais de 30% da população, sem preconceitos ou sem cometer o erro de achar que todo evangélico é bolsonarista ou de extrema direita.

Qual pode ser o antídoto para o antilulismo que Bolsonaro foi bem-sucedido em inocular entre os neopentecostais? Uma agenda social sólida, que congregue transferência de renda, educação, oportunidade de trabalho e respeito a uma compreensão de mundo diferente daquela mais difundida entre o público mais progressista, que historicamente vota no petista.

Foi um erro não contemplar, entre mais de cem cadeiras no Conselhão, um órgão consultivo, ao menos uma liderança evangélica — um representante católico, o padre Júlio Lancellotti, está merecidamente entre os conselheiros. Da mesma maneira, depois do que se viu na campanha eleitoral, é inexplicável que o governo e os partidos de esquerda não tenham previsto que a extrema direita usaria a discussão do PL das fake news para mais uma safra de mentiras para indispor Lula e a esquerda com o público evangélico.

É muita dissociação do que acontece para além da bolha lulopetista. Se essa miopia prosseguir, não será trocando Daniela do Waguinho por Celso do Lira que a tal governabilidade virá. Sem que haja um programa claro do governo e um canal permanente para entender as demandas da sociedade — mesmo quando elas forem antagônicas à agenda do PT e de Lula —, cada votação custará bilhões, e todo pretexto será válido para pedir a cabeça de ministros. Não há paz para governar nessas bases.

 

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