sexta-feira, 9 de junho de 2023

Fernando Abrucio* - A agenda do futuro contra o passado

Eu & / Valor Econômico

É preciso perguntar à elite da classe política brasileira se ela quer seguir a lógica do retrovisor ou preparar o Brasil para os desafios do século XXI

As decisões tomadas nas últimas semanas confirmam que grande parte da classe política acredita na máxima criada por Millôr Fernandes: “O Brasil tem um enorme passado pela frente”. Ataque à agenda ambiental, tentativa de reduzir os direitos dos povos indígenas, confusão entre o que é liberdade de expressão e os crimes de ódio na internet, subsídios temporários à velha indústria automobilística (e não às suas novas formas) e, o mais fascinante choque de temporalidades, a descoberta de corrupção alimentada pelo secular clientelismo na compra de itens de robótica para escolas. Essa é apenas parte de uma lista de um país cuja elite ainda não entendeu que precisamos montar uma agenda para enfrentar os desafios do século XXI.

É óbvio que montar uma agenda para o futuro supõe atuar contra mazelas atuais ou que nunca foram realmente vencidas, como o racismo. Mas não é possível lutar contra o que está errado hoje com as mesmas armas do passado. Fazer a ponte entre o combate ao atraso estrutural do Brasil e as necessidades do século XXI deveria ser a tarefa mais importante de nossa elite política e social.

Infelizmente, a maioria dos políticos brasileiros está adotando o retrovisor como guia de suas ações. Uma parte deles para defender grupos de interesses que não querem mudar seu status quo, pois manter o país como ele é hoje significa consagrar um modelo social que os privilegiou até agora. Outra porção luta contra o futuro porque tem medo de mudar, temendo uma sociedade mais aberta. Há ainda uma parcela que escolhe visões de mundo ultrapassadas por seguir ideologias ou porque não entende o sentido das transformações contemporâneas. De todo modo, poucos têm se arriscado em defender ideias que olhem basicamente para frente.

Mesmo não havendo um guia completamente certeiro para definir os caminhos futuros do país, alguns estudos e evidências apontam para temas com impacto amplo sobre os principais problemas brasileiros, de modo a gerar um efeito bola de neve, que traz ganhos crescentes à sociedade. São poderosas alavancas para enfrentarmos melhor os desafios do século XXI e, ao mesmo tempo, reduzirmos drasticamente o legado negativo do passado.

Haveria uma lista maior de alavancas para o futuro, mas três podem ser destacadas aqui, neste curto espaço da coluna, por terem um impacto amplo e profundo. A primeira delas é a política para a primeira infância. É claro que outras faixas etárias de crianças e jovens também precisam de atenção, especialmente os adolescentes que têm abandonado a escola, seguindo para o mundo do crime ou para uma profissionalização precária, o que os condena ao desemprego ou à informalidade com baixos rendimentos nos próximos anos.

A escolha pela centralidade estratégica da primeira infância ocorre não em detrimento de outras faixas etárias, mas por ser um investimento com maior alcance e profundidade sobre as gerações futuras. As evidências científicas revelam que se crianças até os 6 anos de idade receberem os cuidados e estímulos necessários, elas terão mais chances de se desenvolverem no futuro. Aprenderão e avançarão mais na escola, terão melhor saúde, menos possibilidades de entrarem na criminalidade, poderão encontrar empregos mais qualificados e tenderão a ser mais resilientes frente aos inúmeros desafios da vida adulta.

Ter jovens mais preparados para a vida é fundamental para todos os países. Ao caso brasileiro, acrescente-se mais uma coisa: investir na primeira infância é uma arma fundamental contra suas enormes desigualdades. Neste sentido, quando se fala em política pública para crianças até os 6 anos de idade, o objetivo maior é atingir aquelas que vivem nos territórios e famílias mais vulneráveis. Combate-se assim o mal das disparidades sociais em suas raízes, garantindo aos indivíduos uma maior igualdade de oportunidades num momento temporal que afeta os demais ciclos etários.

O impacto das políticas de primeira infância, ressalte-se, não atinge apenas as crianças envolvidas. As famílias são fortemente beneficiadas por esse tipo de ação, gerando maior informação, apoio e recursos para a criação de suas filhas e filhos. As mães podem trabalhar mais tranquilamente e ter acesso a práticas de cuidado que podem melhorar a compreensão do mundo à sua volta.

Interessante notar que se a política de primeira infância for efetivamente integral, abarcando todos os aspectos necessários para o desenvolvimento infantil, esse efeito do indivíduo (a criança) pode chegar às suas famílias e, depois, pode se ampliar para outros grupos familiares na vizinhança, que participando dessas políticas mudam coletivamente a sua visão de mundo (o mindset) e podem inclusive conversar sobre todo esse processo.

Eis aqui uma das razões de essa política pública ser uma alavanca tão poderosa de transformação social apontada para um futuro melhor: ela faz a ponte entre a mudança individual futura e o impacto imediato no coletivo de pais e mães de um território.

Os desafios de uma política integral de primeira infância são imensos. O seu sucesso passa, primeiro, por uma maior articulação colaborativa entre os três entes federativos com o intuito de dar escala a essa política numa estrutura municipal bastante desigual. Depois, é fundamental garantir a intersetorialidade, pois a criança deve receber serviços articulados nos campos da saúde, educação e assistência. E, por fim, é preciso capacitar bem os profissionais da ponta do sistema, para que possam atuar de forma efetiva junto às famílias mais carentes, tornando-as também partícipes do processo de desenvolvimento infantil de seus filhos e filhas.

Como se vê, a política da primeira infância é uma tarefa ampla e complexa, mas que pode mudar o futuro do país. É nisto que os políticos de Brasília e de todos os recantos do país deveriam estar pensando, e não em agendas particulares, exotéricas ou do passado.

Uma segunda alavanca para nos jogar mais rapidamente a um futuro melhor é a reforma tributária. Isso se deve a duas razões. A primeira é que a lógica dos tributos brasileiros geralmente é regressiva, prejudicando os mais pobres. Mudar esse padrão é fundamental para combater a desigualdade. Existe também uma segunda razão, tão importante quanto a primeira: o atual sistema de impostos e contribuições é um obstáculo para o crescimento econômico e para a criação de empregos.

A tributação indireta brasileira é um manicômio econômico, portadora de grande instabilidade jurídica e objeto de mudanças constantes e negociações nem sempre transparentes com grupos econômicos em busca de privilégios. Se há uma certeza grande no Brasil, é que esse modelo tributário fracassou por completo. Reformá-lo é uma porta importante para termos um futuro econômico e social melhor. Claro que ainda será necessário mexer com os impostos diretos, a fim de aumentar a justiça fiscal e, por tabela, garantir um tratamento equânime aos brasileiros.

Caso o Congresso Nacional apoie tais reformas no campo tributário, será uma sinalização de que é possível sair da agenda do passado e começar a do futuro. Obviamente que vários grupos de interesse vão pressionar para manter seu status quo e privilégios fiscais. Os políticos vão saber escolher o justo neste jogo? Quem defenderá os pobres e a produtividade econômica nesta batalha? Não se trata de imaginar que tudo tem de ser aprovado como o Executivo quer, pois numa democracia é preciso ouvir vozes dissonantes e incorporar demandas legítimas. Mas é preciso dizer aos congressistas: a cara que eles derem à versão final valerá sobretudo para definir a qualidade de vida de seus filhos e netos, que se dará ou num país desigual e violento, ou numa nação mais igualitária, prospera e sustentável.

E aqui entra a terceira agenda garantidora de um futuro melhor ao Brasil: a sustentabilidade. O efeito bola de neve de ganhos crescentes é evidente neste tema. É um caminho para transformar a questão ambiental numa forma de gerar mais riqueza, de aumentar a importância internacional do país, de estabelecer uma matriz energética verde como um ativo econômico poderosíssimo e de mudar o padrão predatório de sociedade, algo que vale tanto para os bandidos que depredam a natureza na Amazônia, como também para os governantes locais e seus pactos empresariais que prometem um futuro de Blade Runner às grandes cidades brasileiras.

Se as outras duas agendas abrem portas larguíssimas para se ter um horizonte social mais saudável, não cuidar da sustentabilidade significará, necessariamente, não ter um futuro melhor do que o passado. Ir contra o meio ambiente é como fazer gol contra, só que prejudicando mais os que virão depois, sendo eles herdeiros de fazendeiros, de banqueiros, de professores, de empregadas domésticas ou até mesmo de políticos.

É preciso perguntar à elite da classe política brasileira se ela quer seguir a lógica do retrovisor ou preparar o Brasil para os desafios do século XXI. A próxima eleição é sempre muito perto, mas o lugar que se ganha nos livros de história continua sendo o melhor termômetro de uma geração de políticos. Ulysses Guimarães fez a redemocratização e alçou o Congresso a um lugar de grande respeitabilidade. O que dirá o futuro de quem não conseguiu largar o passado e o atraso?

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

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