Eu & / Valor Econômico
É preciso perguntar à elite da classe
política brasileira se ela quer seguir a lógica do retrovisor ou preparar o
Brasil para os desafios do século XXI
As decisões tomadas nas últimas semanas
confirmam que grande parte da classe política acredita na máxima criada por
Millôr Fernandes: “O Brasil tem um enorme passado pela frente”. Ataque à agenda
ambiental, tentativa de reduzir os direitos dos povos indígenas, confusão entre
o que é liberdade de expressão e os crimes de ódio na internet, subsídios
temporários à velha indústria automobilística (e não às suas novas formas) e, o
mais fascinante choque de temporalidades, a descoberta de corrupção alimentada
pelo secular clientelismo na compra de itens de robótica para escolas. Essa é
apenas parte de uma lista de um país cuja elite ainda não entendeu que
precisamos montar uma agenda para enfrentar os desafios do século XXI.
É óbvio que montar uma agenda para o futuro
supõe atuar contra mazelas atuais ou que nunca foram realmente vencidas, como o
racismo. Mas não é possível lutar contra o que está errado hoje com as mesmas
armas do passado. Fazer a ponte entre o combate ao atraso estrutural do Brasil
e as necessidades do século XXI deveria ser a tarefa mais importante de nossa
elite política e social.
Infelizmente, a maioria dos políticos brasileiros está adotando o retrovisor como guia de suas ações. Uma parte deles para defender grupos de interesses que não querem mudar seu status quo, pois manter o país como ele é hoje significa consagrar um modelo social que os privilegiou até agora. Outra porção luta contra o futuro porque tem medo de mudar, temendo uma sociedade mais aberta. Há ainda uma parcela que escolhe visões de mundo ultrapassadas por seguir ideologias ou porque não entende o sentido das transformações contemporâneas. De todo modo, poucos têm se arriscado em defender ideias que olhem basicamente para frente.
Mesmo não havendo um guia completamente
certeiro para definir os caminhos futuros do país, alguns estudos e evidências
apontam para temas com impacto amplo sobre os principais problemas brasileiros,
de modo a gerar um efeito bola de neve, que traz ganhos crescentes à sociedade.
São poderosas alavancas para enfrentarmos melhor os desafios do século XXI e,
ao mesmo tempo, reduzirmos drasticamente o legado negativo do passado.
Haveria uma lista maior de alavancas para o
futuro, mas três podem ser destacadas aqui, neste curto espaço da coluna, por
terem um impacto amplo e profundo. A primeira delas é a política para a
primeira infância. É claro que outras faixas etárias de crianças e jovens
também precisam de atenção, especialmente os adolescentes que têm abandonado a escola,
seguindo para o mundo do crime ou para uma profissionalização precária, o que
os condena ao desemprego ou à informalidade com baixos rendimentos nos próximos
anos.
A escolha pela centralidade estratégica da
primeira infância ocorre não em detrimento de outras faixas etárias, mas por
ser um investimento com maior alcance e profundidade sobre as gerações futuras.
As evidências científicas revelam que se crianças até os 6 anos de idade
receberem os cuidados e estímulos necessários, elas terão mais chances de se
desenvolverem no futuro. Aprenderão e avançarão mais na escola, terão melhor
saúde, menos possibilidades de entrarem na criminalidade, poderão encontrar
empregos mais qualificados e tenderão a ser mais resilientes frente aos
inúmeros desafios da vida adulta.
Ter jovens mais preparados para a vida é
fundamental para todos os países. Ao caso brasileiro, acrescente-se mais uma
coisa: investir na primeira infância é uma arma fundamental contra suas enormes
desigualdades. Neste sentido, quando se fala em política pública para crianças
até os 6 anos de idade, o objetivo maior é atingir aquelas que vivem nos
territórios e famílias mais vulneráveis. Combate-se assim o mal das
disparidades sociais em suas raízes, garantindo aos indivíduos uma maior
igualdade de oportunidades num momento temporal que afeta os demais ciclos
etários.
O impacto das políticas de primeira
infância, ressalte-se, não atinge apenas as crianças envolvidas. As famílias
são fortemente beneficiadas por esse tipo de ação, gerando maior informação,
apoio e recursos para a criação de suas filhas e filhos. As mães podem
trabalhar mais tranquilamente e ter acesso a práticas de cuidado que podem
melhorar a compreensão do mundo à sua volta.
Interessante notar que se a política de
primeira infância for efetivamente integral, abarcando todos os aspectos
necessários para o desenvolvimento infantil, esse efeito do indivíduo (a
criança) pode chegar às suas famílias e, depois, pode se ampliar para outros
grupos familiares na vizinhança, que participando dessas políticas mudam
coletivamente a sua visão de mundo (o mindset) e podem inclusive conversar
sobre todo esse processo.
Eis aqui uma das razões de essa política
pública ser uma alavanca tão poderosa de transformação social apontada para um
futuro melhor: ela faz a ponte entre a mudança individual futura e o impacto
imediato no coletivo de pais e mães de um território.
Os desafios de uma política integral de
primeira infância são imensos. O seu sucesso passa, primeiro, por uma maior
articulação colaborativa entre os três entes federativos com o intuito de dar
escala a essa política numa estrutura municipal bastante desigual. Depois, é
fundamental garantir a intersetorialidade, pois a criança deve receber serviços
articulados nos campos da saúde, educação e assistência. E, por fim, é preciso
capacitar bem os profissionais da ponta do sistema, para que possam atuar de
forma efetiva junto às famílias mais carentes, tornando-as também partícipes do
processo de desenvolvimento infantil de seus filhos e filhas.
Como se vê, a política da primeira infância
é uma tarefa ampla e complexa, mas que pode mudar o futuro do país. É nisto que
os políticos de Brasília e de todos os recantos do país deveriam estar
pensando, e não em agendas particulares, exotéricas ou do passado.
Uma segunda alavanca para nos jogar mais
rapidamente a um futuro melhor é a reforma tributária. Isso se deve a duas
razões. A primeira é que a lógica dos tributos brasileiros geralmente é
regressiva, prejudicando os mais pobres. Mudar esse padrão é fundamental para
combater a desigualdade. Existe também uma segunda razão, tão importante quanto
a primeira: o atual sistema de impostos e contribuições é um obstáculo para o
crescimento econômico e para a criação de empregos.
A tributação indireta brasileira é um
manicômio econômico, portadora de grande instabilidade jurídica e objeto de
mudanças constantes e negociações nem sempre transparentes com grupos
econômicos em busca de privilégios. Se há uma certeza grande no Brasil, é que
esse modelo tributário fracassou por completo. Reformá-lo é uma porta
importante para termos um futuro econômico e social melhor. Claro que ainda
será necessário mexer com os impostos diretos, a fim de aumentar a justiça
fiscal e, por tabela, garantir um tratamento equânime aos brasileiros.
Caso o Congresso Nacional apoie tais
reformas no campo tributário, será uma sinalização de que é possível sair da
agenda do passado e começar a do futuro. Obviamente que vários grupos de
interesse vão pressionar para manter seu status quo e privilégios fiscais. Os
políticos vão saber escolher o justo neste jogo? Quem defenderá os pobres e a
produtividade econômica nesta batalha? Não se trata de imaginar que tudo tem de
ser aprovado como o Executivo quer, pois numa democracia é preciso ouvir vozes
dissonantes e incorporar demandas legítimas. Mas é preciso dizer aos
congressistas: a cara que eles derem à versão final valerá sobretudo para
definir a qualidade de vida de seus filhos e netos, que se dará ou num país
desigual e violento, ou numa nação mais igualitária, prospera e sustentável.
E aqui entra a terceira agenda garantidora
de um futuro melhor ao Brasil: a sustentabilidade. O efeito bola de neve de
ganhos crescentes é evidente neste tema. É um caminho para transformar a
questão ambiental numa forma de gerar mais riqueza, de aumentar a importância
internacional do país, de estabelecer uma matriz energética verde como um ativo
econômico poderosíssimo e de mudar o padrão predatório de sociedade, algo que
vale tanto para os bandidos que depredam a natureza na Amazônia, como também
para os governantes locais e seus pactos empresariais que prometem um futuro de
Blade Runner às grandes cidades brasileiras.
Se as outras duas agendas abrem portas
larguíssimas para se ter um horizonte social mais saudável, não cuidar da
sustentabilidade significará, necessariamente, não ter um futuro melhor do que
o passado. Ir contra o meio ambiente é como fazer gol contra, só que
prejudicando mais os que virão depois, sendo eles herdeiros de fazendeiros, de
banqueiros, de professores, de empregadas domésticas ou até mesmo de políticos.
É preciso perguntar à elite da classe
política brasileira se ela quer seguir a lógica do retrovisor ou preparar o
Brasil para os desafios do século XXI. A próxima eleição é sempre muito perto,
mas o lugar que se ganha nos livros de história continua sendo o melhor
termômetro de uma geração de políticos. Ulysses Guimarães fez a
redemocratização e alçou o Congresso a um lugar de grande respeitabilidade. O
que dirá o futuro de quem não conseguiu largar o passado e o atraso?
*Fernando Abrucio, doutor em
ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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