sexta-feira, 9 de junho de 2023

José de Souza Martins* - O amansamento do branco

Eu & / Valor Econômico

O Brasil se move para fora do caos e dos preconceitos de uma ignorância social e política que arrasta o país para o fundo do abismo de uma opção histórica antibrasileira e antissocial

O recente período de selvageria, barbárie e obscurantismo pelo qual o Brasil passou e, residualmente, ainda passa equivocadamente deu-se a ver, para muitos, como vitória final do totalitarismo inaugurado em 1964. Desde o golpe pseudorrepublicano de 1889, o povo brasileiro vem sendo tratado como inimigo estrangeiro do país. Com tudo que tem acontecido, é difícil saber quem é o amigo. Essa é a chave para compreender nosso atraso político crônico.

Nem ficou claro o que explica o fato fantástico de que o mesmo país tenha dado passos gigantescos, com os pés, as mãos e o cérebro, do “inimigo”, na direção de uma sociedade quase desenvolvida. O “inimigo” interno tem sido, justamente, o revolucionário e transformador do Brasil do atraso num Brasil de modernidade própria e criativa.

Um interessantíssimo artigo - “Mormaço e parceria na floresta” - assinado por Almir Suruí, cacique do povo Paíter-suruí, de Rondônia, e Marcelo Thomé, presidente da Federação das Indústrias do Estado de Rondônia, publicado na “Folha de S. Paulo” do dia 1º de junho, torna visível as reais características e possibilidades de um Brasil pouco visto, pouco ouvido e pouco conhecido.

No entanto, o Brasil se move para fora do caos e dos preconceitos de uma ignorância social e política que arrasta o país para o fundo do abismo de uma opção histórica antibrasileira e antissocial.

Os dois autores expressam a vitalidade criativa da diferença cultural e linguística que os torna inventivos e capazes de uma rica consciência brasileira do que o Brasil precisa para assegurar o futuro de todos. Sobretudo das novas gerações de brasileiros de diferentes subidentidades nacionais.

O artigo ressalta os desafios criativos de uma nova problemática do mundo e de uma nova consciência democrática da mundialidade do mundo. A que tem no centro as possibilidades da Amazônia e a enorme relevância da questão ambiental na gestação de uma nova realidade social e econômica.

Estamos em face de uma nova concepção de desenvolvimento econômico com desenvolvimento social, de uma economia e de uma realidade social que emerge das fraturas produzidas por uma concepção equivocada de capitalismo, obsoleta e antissocial, anticapitalista e autodestrutiva.

Os antiquados protagonistas da história social, política e econômica não estão sendo os protagonistas e inventores desse mundo novo, aberto, abrangente, inventivo, de conciliação integrativa dos diferentes e das diferenças, tolerante. Regido por aguda consciência da diversidade e do alcance criativo das esdrúxulas carências sociais detonadas por um neoliberalismo econômico anti-humano. Os seres humanos estão de volta, de diferentes modos, no mundo inteiro.

É simbólico que um cacique do povo paíter seja um dos protagonistas desse acontecimento histórico. Há pouco mais de meio século, quando os brancos começavam a se aproximar dessa nação e a invadir seu território, em Rondônia, quando o cacique com eles se defrontou, estendeu-lhes as mãos e proclamou “branco, eu te amanso”.

Eu fazia pesquisa na região amazônica sobre a expansão da fronteira econômica interna e chegara a Rondônia pouco depois de uma tragédia shakespeariana envolvendo, justamente, um adolescente suruí e uma adolescente branca, filha de colonos capixabas.

Oréia havia aprendido português nos primeiros contatos com a Funai e se integrou com a equipe de aproximação entre brancos e indígenas. Apaixonou-se por Orminda, e ela por ele. Foi imensa a resistência da família dela a um eventual casamento dos dois.

Oréia fez o que foi comum na relação entre índios e brancos, até os anos 1970, o rapto de brancos por indígenas e o rapto de indígenas por brancos. A moça foi recapturada pela família e enviada de volta ao Espírito Santo, para os parentes que lá ficaram.

Oréia entrou em profunda depressão. Os amigos de seu grupo de idade atacaram a família da moça, imaginando retomá-la. Houve mortes. A família atacada reagiu e atacou a aldeia indígena. Matou e esquartejou um Oréia inerte, na rede, e espalhou seus restos pela mata onde provavelmente seria devorado pelos animais.

O artigo de Almir Paíter-Suruí e de Marcelo Thomé mostra que a luta do povo Suruí nesse meio século triunfou no amansamento do branco, no reconhecimento do indígena como ser de uma pluralidade situacional complexa, da qual o ser humano é o principal protagonista da recriação do mundo como um todo, como árvore, rio e chuva, flor e fruta, comida e remédio, cântico e alegria, sonho e esperança, como bem comum, como humanização do homem.

O incrível significado dessa aliança inteligente nos fala de outros indícios de insurgência histórica que irrompem nas brechas de um mundo destroçado.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana” (Editora Unesp, 2022).

Nenhum comentário: