Eu & / Valor Econômico
O Brasil se move para fora do caos e dos
preconceitos de uma ignorância social e política que arrasta o país para o
fundo do abismo de uma opção histórica antibrasileira e antissocial
O recente período de selvageria, barbárie e
obscurantismo pelo qual o Brasil passou e, residualmente, ainda passa
equivocadamente deu-se a ver, para muitos, como vitória final do totalitarismo
inaugurado em 1964. Desde o golpe pseudorrepublicano de 1889, o povo brasileiro
vem sendo tratado como inimigo estrangeiro do país. Com tudo que tem
acontecido, é difícil saber quem é o amigo. Essa é a chave para compreender
nosso atraso político crônico.
Nem ficou claro o que explica o fato fantástico de que o mesmo país tenha dado passos gigantescos, com os pés, as mãos e o cérebro, do “inimigo”, na direção de uma sociedade quase desenvolvida. O “inimigo” interno tem sido, justamente, o revolucionário e transformador do Brasil do atraso num Brasil de modernidade própria e criativa.
Um interessantíssimo artigo - “Mormaço e
parceria na floresta” - assinado por Almir Suruí, cacique do povo Paíter-suruí,
de Rondônia, e Marcelo Thomé, presidente da Federação das Indústrias do Estado
de Rondônia, publicado na “Folha de S. Paulo” do dia 1º de junho, torna visível
as reais características e possibilidades de um Brasil pouco visto, pouco
ouvido e pouco conhecido.
No entanto, o Brasil se move para fora do
caos e dos preconceitos de uma ignorância social e política que arrasta o país
para o fundo do abismo de uma opção histórica antibrasileira e antissocial.
Os dois autores expressam a vitalidade
criativa da diferença cultural e linguística que os torna inventivos e capazes
de uma rica consciência brasileira do que o Brasil precisa para assegurar o
futuro de todos. Sobretudo das novas gerações de brasileiros de diferentes
subidentidades nacionais.
O artigo ressalta os desafios criativos de
uma nova problemática do mundo e de uma nova consciência democrática da
mundialidade do mundo. A que tem no centro as possibilidades da Amazônia e a
enorme relevância da questão ambiental na gestação de uma nova realidade social
e econômica.
Estamos em face de uma nova concepção de
desenvolvimento econômico com desenvolvimento social, de uma economia e de uma
realidade social que emerge das fraturas produzidas por uma concepção
equivocada de capitalismo, obsoleta e antissocial, anticapitalista e
autodestrutiva.
Os antiquados protagonistas da história
social, política e econômica não estão sendo os protagonistas e inventores
desse mundo novo, aberto, abrangente, inventivo, de conciliação integrativa dos
diferentes e das diferenças, tolerante. Regido por aguda consciência da
diversidade e do alcance criativo das esdrúxulas carências sociais detonadas
por um neoliberalismo econômico anti-humano. Os seres humanos estão de volta,
de diferentes modos, no mundo inteiro.
É simbólico que um cacique do povo paíter
seja um dos protagonistas desse acontecimento histórico. Há pouco mais de meio
século, quando os brancos começavam a se aproximar dessa nação e a invadir seu
território, em Rondônia, quando o cacique com eles se defrontou, estendeu-lhes
as mãos e proclamou “branco, eu te amanso”.
Eu fazia pesquisa na região amazônica sobre
a expansão da fronteira econômica interna e chegara a Rondônia pouco depois de
uma tragédia shakespeariana envolvendo, justamente, um adolescente suruí e uma
adolescente branca, filha de colonos capixabas.
Oréia havia aprendido português nos
primeiros contatos com a Funai e se integrou com a equipe de aproximação entre
brancos e indígenas. Apaixonou-se por Orminda, e ela por ele. Foi imensa a
resistência da família dela a um eventual casamento dos dois.
Oréia fez o que foi comum na relação entre
índios e brancos, até os anos 1970, o rapto de brancos por indígenas e o rapto
de indígenas por brancos. A moça foi recapturada pela família e enviada de
volta ao Espírito Santo, para os parentes que lá ficaram.
Oréia entrou em profunda depressão. Os
amigos de seu grupo de idade atacaram a família da moça, imaginando retomá-la.
Houve mortes. A família atacada reagiu e atacou a aldeia indígena. Matou e
esquartejou um Oréia inerte, na rede, e espalhou seus restos pela mata onde
provavelmente seria devorado pelos animais.
O artigo de Almir Paíter-Suruí e de Marcelo
Thomé mostra que a luta do povo Suruí nesse meio século triunfou no amansamento
do branco, no reconhecimento do indígena como ser de uma pluralidade
situacional complexa, da qual o ser humano é o principal protagonista da
recriação do mundo como um todo, como árvore, rio e chuva, flor e fruta, comida
e remédio, cântico e alegria, sonho e esperança, como bem comum, como
humanização do homem.
O incrível significado dessa aliança
inteligente nos fala de outros indícios de insurgência histórica que irrompem
nas brechas de um mundo destroçado.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana” (Editora Unesp, 2022).
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