sábado, 2 de setembro de 2023

Demétrio Magnoli - STF diante do pecado original

Folha de S. Paulo

Debate sobre marco temporal desenrola-se em torno de posições irreconciliáveis

"Nahalal surgiu no lugar de Mahalul, Gevat no de Jibta, Sarid no de Haneifs e Kefar Yehoshua no de Tell Shaman. Não há um único lugar construído neste país que não teve uma população árabe anterior." No registro célebre de Moshe Dayan sobre Israel, troque os nomes árabes por toponímias indígenas –pronto, estamos no Brasil. Na hora em que encara a questão do chamado "marco temporal", o STF precisa, previamente, decidir se pretende abolir o pecado original.

O general Dayan, ministro da Defesa na Guerra dos Seis Dias (1967), mencionou os nomes árabes numa palestra a estudantes de Haifa, em 1969. Ele alertava contra a boçalidade: a atitude de apagar a história do povo vencido. Sonhava, ainda, fazer a paz possível –mas não lhe passava pela cabeça a ideia de reedificar os antigos vilarejos árabes no lugar dos novos povoados israelenses.

Dos aborígenes australianos aos cátaros da Ocitânia francesa, a despossessão tinge a história das nações. O que hoje é Brasil foi terra de povos indígenas. A cidade de São Paulo nasceu no lugar de uma aldeia tupiniquim. Os relatos dos primeiros exploradores europeus que singraram o Amazonas dão conta da existência de aldeamentos com milhares de indígenas. Os direitos nacionais dos palestinos dependem de um acordo estatal. Já os cidadãos indígenas brasileiros têm direitos constitucionais. O risco, porém, é interpretá-los à luz de uma utopia extrema de "reparação histórica".

Latifúndio versus Povos Originais? A narrativa caricatural ignora incontáveis nuances. O caso específico que deflagrou o julgamento do STF envolve a ampliação da terra dos Xokleng, em Santa Catarina, um grupo que sofreu um bárbaro massacre perpetrado por bugreiros em 1904. A terra indígena ampliada abarcaria parte de uma reserva biológica estadual e, ainda, área cultivada por colonos familiares. Detalhe: os pequenos produtores têm propriedade legal de suas terras inscrita numa cadeia temporal que se estende desde o século 19. Desapropriá-los equivaleria a um ato de limpeza étnica.

A tese do "marco temporal" emana do acórdão do STF sobre a apreciação da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2009. Os indígenas teriam direito certo apenas às terras que ocupavam nas quais se encontravam na data de promulgação da Constituição de 1988. Hoje, o debate político e jurídico sobre a tese desenrola-se em torno de posições irreconciliáveis.

De um lado, por meio de um projeto de lei esperto, setores do agronegócio querem instrumentalizar o "marco temporal" a fim de preservar propriedades obtidas via grilagem e contestar, inclusive, demarcações já homologadas. Sem medo do ridículo, ignorando os requisitos legais para o reconhecimento de terras indígenas, seus porta-vozes difundem a "tese de Copacabana", isto é, o espantalho de que regiões centrais das cidades correriam o risco de desapropriações decididas pela Funai.

Do outro, os arautos da "reparação histórica" almejam impugnar a propriedade legal ou a posse tradicional com base em laudos antropológicos que conectem grupos indígenas atuais com terras ocupadas, em algum momento, por seus ancestrais distantes. Bem longe de Copacabana, nos planaltos sulistas ou na Amazônia, o conceito fundamentalista expresso no voto de Edson Fachin geraria cortejos intermináveis de conflitos fundiários.

O "marco temporal" de 1988 protege esbulhos perpetrados no contexto das políticas da ditadura militar de construção de estradas de "integração nacional". Na ponta oposta, a "reparação histórica" identitária abre caminho para novos esbulhos, contra colonos sulistas ou caboclos ribeirinhos amazônicos.

O voto de Alexandre de Moraes desagradou às posições polares e indicou, ainda que meio desajeitadamente, a necessidade de uma solução equilibrada. Mas ficou isolado num tribunal rendido à polarização política.

 

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