Valor Econômico
Relatório da CPMI do 8 de janeiro revela a
nova convicção institucional de que o regime democrático é componente
inquestionável da República
O relatório da CPMI sobre a intentona de 8 de
janeiro, da senadora Eliziane Gama, foi aprovado por 69% dos membros. A lista
dos 61 indiciados inclui o ex-presidente da República, ex-ministros, oito
generais, outros militares, milícias digitais, financiadores. É um documento
revelador de mudanças significativas na orientação das instituições em relação
à democracia como componente inquestionável do regime republicano.
Desde a Proclamação da República, temos o mau
costume da condescendência contra os autores de golpes de Estado e tentativas
de golpes. Nesta República tudo tem sido negociável. As robustas 1.332 páginas
do relatório, porém, indicam que as instituições estão funcionando e que a
democracia é inegociável.
Não se trata de uma questão de esquerda e direita, mas significativamente de democracia contra a barbárie. Os apoiadores do documento filiam-se a distintas orientações partidárias, o que indica que há no Congresso um partido pluripartidário, o da democracia.
Se os órgãos do Estado, a que for
encaminhado, vacilarem no rigor jurídico necessário das providências
decorrentes que couberem na responsabilização dos autores dos crimes apontados,
os despistados do autoritarismo tropical continuarão de prontidão pelo fascismo.
Como tem acontecido nos intervalos democráticos de nosso republicanismo.
A coragem, o discernimento, o rigor dos
indiciamentos no relatório da maioria democrática documentam várias
reorientações políticas decisivas na postura do Legislativo. Talvez a principal
delas a de que estão vencidas as concepções estamentais do Brasil atrasado, que
entre nós sobrevivem há 200 anos.
A dominação política que nelas se apoia e o
patrimonialismo de que carecem criaram aqui não um país de cidadãos, mas uma
sociedade de bajuladores, de gente beija-mão. O que vulgarmente se chama de
puxa-saquismo como instrumento de uma política de troca de favores por
subserviência.
As comissões de inquérito, como essa e a da
covid-19, têm identificado e exposto os crimes contra a ordem democrática e
contra a vida, facilitados e induzidos por essa infiltração de agentes do
fascismo carnavalesco na estrutura de poder. Por isso mesmo, mais perigoso do
que o dos valentões que urram contra a democracia, dissimulados nas multidões
delinquentes. Acovardam-se quando o dedo da Justiça lhes é apontado.
A opção de enquadrar na lei os participantes
da multidão de 8 de janeiro já fora medida decisiva do STF para libertar a
grande massa carneiril da população brasileira do seu carneirismo servil.
É uma forma de educar politicamente os que da
horda participaram. Para que possam tomar consciência de que, na política, cada
um responde por seus atos. Cada um é autor da expressão de sua própria vontade
política e não a do outro que nele manda.
Portanto, bajular é inútil, tanto a quem
manda e a quem obedece. Pela primeira vez, ambos poderão condividir a cela. Um
porque mandou e outro porque obedeceu. Nem fardado escapou, como se viu do caso
do coronel que praticou ilícitos em favor de quem nele mandava.
Fardado graduado é para comandar e não para
mandar. E inferior é para cumprir o que a lei manda e não para desobedecê-la.
Em dialeto caipira e sotaque nheengatu, “cada quá com seu picuá”.
Muito, porém, fica de fora e pendente. Erros
do eleitorado perduram muito além do estrito período do mandado. Nosso sistema
eleitoral é de reeleições, mais do que de eleições.
O mandato de um deputado ou de um senador é
agasalhado em privilégios e facilitações eleitorais que um candidato inaugural
não tem. Esse é um dos componentes estamentais do sistema político. Outro é o
da política de família.
Um sobrenome elege a família e não um
representante do eleitor, como aconteceu com o presidente da República anterior
e sua família. Uma geração inteira invade a representação política e a
desfigura.
O descabido número de eleitos pela farda e
dos eleitos pelo púlpito, identificados com o autoritarismo do governo
derrotado em 2022, continuará lá, falando e legislando em nome de um sujeito
politicamente moribundo.
Mesmo com o avanço democrático da decisão da
CPMI, ela não encerra as irregularidades que indicia. Os fatores dos crimes e
anomalias nela indiciados continuarão a operar pelo menos nos próximos dez
anos. Nosso sistema político é anômico, sem normas correspondentes à realidade
e à democracia como carência radical do povo brasileiro.
Mesmo que as instituições incumbidas de
examinar e acolher os indiciamentos arrolados no documento da CPMI punam com o
devido rigor os autores e promotores da tentativa de golpe de Estado, a anomia
política continuará atuando na suposição de que os punidos são inocentes de
nascimento.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor
Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar,
da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é
autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do
instante” (ed. Unesp, 2021).
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