O Globo
Sob a ilusão da autonomia, profissionais
estão expostos a jornada maior e remuneração menor
Foi a pedido do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Unicamp, no início de 2022, que o IBGE pôs de pé o módulo da Pnad Contínua que investigou o mercado de trabalho em plataformas digitais e aplicativos de serviços. A pesquisa ganhou as ruas no último trimestre do ano passado. Nesta semana, tornou-se o mais sólido diagnóstico já feito no Brasil sobre perfil e condições de ocupação de motoristas e entregadores uberizados. São profissionais que, sob a ilusão da autonomia, estão expostos a jornada maior, remuneração menor e altíssima informalidade, não contam com benefícios trabalhistas nem previdenciários. Homens adultos, de média escolaridade, que circulam em carros, motos e bicicletas para basicamente sobreviver.
De tão contundente, Cimar Azeredo, diretor de
Pesquisas do IBGE, classificou como “denúncia” os resultados da pesquisa, que
terá nova edição no início de 2024. O trabalho por aplicativos de serviços tem
merecido atenção de especialistas e governos, mundo afora. Em 2028, será tema
principal da conferência internacional sobre estatísticas do trabalho da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), realizada a cada cinco anos.
Azeredo, delegado responsável pelo grupo brasileiro, acabou de voltar da edição
2023, em Genebra, dedicada à informalidade, mas que também debateu as
plataformas digitais.
— Esse estudo pode ser um divisor de águas.
Os resultados revelam uma categoria de trabalhadores com larga dependência das
plataformas, uma forma de inserção para além da ocupação por conta própria.
Desvenda ainda um mundo do trabalho majoritariamente informal. São dados
importantes para a mesa de discussões juntos às plataformas — completa.
A pesquisa aplicada na amostra robusta da
Pnad Contínua, de 211 mil domicílios, estimou em 1,5 milhão o total de
brasileiros a serviço de plataformas digitais e aplicativos. Equivalem a pouco
menos de 2% da população ocupada no setor privado. Do total, 778 mil atuam no
transporte de passageiros e 589 mil com entrega de alimentos e mercadorias; os
restantes estão em serviços gerais. O IBGE encontrou um ofício
predominantemente masculino (81,3%), com nível intermediário de escolaridade e
quase metade na faixa de 25 a 39 anos.
São homens adultos, já responsáveis ou com
obrigações familiares, que trabalham mais e ganham menos que os “não
plataformizados”. Pesquisador da área, Rafael Grohmann, da Universidade de
Toronto, diz que o IBGE confirmou o que acadêmicos brasileiros vinham
atestando. A jornada semanal dos motoristas soma 46 horas, e a dos
motoentregadores 47,6 horas. Eles trabalham entre cinco e sete horas a mais que
os trabalhadores de mesma função sem vínculos com os aplicativos. A remuneração
também é menor: R$ 11,80 por hora para motoristas e R$ 8,70 para motociclistas
uberizados, ante R$ 13,60 e R$ 11,90, respectivamente, para os que não
trabalham com aplicativos.
A informalidade alcança sete em cada dez
trabalhadores das plataformas digitais, muito superior à média preocupante dos
ocupados no setor privado (44%). Nem um quarto de motoristas e motoentregadores
contribui para a Previdência. Significa que não contarão com aposentadoria ou
demais benefícios trabalhistas. Idosos, acabarão dependendo dos programas de
assistência social para fugir da extrema pobreza. Apresentam-se como autônomos
(77,1%), mas são intensamente dependentes das plataformas digitais de intermediação.
Quase todos, acima de 85%, admitem que são os aplicativos que determinam tanto
o valor recebido por tarefa quanto os clientes a atender.
Pesquisador do Cesit e professor da Unicamp,
José Dari Krein apontou à equipe do IBGE a situação de empresas capazes de
contratar um contingente expressivo de trabalhadores sem reconhecer vínculo. O
MPT há tempos tenta regularizar a situação de uberizados. No início do ano, o
governo montou um grupo de trabalho com representantes de trabalhadores e
aplicativos. Até agora, não houve acordo.
Na esteira da flexibilização das relações
trabalhistas, muitos trabalhadores nas plataformas digitais de transporte de
passageiros e entregas acreditavam no experimento empreendedor e desprezavam a
formalização. Hoje, a concorrência excessiva, que impõe jornada exagerada,
remuneração insuficiente e todo o risco do ofício, fez um grande contingente
mudar de posição. Paulo Galo, ativista e cantor de rap, tornado líder do
movimento dos motofretistas em São Paulo durante a pandemia, é um deles:
— A CLT não é a maravilha maior, mas é a
garantia dos nossos direitos. A lei não estabelece o máximo, mas o mínimo a que
o trabalhador tem direito. Não dá para depender somente da boa vontade do
mercado ou do governo.
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