O Globo
O que a dinâmica da 'lirodependência' no
Congresso diz a respeito da incapacidade do Executivo de propor um projeto ao
país?
O governo capitulou, uma vez mais, à lista
dos desejos de Arthur Lira. Mais rápido que a Amazon, o presidente da Câmara
entregou o projeto dos fundos em tempo recorde depois de assegurar a
presidência da Caixa e negociar as vice-presidências. Como, diga-se, estava
acertado desde a reforma ministerial.
O que isso diz a respeito do apetite do
Centrão, muito temos analisado. Mas o que a dinâmica da lirodependência mostra
a respeito da capacidade do Executivo de ter um projeto para o país? A resposta
é em tudo mais preocupante para Lula que ter de fazer um Pix para o Congresso
com mais frequência do que a aprovação tranquila da PEC da Transição permitia
antever.
Preocupante porque mostra que Lula e seus muitos ministros não têm sido capazes de envolver a sociedade — e o Parlamento, que, mesmo famélico, de qualquer maneira espelha essa sociedade — na discussão de um conjunto de propostas para o país.
Isso ajuda a explicar por que, mesmo com a
melhora objetiva de quase todos os indicadores econômicos, da inflação aos
juros, passando pelo emprego, a percepção do eleitorado seja de decepção, e a
popularidade do presidente e do governo estejam em lenta regressão.
A ideia de que o Brasil aposentaria o teto de
gastos, criaria um novo marco fiscal, praticaria justiça social por meio de um
Bolsa Família recomposto e de uma política permanente de valorização do salário
mínimo e voltaria a investir em grandes projetos estruturantes deu o empuxo
inicial do governo.
Ao bradar contra o Banco Central e pintar seu
presidente, Roberto Campos Neto, como vilão dos juros altos contra a
prosperidade lulista, o presidente entendeu perfeitamente que necessitava dessa
narrativa para dar sentido à inauguração de seu mandato como a busca pela
bonança perdida sob Bolsonaro.
Funcionou. Fernando Haddad emergiu como o
ministro das pautas virtuosas, teve êxito em convencer o Congresso e o mercado
da viabilidade de seu desenho de política fiscal, ajudou a impulsionar uma
antes desacreditada reforma tributária e venceu o fogo amigo do PT raiz.
Mas aí o segundo semestre veio com a parte
mais difícil: juntar uns dinheiros, aqui e ali, para impedir o arcabouço fiscal
de virar um calabouço de credibilidade e popularidade. E até aqui essa
engrenagem está amarrada, condicionada às intempéries da agenda pessoal de
Lira.
A saída de cena de Lula por um mês para a
recuperação da cirurgia levou a agenda federal a um estado de catalepsia, de
que só foi tirada agora graças a mais uma concessão explícita aos caprichos do
presidente da Câmara.
Não é só o fato de o Centrão ter uma fome de
anteontem que explica a permanência dessa dinâmica, é justamente o fato de o
governo não ter mais muitos projetos a mostrar para seduzir primeiro a
sociedade, depois conseguir cabalar apoio congressual a preços mais módicos.
PAC, Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida,
todos esses foram remakes de filmes antigos, que tiveram, nesse relançamento,
menos impacto que os originais. Mesmo uma ideia nova e antenada com o momento
atual, como o Desenrola, tem alcance ainda reduzido, incapaz de funcionar como
catalisador de apoio popular e símbolo para campanhas futuras.
Se continuar vivendo do passado ou cruzando
os dedos para Haddad zerar o déficit no ano que vem e o crescimento se mostrar
parrudinho, Lula estará distante daquele encantador de serpentes de outrora,
que tinha 80% de aprovação e elegia postes.
Sem um projeto de país que lhe permita
retomar parte do eleitorado de Bolsonaro, o presidente terá de continuar a
acender velas no altar de Lira ou de quem lhe suceder. Afinal, na política não
existe vácuo e, como no futebol, quem não faz, leva. Quatro anos dessa dinâmica
não são o sonho reeleitoral de ninguém.
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