Valor Econômico
Escolhas fiscais dolorosas parecem estar no
horizonte
Há uma antiga provocação sobre o Fundo
Monetário Internacional, de que deveria chamar-se “o importante é a parte
fiscal” (IMF, it’s mostly fiscal). Por algum tempo, a brincadeira deu a
impressão de ter deixado de fazer sentido. Sem dúvida, o Fundo continuou a se
queixar da falta de contenção fiscal em países atingidos por crises, como
Grécia ou Argentina. No entanto, desde a crise financeira mundial de 2008,
ficou relativamente mais relaxado em relação à política fiscal em meio a sua
ampla vigilância. Esse, porém, era o mundo do “juro baixo por muito tempo” ou
até mesmo do “ainda mais baixo por ainda mais tempo”.
Esse não é mais o mundo em que vivemos. O
Fundo, apropriadamente, mudou. Gita Gopinath, primeira diretora-gerente
adjunta, soou o alarme, pedindo “um foco renovado na política fiscal e, com
isso, uma reinicialização na mentalidade da política fiscal”. O FMI voltou a
entrar em modo “o importante é a parte fiscal”.
É inquestionável que a dívida pública atingiu níveis muito altos em comparação aos padrões históricos. Uma atualização de um gráfico do FMI publicado em 2020 mostra o quociente da dívida pública/PIB de países de alta renda em 112% em 2023, abaixo do pico recente de 124% em 2020, ano em que igualou o pico anterior, atingido em 1946. O que torna isso ainda mais notável é que o pico anterior ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, enquanto este último ocorreu em tempo de paz. Além disso, o quociente das economias emergentes atingiu 69% do PIB, recorde para esses países.
Então, estamos na iminência de um desastre da
dívida pública? Se estivermos, haverá calotes, inflação, repressão financeira
(tentativas forçadas de manter a dívida barata) ou alguma combinação dos três?
Para que nada disso aconteça, o que precisa ser feito?
Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do FMI
e agora no Peterson Institute for International Economics, em Washington, nos
lembrou da mecânica e dos riscos da dívida em um blog recente. Quanto à
mecânica, os fatores determinantes são, em primeiro lugar, a relação entre as
taxas de juros da dívida e a taxa de crescimento da economia e, em segundo
lugar, a relação entre o déficit fiscal primário (o déficit sem incluir
pagamentos de juros) e o PIB. Quanto aos riscos, o ponto mais importante é que
a dívida não pode crescer de forma explosiva. Embora quocientes de dívida em
particular não possam ser definidos como insustentáveis, por motivos empíricos
ou teóricos, quanto maior o quociente inicial e quanto mais rápido ele tem
chances de crescer, menos sustentável será a dívida.
Para que os governos evitem os riscos de um
aumento explosivo da dívida e também não precisem recorrer a surpresas
inflacionárias ou à repressão financeira, terão que apertar as políticas
fiscais, que em sua maioria ainda estão muito frouxas
Blanchard argumenta que “economias avançadas
podem sustentar uma relação de dívida mais alta, desde que ela não esteja tendo
crescimento explosivo”. Existe, contudo, uma probabilidade (embora não uma
certeza) de que os juros subirão acompanhando os níveis de dívida. Se assim
for, a dinâmica da dívida tenderá a se tornar explosiva.
Para que os quocientes da dívida permaneçam
estáveis, a taxa de crescimento econômico deve igualar a taxa média de juros,
quando o balanço fiscal primário é zero. Quanto maior é o excesso da taxa de
juros em relação à taxa de crescimento, maior deve ser o superávit fiscal
primário, e vice-versa.
Em que ponto estão hoje as dívidas e déficits
fiscais das grandes economias de alta renda?
Seus quocientes de dívida líquida são muito
mais altos do que há 20 anos. O FMI estima que em 2024 as relações de
dívida/PIB estarão próximas a 100% no Reino Unido, França e Estados Unidos, em
133% na Itália e em 156% no Japão. Em contraste, em 2001, estavam abaixo de 50%
no Reino Unido, França e EUA, em 75% no Japão e em 100% na Itália. Esses saltos
se deram apesar das baixas taxas de juros. Não é surpresa, portanto, que os
déficits primários foram grandes: entre 2008 e 2023, a média foi de 5,3% do PIB
nos EUA, de 5,2% no Japão, de 4,1% no Reino Unido e de 2,9% na França. A Itália
teve um déficit primário médio de apenas 0,2% do PIB. Isso, contudo, não foi
suficiente para conter o aumento da dívida, porque as taxas de juros subiram
muito na crise do euro. Isso foi uma punição por descontroles anteriores nos
gastos. Por sua vez, a Alemanha conseguiu manter um pequeno superávit primário
médio de 0,3% do PIB.
Quais são, então, as perspectivas para os
juros e as taxas de crescimento no futuro? Os juros já subiram bastante. O
rendimento dos títulos governamentais de dez anos subiu 3 pontos percentuais no
Canadá e 3,9 pontos no Reino Unido nos últimos três anos. O Japão, como se sabe
muito bem, é a exceção. No entanto, de maneira surpreendente, o aumento nos
rendimentos reais nos EUA e no Reino Unido, que oferecem títulos indexados há
muito tempo, quase igualou o aumento nos rendimentos nominais: 3 pontos percentuais
nos títulos do Tesouro dos EUA protegidos contra a inflação, em comparação aos
3,6 pontos nos títulos convencionais; e 3,4 pontos nos bônus governamentais do
Reino Unido indexados, em comparação aos 3,9 pontos percentuais nos
convencionais.
A expectativa de inflação mais alta a longo
prazo não pode ser uma grande parte do motivo para o salto nos rendimentos
nominais. Dessa forma, as possíveis explicações que restam são uma mudança para
cima nos juros reais de equilíbrio ou uma política monetária mais
contracionista. No caso da primeira, as taxas reais podem permanecer bastante
altas. No caso da segunda, elas deveriam voltar a cair quando a política
monetária se normalizasse (seja lá o que “normal” signifique hoje em dia). Em
resumo, as taxas de juros reais poderiam ficar permanentemente mais altas do
que costumavam ser, embora isso ainda não seja uma certeza.
Por fim, quais são as taxas prospectivas de
crescimento econômico? As previsões do FMI para 2024-28 indicam um crescimento
real médio de 1,9% nos EUA, 1,8% no Canadá, 1,6% no Reino Unido e na França,
1,4% na Alemanha, 0,9% na Itália e 0,6% no Japão. São taxas decididamente
baixas em relação às taxas de juros reais atuais.
Para que os governos evitem os riscos de um
aumento explosivo da dívida e também não precisem recorrer a surpresas
inflacionárias ou à repressão financeira, terão que apertar as políticas
fiscais, que em sua maioria ainda estão muito frouxas. Mas será que os governos
ousarão fazer isso em sociedades com populações ficando mais velhas,
crescimento econômico lento e gastos militares em alta?
Ter um crescimento maior ajudaria. No
entanto, como provou o governo Truss no Reino Unido, isso não será alcançado
por meios mágicos. Escolhas fiscais dolorosas parecem estar no horizonte. (Tradução
de Sabino Ahumada)
*Martin Wolf é editor e principal
comentarista econômico do FT.
Um comentário:
■■■Que tradução louvável!
■■É difícil ler estas coisas, não é? A leitura deste tema é uma leitura difícil para todos.
■Enquanto eu lia, eu ia pensando:: "Como a tradução está me ajudando a ler."; "Deveriam informar o nome do tradutor.".
■Ao final, havia a informação do nome do tradutor:: Sabino Ahumada.
Obrigado pela claríssima tradução, Sabino Ahumada! As dificuldades que tive com a leitura foram minhas ; e foram da dificuldade natural de ir pensando números e nele vendo gente, relações sociais e a dificuldade de produzir a realidade econômica, política e social.
Mesmo o autor, Martin Wolf, ao ler o texto que foi ele mesmo que escreveu, não teria facilidade.
■Mas é um texto necessário de que seja lido.
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