quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Martin Wolf - Ameaça iminente de crises fiscais


Valor Econômico

Escolhas fiscais dolorosas parecem estar no horizonte

Há uma antiga provocação sobre o Fundo Monetário Internacional, de que deveria chamar-se “o importante é a parte fiscal” (IMF, it’s mostly fiscal). Por algum tempo, a brincadeira deu a impressão de ter deixado de fazer sentido. Sem dúvida, o Fundo continuou a se queixar da falta de contenção fiscal em países atingidos por crises, como Grécia ou Argentina. No entanto, desde a crise financeira mundial de 2008, ficou relativamente mais relaxado em relação à política fiscal em meio a sua ampla vigilância. Esse, porém, era o mundo do “juro baixo por muito tempo” ou até mesmo do “ainda mais baixo por ainda mais tempo”.

Esse não é mais o mundo em que vivemos. O Fundo, apropriadamente, mudou. Gita Gopinath, primeira diretora-gerente adjunta, soou o alarme, pedindo “um foco renovado na política fiscal e, com isso, uma reinicialização na mentalidade da política fiscal”. O FMI voltou a entrar em modo “o importante é a parte fiscal”.

É inquestionável que a dívida pública atingiu níveis muito altos em comparação aos padrões históricos. Uma atualização de um gráfico do FMI publicado em 2020 mostra o quociente da dívida pública/PIB de países de alta renda em 112% em 2023, abaixo do pico recente de 124% em 2020, ano em que igualou o pico anterior, atingido em 1946. O que torna isso ainda mais notável é que o pico anterior ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, enquanto este último ocorreu em tempo de paz. Além disso, o quociente das economias emergentes atingiu 69% do PIB, recorde para esses países.

Então, estamos na iminência de um desastre da dívida pública? Se estivermos, haverá calotes, inflação, repressão financeira (tentativas forçadas de manter a dívida barata) ou alguma combinação dos três? Para que nada disso aconteça, o que precisa ser feito?

Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do FMI e agora no Peterson Institute for International Economics, em Washington, nos lembrou da mecânica e dos riscos da dívida em um blog recente. Quanto à mecânica, os fatores determinantes são, em primeiro lugar, a relação entre as taxas de juros da dívida e a taxa de crescimento da economia e, em segundo lugar, a relação entre o déficit fiscal primário (o déficit sem incluir pagamentos de juros) e o PIB. Quanto aos riscos, o ponto mais importante é que a dívida não pode crescer de forma explosiva. Embora quocientes de dívida em particular não possam ser definidos como insustentáveis, por motivos empíricos ou teóricos, quanto maior o quociente inicial e quanto mais rápido ele tem chances de crescer, menos sustentável será a dívida.

Para que os governos evitem os riscos de um aumento explosivo da dívida e também não precisem recorrer a surpresas inflacionárias ou à repressão financeira, terão que apertar as políticas fiscais, que em sua maioria ainda estão muito frouxas

Blanchard argumenta que “economias avançadas podem sustentar uma relação de dívida mais alta, desde que ela não esteja tendo crescimento explosivo”. Existe, contudo, uma probabilidade (embora não uma certeza) de que os juros subirão acompanhando os níveis de dívida. Se assim for, a dinâmica da dívida tenderá a se tornar explosiva.

Para que os quocientes da dívida permaneçam estáveis, a taxa de crescimento econômico deve igualar a taxa média de juros, quando o balanço fiscal primário é zero. Quanto maior é o excesso da taxa de juros em relação à taxa de crescimento, maior deve ser o superávit fiscal primário, e vice-versa.

Em que ponto estão hoje as dívidas e déficits fiscais das grandes economias de alta renda?

Seus quocientes de dívida líquida são muito mais altos do que há 20 anos. O FMI estima que em 2024 as relações de dívida/PIB estarão próximas a 100% no Reino Unido, França e Estados Unidos, em 133% na Itália e em 156% no Japão. Em contraste, em 2001, estavam abaixo de 50% no Reino Unido, França e EUA, em 75% no Japão e em 100% na Itália. Esses saltos se deram apesar das baixas taxas de juros. Não é surpresa, portanto, que os déficits primários foram grandes: entre 2008 e 2023, a média foi de 5,3% do PIB nos EUA, de 5,2% no Japão, de 4,1% no Reino Unido e de 2,9% na França. A Itália teve um déficit primário médio de apenas 0,2% do PIB. Isso, contudo, não foi suficiente para conter o aumento da dívida, porque as taxas de juros subiram muito na crise do euro. Isso foi uma punição por descontroles anteriores nos gastos. Por sua vez, a Alemanha conseguiu manter um pequeno superávit primário médio de 0,3% do PIB.

Quais são, então, as perspectivas para os juros e as taxas de crescimento no futuro? Os juros já subiram bastante. O rendimento dos títulos governamentais de dez anos subiu 3 pontos percentuais no Canadá e 3,9 pontos no Reino Unido nos últimos três anos. O Japão, como se sabe muito bem, é a exceção. No entanto, de maneira surpreendente, o aumento nos rendimentos reais nos EUA e no Reino Unido, que oferecem títulos indexados há muito tempo, quase igualou o aumento nos rendimentos nominais: 3 pontos percentuais nos títulos do Tesouro dos EUA protegidos contra a inflação, em comparação aos 3,6 pontos nos títulos convencionais; e 3,4 pontos nos bônus governamentais do Reino Unido indexados, em comparação aos 3,9 pontos percentuais nos convencionais.

A expectativa de inflação mais alta a longo prazo não pode ser uma grande parte do motivo para o salto nos rendimentos nominais. Dessa forma, as possíveis explicações que restam são uma mudança para cima nos juros reais de equilíbrio ou uma política monetária mais contracionista. No caso da primeira, as taxas reais podem permanecer bastante altas. No caso da segunda, elas deveriam voltar a cair quando a política monetária se normalizasse (seja lá o que “normal” signifique hoje em dia). Em resumo, as taxas de juros reais poderiam ficar permanentemente mais altas do que costumavam ser, embora isso ainda não seja uma certeza.

Por fim, quais são as taxas prospectivas de crescimento econômico? As previsões do FMI para 2024-28 indicam um crescimento real médio de 1,9% nos EUA, 1,8% no Canadá, 1,6% no Reino Unido e na França, 1,4% na Alemanha, 0,9% na Itália e 0,6% no Japão. São taxas decididamente baixas em relação às taxas de juros reais atuais.

Para que os governos evitem os riscos de um aumento explosivo da dívida e também não precisem recorrer a surpresas inflacionárias ou à repressão financeira, terão que apertar as políticas fiscais, que em sua maioria ainda estão muito frouxas. Mas será que os governos ousarão fazer isso em sociedades com populações ficando mais velhas, crescimento econômico lento e gastos militares em alta?

Ter um crescimento maior ajudaria. No entanto, como provou o governo Truss no Reino Unido, isso não será alcançado por meios mágicos. Escolhas fiscais dolorosas parecem estar no horizonte. (Tradução de Sabino Ahumada)

*Martin Wolf é editor e principal comentarista econômico do FT.

 

Um comentário:

EdsonLuiz disse...

■■■Que tradução louvável!
■■É difícil ler estas coisas, não é? A leitura deste tema é uma leitura difícil para todos.

■Enquanto eu lia, eu ia pensando:: "Como a tradução está me ajudando a ler."; "Deveriam informar o nome do tradutor.".

■Ao final, havia a informação do nome do tradutor:: Sabino Ahumada.

Obrigado pela claríssima tradução, Sabino Ahumada! As dificuldades que tive com a leitura foram minhas ; e foram da dificuldade natural de ir pensando números e nele vendo gente, relações sociais e a dificuldade de produzir a realidade econômica, política e social.

Mesmo o autor, Martin Wolf, ao ler o texto que foi ele mesmo que escreveu, não teria facilidade.

■Mas é um texto necessário de que seja lido.