Folha de S. Paulo
Diversos países da região sofrem com
instabilidade política, e discurso de presidente eleito leva Argentina para
essa lista
A vitória de
Javier Milei na eleição presidencial da Argentina aumenta a
sequência de sucessivos testes de estresse da democracia na América
Latina, avaliam cientistas políticos ouvidos pela Folha.
"Em diversos países da região, a
população tem a percepção de que a política democrática não traz
resultados", diz Flávia Biroli, professora da UnB (Universidade de
Brasília).
"A pobreza e a violência, por exemplo,
são dois temas em uma lista de promessas não cumpridas da democracia, o que
leva à frustração
com os políticos tradicionais, vistos como corruptos ou incapazes de
apresentar soluções para os problemas."
No Brasil, Jair Bolsonaro (PL) venceu em 2018 com uma plataforma abertamente contra o sistema, e Milei fez o mesmo agora na Argentina. Em ambos os casos, apostaram na retórica do "outsider", alguém que viria de fora para superar os vícios dos políticos profissionais.
Pouco importa que Bolsonaro não
fosse um "outsider" de verdade; assim como sua contraparte argentina,
ele se aproveitou dessa condição autoproclamada para aparecer na mídia e expor
visões que antes não eram consideradas legítimas.
"Os dois foram sendo normalizados. Por
exemplo, a contestação
da gravidade dos crimes da ditadura era impensável", afirma
Biroli, para quem o problema não está em ampliar o leque de pontos de vista no
debate público.
"É preciso diferenciar o que é
alternância de posições políticas e ideológicas, de um lado, e o que são
posições que atentam contra a própria possibilidade de manutenção da ordem
democrática, de outro."
Ela observa que, em seu
primeiro discurso depois de eleito, Milei declarou que não iria
inventar coisa alguma, e sim repetir o que a história mostrou que funciona;
como exemplo, ele citou a
Argentina do século 19. Para a professora da UnB, nada mais
simbólico.
"É a promessa de retorno a uma ordem
social que se pode projetar como grandiosa, mas é uma ordem em que não há
direitos humanos, não há igualdade de gênero, a cidadania é restrita. É uma
ordem pré-democrática."
A ordem que ele propõe é também quase
pré-Estado. Autodefinido
como anarcocapitalista, ele prega uma versão extrema do liberalismo
econômico, com a desregulamentação total e a privatização de tudo.
De acordo com Guilherme Casarões, professor
da Escola de Administração de Empresas da FGV-SP, essa característica distingue
Milei de outros líderes do campo da direita na América Latina.
"Mas a maneira pela qual Milei promete
entregar esse mundo é profundamente autoritária, e nisso ele se aproxima da
outros políticos da extrema direita. Ele não está falando em fazer reformas,
mas em destruir as bases do Estado argentino na paulada, na motosserra."
Segundo Casarões, o autoritarismo dessa
atitude está em imaginar que a vitória das urnas dá legitimidade para fazer o
que bem quiser com seu país, quando, na realidade, ele precisará
negociar com as instituições e com os demais Poderes.
Dono de um discurso contundente, Milei tem sido
celebrado não só por Bolsonaro mas também por Donald Trump, entre
outros políticos que enxergam no êxito argentino um novo impulso para a onda da
direita na América Latina.
"A onda de direita é bastante forte no
mundo desde pelo menos a eleição de
Trump em 2016", diz Casarões. "Mas, na América Latina, e
na América do
Sul em particular, existe não
exatamente uma onda de extrema direita, mas uma onda
anti-incumbente."
Ou seja, na região, há um fracasso
constante de presidentes que disputaram a reeleição ou tentaram fazer um
sucessor nos últimos anos. Além de Argentina e Brasil, também
passaram por isso Chile, Uruguai, Colômbia,
Equador, Peru e México,
entre outros.
Em muitos desses casos, a vitória ocorreu por
margem apertada, propiciando questionamentos de resultado –por vezes com base
em teorias conspiratórias— ou estimulando algum grau de animosidade
entre Poderes.
"A democracia se baseia na confiança no
processo e no funcionamento das instituições. Essa troca permanente de chefia
dos governos testa as instituições, porque esses líderes tendem a chegar com
minoria legislativa e tensionam a relação com os demais Poderes", diz o
professor da FGV.
Se é verdade que Milei não ganhou por pouco, ele o fez com promessas radicais e sem maioria no Legislativo para dar apoio a seus planos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário