O Globo
Sociedade precisa ser mais ouvida. Há um
descontentamento social que se revela em sentimento de insegurança e medo de
retrocessos
Não sei dizer se “a voz do povo é a voz de
Deus”, mas que a sociedade precisa ser mais ouvida, precisa.
As mudanças na sociedade são como placas
tectônicas em movimento. Só são percebidas quando ocorrem acidentes, como os
terremotos, cujo paralelo seriam as revoltas nas ruas e as surpresas nas urnas.
Há um descontentamento social que se revela
em sentimento de insegurança e medo de retrocessos. Esse fenômeno, global,
representa um desafio, especialmente para os partidos de centro-esquerda, que
têm falhado ao não capturar e acolher as novas demandas sociais.
Nos Estados Unidos, estudo recente do Progressive Policy Institute aponta para mudanças nos anseios de eleitores da classe trabalhadora, que levaram ao seu afastamento do Partido Democrata. Uma trajetória que culminou com o domínio de Trump no Partido Republicano.
Se no passado a classe trabalhadora estava
associada a ocupações masculinas sindicalizadas, principalmente na manufatura,
hoje ela se encontra mais nos vários segmentos de serviços, muitos não
sindicalizados, havendo grande presença de mulheres. Muitos trabalhadores não
desfrutam dos benefícios dos sindicalizados da indústria e desejam ter seus
próprios negócios, sendo assim mais sensíveis a barreiras regulatórias e
burocracias que dificultam o empreendedorismo.
Queixam-se da automação que deprime empregos
e salários, e não veem o grau universitário como caminho para o avanço
profissional. A maioria (74%) defende o investimento público em estágios e
planos de carreira e deseja atividades de curta duração que combinem
aprendizado e trabalho.
Grande parcela (45%) acredita que o Partido
Democrata se moveu em demasia para a esquerda e (40%) o considera bastante
influenciado por "interesses especiais”, como sindicatos do setor público.
Quando perguntados sobre o que mudariam na plataforma democrata, apontaram a
prioridade no crescimento e o controle dos gastos públicos.
Apesar de desejarem maior respeito do Partido
Republicano a instituições democráticas e postura menos restritiva em temas
sociais, o julgam mais preparado para gerir a economia. Acham que se sai melhor
no fortalecimento da iniciativa privada e do empreendedorismo. Os democratas
lideram apenas na agenda ambiental e no respeito às instituições democráticas.
A eleição de
Javier Milei na Argentina é outro exemplo das consequências do
movimento de placas tectônicas. Com apoio puxado por homens jovens, sem
formação superior e baixas perspectivas no mercado de trabalho, obteve ampla
vitória.
As últimas décadas mudaram a dinâmica social
naquele país, principalmente desde a crise de 2001, quando a pobreza ficou mais
visível, aponta a consultoria Moiguer. Até então, apesar da fragmentação da
sociedade, havia um imaginário comum de um país de classe média – tanto
segmentos ricos como pobres se identificavam como classe média.
As crises econômicas não só aprofundaram como
solidificaram a fragmentação social, apagando o sentimento de pertencimento de
classe média e alimentando a polarização na sociedade, em diversos temas.
Um estudo da consultoria aponta que 91% da
classe baixa, que representa 50% da sociedade, é cronicamente pobre, o que
significa que não sairia da pobreza mesmo com 4 ou 5 anos de crescimento
econômico robusto do país. Apesar de 70% dos indivíduos da classe baixa terem
mais escolaridade do que os seus pais, isso não se traduziu em ascensão social.
O Brasil seguiu caminho diverso, que permitiu
o surgimento da nova classe média, ainda que com retrocessos por conta da
recessão do governo Dilma. Novos anseios surgiram, como por serviços públicos
de qualidade e liberdade para empreender. Temas típicos de uma agenda liberal
deixam de ser tabu, como as reformas trabalhistas e a autonomia do Banco
Central.
Enquanto isso, o PT confunde estado forte,
que provê bom serviços públicos e protege direitos, com estado
intervencionista, que alimenta o patrimonialismo, este bastante revigorado,
como se viu na tramitação da reforma tributária.
Há ainda boa dose de paternalismo que, ao
final, acaba prejudicando a própria classe trabalhadora, como no tabelamento
dos juros do consignado e na portaria que condiciona o trabalho do comércio nos
domingos e feriados à convenção coletiva de trabalho.
Esses elementos não têm aderência aos novos
valores das classes trabalhadoras. Elas serão ouvidas?
Um comentário:
Eis a questão.
Postar um comentário