quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Tiago Cavalcanti* - Uso e abuso da natureza

Valor Econômico

É essencial ter uma visão estratégica da preservação dos ativos naturais, inclusive para proteger nossa maior vantagem comparativa, o agronegócio

Cada vez mais temos a nossa disposição um amplo volume de informações para conduzir análises científicas e auxiliar na tomada de decisões de governos e instituições privadas. Há um número crescente de fontes disponíveis, contendo dados detalhados de variáveis tradicionais, como renda, emprego e preços, bem como de novas variáveis, como comentários postados nas redes sociais, informações pessoais coletadas por aplicativos em nossos celulares e mapas de uso da natureza.

Organizar todas essas informações e derivar estatísticas relevantes para governos, empresas ou instituições de pesquisas são funções desempenhadas por cientistas de dados e especialistas em “Big Data”. Este é um campo que tem experimentado crescimento em diversas áreas, como saúde, educação, finanças e advocacia, possuindo a capacidade de aprimorar os processos produtivos e aumentar a produtividade.

Uma iniciativa importante que monitora e mapeia o uso e a cobertura da terra no Brasil por meio de dados de satélites é o MapBiomas (brasil.mapbiomas.org). Esse trabalho inclui mapas e dados anuais desde 1985, com resolução de 30x30 metros, que mostram a evolução do uso do solo no país e dos nossos ecossistemas. Recentemente, o MapBiomas Collection 8, lançado em agosto passado, revelou fatos impactantes.

1. O Brasil está se tornando cada vez mais urbano. A área urbanizada do país triplicou de tamanho entre 1985 e 2022. O maior crescimento das áreas urbanizadas ocorreu em cidades de médio porte, com população entre 100 mil e 750 mil habitantes. No mesmo período, houve um aumento desproporcional das áreas urbanas com favelas, principalmente em áreas suscetíveis a inundações e deslizamentos. Os dados mostram, portanto, que no Brasil as ocupações precárias e vulneráveis a eventos climáticos extremos vem crescendo rapidamente nos últimos 38 anos.

2. As nossas florestas ocupam 58% do território nacional, percentual ainda bem mais elevado que de muitos países desenvolvidos ou em desenvolvimento. No entanto, estamos perdendo essa posição. Entre 1985 e 2022 a área ocupada por florestas no Brasil teve uma redução de 15%. Os biomas que mais perderam florestas naturais neste período foram a Amazônia (13%) e o Cerrado (27%). A quase totalidade, cerca de 95%, da conversão das florestas naturais no Brasil, foi para cultivo agrícola e pastagem.

3. Nos últimos 30 anos, o Brasil experimentou uma redução de aproximadamente 16% em sua superfície de água. Várias áreas com maiores reduções nos recursos hídricos do país estão localizadas próximas às fronteiras agrícolas e o desmatamento é um dos principais fatores desta redução. No mesmo período, o Estado do Mato Grosso do Sul, que teve expansão agrícola significativa, perdeu mais da metade (57%) de seus recursos hídricos. Atualmente a Amazônia enfrenta uma seca sem precedentes, e o Rio Negro registrou o nível mais baixo de toda a sua história desde 1902, quando as medições começaram a ser realizadas. As imagens são alarmantes.

É evidente que a expansão agrícola moderna trouxe vários benefícios econômicos e sociais para o país, tornando o Brasil um dos maiores produtores e exportadores de diversos produtos agrícolas, como soja, milho e carne. Em 1960, o Brasil importava 30% dos alimentos que consumia. Com a contribuição decisiva da Embrapa, o Brasil desenvolveu tecnologias agrícolas que permitiram a produção de soja e milho no Cerrado, transformando o agronegócio e também a região Centro-Oeste.

No entanto, o que o MapBiomas revela é que se faz necessário pensar urgente e seriamente no manejo florestal, uso do solo e expansão urbana do país. As sociedades estão inseridas na natureza e dependem vitalmente dos serviços oferecidos pelo meio ambiente. Portanto, nossa dependência da natureza é um risco que os mercados e reguladores deveriam levar em consideração. Avaliar os serviços que a natureza oferece de regulação do clima, preservação de recursos florestais e hídricos, além da produtividade sustentável do solo, devem fazer parte também de nossas decisões econômicas e na formulação de políticas públicas.

Partha Dasgupta, meu colega da Universidade de Cambridge e autor do Biodiversity Report, ou o Dasgupta Review, coloca que, juntamente com seus benefícios estéticos e culturais, a natureza oferece duas amplas categorias de serviços. Uma delas é a de fornecimento de bens, como alimentos e matérias-primas. Tradicionalmente, esses recursos naturais têm sido o principal foco dos economistas. No entanto, há outra categoria que é igualmente crucial, embora menos óbvia: as atividades de regulação e manutenção dos ecossistemas, especialmente os florestais, que, por exemplo, contribuem decisivamente para polinizar cultivos, fixar nitrogênio no solo, decompor resíduos, absorver carbono, proteger áreas contra enchentes e regular o clima.

É difícil mensurar como o bom manejo das florestas afeta a produtividade agrícola, visto que um conjunto de variáveis é afetado pelo uso e gestão diferentes da natureza. Um estudo recente com pesquisadores da Universidade de Columbia, Florian Grossets, Anna Papp e Charles Taylor (“Rain Follows the Forest”), avalia os efeitos de um programa de reflorestamento da primeira metade do século passado nos Estados Unidos, o Great Plains Shelterbelt Project, liderado por Franklin Roosevelt.

O referido projeto plantou florestas ao longo de um corredor que se estende do norte ao sul no Meio-Oeste americano. Utilizando a direção do vento para avaliar as áreas que ficaram mais protegidas pelas novas árvores, os autores demonstram uma mudança no clima local em uma área situada a quase 200 km de distância das novas florestas, com um aumento na produtividade agrícola de cerca de 11-22% em relação às áreas desprotegidas que possuem condições geográficas semelhantes.

É essencial ter uma visão estratégica da preservação dos ativos naturais, inclusive para proteger nossa maior vantagem comparativa, que é o agronegócio. O país tem potencial para se desenvolver com um melhor manejo do solo, atrair investidores estrangeiros em áreas relacionadas à exploração das florestas e negociar de forma assertiva com a comunidade internacional, que se beneficia da preservação de nossos ecossistemas, com impacto global sobre o clima.

*Tiago Cavalcanti é Professor Titular de Economia da Universidade de Cambridge e da FGV-SP.

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