Folha de S. Paulo
Um podcast assim é como um romance: cria
apego, vínculo emocional, amigos íntimos
De repente, do riso fez-se o pranto. Acabou
o Foro
de Teresina, um dos podcasts de política mais amados pelos brasileiros,
deixando um nó na garganta, desses de fim de histórias de amor. Para mim, o
episódio de despedida do programa, na voz de Fernando de Barros e Silva,
poderia ter ao fundo um desses deliciosos boleros de sabor almodovariano.
"Lo nuestro se acabó y te arrepentirás/ De haberle puesto fin a un año de
amor." E corta para Luz Casal, em "De Salto Alto", a desnudar a
alma dos teresiners enlutados: "Te has parado a pensar lo que sucederá/ Todo lo que
perdemos y lo que sufrirás?".
Não subestimem a importância do luto que se segue ao fim de algum produto cultural cujo consumo se dá por imersão. Leitores conhecem bem essa sensação de angústia ao terminar um romance longo que nos transportou para o seu universo. Aliás, nem se trata de consumo, mas de apreciação e de envolvimento, de uma relação em que os nossos sentimentos e a nossa imaginação estão tão implicados quanto a nossa mente. Sentimos falta das conversas, das pessoas, daquele mundo tão familiar, da dinâmica dos afetos, da companhia, de tudo.
A ficção seriada audiovisual com frequência
nos coloca na mesma posição. Que saudade daquela novela, como foi difícil
começar uma nova, quase uma infidelidade. E os bons seriados? Dá vontade de
mandar uma carta para perguntar às pessoas (não são mais personagens) como
estão indo depois que a história terminou. Serão felizes? Os seus filhos estão
bem? O que andam fazendo?
Isso tudo para dizer que se engana quem pensa
que, uma vez que o Foro é um podcast de jornalismo e
análise política, trata-se simplesmente de mais um produto da indústria da
informação. Essa me parece a lógica da Carta do Editor, que explica as
controvérsias ao redor do fim do Foro e da sua repercussão nos ambientes
digitais: trata-se de uma empresa de jornalismo cujo produto principal é
a revista Piauí,
o Foro era um apêndice, quase uma concessão às novidades do mundo. Afinal, o
jornalismo centrado em informação política demorou mais de cem anos para se
consolidar como atividade relevante e como modelo de negócios, enquanto
podcasts são debutantes. O Foro, inclusive, pode ter representado o primeiro
podcast de conversa política na vida de muita gente.
Na verdade, a coisa é um pouco mais complexa,
embora os hábitos da Redação possam não se ter dado conta. Um podcast dessa
natureza e uma revista são dois gêneros de coisas completamente diferentes. Não
tem comparação. A Piauí e o Foro são ótimos, cada um no seu gênero, mas em
alcance, imagem, vínculo emocional, fanbase e fidelização, a Piauí não chega
perto do Foro, esse é o fato. Não entro no mérito dos comportamentos de
jornalistas e editor que resultaram no fim do Foro de Teresina. Nem vou
depreciar os jornalistas da Piauí nem o jornalismo que a revista faz, todos
ótimos. Mas o caso revelou algo que a empresa parece não ter entendido: a Piauí
deitou fora um produto e uma marca valiosa que não vai conseguir substituir. O
Foro não era um apêndice do trabalho formidável da revista, como o editor e os
jornalistas do Piauí parecem entender. Para os ouvintes do Foro, a revista é
que era o apêndice, se muito.
Um podcast desse tipo, como um romance longo,
uma novela e uma série, faz uma coisa que jornais e revistas não fazem, pelo
menos não em proporção comparável: criam apego, vínculo emocional, amigos
íntimos. Como é uma conversa a que a gente assiste e de que, de algum modo,
participa, há muito mais envolvido nessa prosa. Os cacoetes de cada um dos
apresentadores, as provocações, as inflexões da voz, o timbre, o modo como
pensam, os gracejos, os risos, a personalidade, tudo isso cria uma sensação de
íntima familiaridade que não se compara ao jornalismo.
Por fim, tem a questão da rotina da
apreciação do programa: há um dia certo, um determinado ritual, a escolha da
companhia ou da circunstância, a construção da expectativa, a hora do desfrute,
o momento do comentário com algum outro fã ou cúmplice. Levam-se pessoas
queridas ao podcast como levamos amigos e amores ao "nosso"
restaurante ou à livraria preferida. Se um deles fecha, deixa um vazio e
corações partidos.
Por isso há tantos enlutados com o fim do
Foro. Não adianta dizer que a Piauí continua boa e tem ótimos jornalistas, o
que é fato, mas a revista não terá o condão de substituir o Foro no coração dos
que o ouviam. Nem deixará de ser punida com cancelamento de assinaturas pela
fanbase do Foro ou xingada nas redes. O modo de se consumir informação mudou, é
preciso entender isso.
*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
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