O Globo
Nas campanhas tudo se discute, menos a pedra
fundacional da nação: o modelo elitista edificado na casa, jamais na comunidade
No nosso teatro público, o “político” faz o
cru virar cozido. Tudo o que depende de respeito impessoal — este cru contido
na lei que é a alma da cidadania e do igualitarismo democrático — é devidamente
cozido em fogo brando depois que o “candidato” se transforma em “eleito”, é
investido e personaliza um cargo público.
O cru está para o cozido assim como o
candidato está para o eleito. A transformação de um no outro é obra da
culinária “política”. Um cozimento rápido, rasteiro e revolucionário, pois leva
o sujeito que quer se eleger a prometer mudanças ao governista reacionário,
avesso a qualquer avanço.
Reparem: o “candidato” é sempre um revoltado que surpreende porque vai, digamos, redimir as tais contas públicas sempre desajustadas. Mas, uma vez “eleito” e enfaixado, as brasas da política iniciam o cozimento, e logo ele muda e volta ao programa onipotente dos populismos.
A mestra ou responsável por essa mudança é uma velha atriz: a “política”. Essa arte de cozinhar em fogo lento que nós, os comuns, tachamos de “jeitinho”, “jogada”, “roubalheira” ou “malandragem”. Não deixa de ser lamentável que esse instrumento de paz e progresso, a Política (com P maiúsculo), tenha seu lado de tramoia e engano.
Mas, infelizmente, é a política com “p”
pequeno que cozinha o cru e cruel do juro alto, contra a farta distribuição da
identidade político-social de pobre — uma categoria que, sem querer, mas talvez
sabendo, engendra um sistema de diferenciação de que é difícil sair por sua
imensa coerência cultural com as hierarquias que conformaram toda a História do
país. Uma terra formada por meio de um aristocratismo centralista, avesso a
qualquer ilustração que não fosse o Direito Canônico ou processualista, com sua
arte e ciência de interpretar indefinidamente as normas e, desse modo,
imobilizar imoralmente, mas dentro da lei, o sistema de poder.
No papel de candidato, porém, o sujeito é um
liberalizante revolucionário em economia e um republicano nato em política.
Nesse campo, desmoralizado no Brasil pela “politicagem”, ele fala em contrariar
nossa índole relacional, cuja maior característica é o englobamento da regra e
da lei pela amizade, pelo compadrio e pelo parentesco. Vale, pois, observar que
nas campanhas tudo se discute, menos a pedra fundacional da nação: o modelo
elitista edificado na casa, jamais na comunidade. Comunidade que nas grandes
cidades transformou-se em antro de bandidos, traficantes e milicianos ao lado
de gente sofrida e honesta. Essa é uma vergonhosa criação nacional.
Como, confessa um político escapando da
malandragem “política”, nomear um correligionário competente, preterindo um
cunhado ou um primo-irmão? Prefiro, conclui zangado de razão, ficar sem
ideologia do que perder o afeto da família.
Certamente é melhor ficar com o
conservadorismo da casa que com o mudancismo confundido com transformação da
rua. Pois as normas da casa, além de óbvias (não roube do seu pai, não se case
com sua irmã, não reclame da comida...), não são escritas ou debatidas. Nós as
internalizamos, elas fazem parte de nossa vida. Mas em “política” tudo, ou
quase tudo, chega de fora para dentro. Tal como o “candidato” que hoje cobra do
“eleito” aquilo que ele deveria fazer — do mesmo modo que, uma vez eleito, faz
como recrimina o candidato.
Pena que eleitos e candidatos não redefinam o
conceito de político, tirando-o da mera esperteza ou mentira e de um realismo
burro e reacionário do poder como um jogo em que vale tudo.
Por fim, é curioso observar que o candidato
sempre tende ao progressismo, enquanto o eleito acerca-se do conservadorismo ou
de uma trivial repetição. Quanto mais não seja, porque, numa sociedade de
índole autoritária, os cargos públicos, além de enricar, oferecem privilégios e
prerrogativas que o público não conhece e, como quer a elite, não precisa
conhecer.
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