O Globo
Ela foi às redes sociais denunciar a revista
que sofreu nos cabelos black
Luciane Dom é uma mulher negra de 34 anos, nascida em Paraíba do Sul (RJ). Formou-se em História na Uerj. É cantora e compositora. Lançou o primeiro álbum, “Liberte esse banzo”, em 2018. No Spotify, tem 12 mil ouvintes mensais e duas dezenas de singles. Já se apresentou nos Estados Unidos, no Chile, na Colômbia e no Canadá. Cantou com Luedji Luna, Vox Sambou, Liniker e os Caramelows, Emeline Michel, Malika Tirolien. Em março, ganhou em Nova York o African Entertainment Awards USA, na categoria estrela em ascensão. Neste ano, atuou no musical “Viva o povo brasileiro”. Anteontem, Lu foi às redes sociais anunciar o lançamento, hoje, de sua mais recente composição, “É Natal”. A sobrinha pequena pediu uma canção para a festa. Em uma semana, a tia compôs; em um dia, produziu; em horas, gravou.
Não sabia da impressionante trajetória nem
ouvira a voz cristalina de Luciane Dom até o racismo atravessar
seu caminho. Ela já deveria ser minha — de todos nós — velha conhecida. Lu Dom
foi às redes sociais denunciar a revista que sofreu nos cabelos black, depois
de já ter passado pelo raio-X do Aeroporto Santos Dumont. O post viralizou
feito rastilho de pólvora e me alcançou como bofetada no fim da manhã de ontem.
Na foto, uma Lu perplexa e triste foi gatilho para o tanto de violência que,
vida afora, pessoas negras sofremos — e, surpreendidos, acabamos por não
reagir. Não há criança, mulher ou homem negro neste país que não tenham sido,
direta ou indiretamente, ofendidos pelo cabelo que têm. Na escola primária,
lembro-me do cabelo repartido em coques que (supostos) colegas apertavam e
chamavam de Bombril. A fabricante não faz muito tempo foi denunciada pela ONG
Criola pela esponja de lã de aço batizada de Krespinha, referência óbvia ao
cabelo de mulheres negras. A ação, que envolve pedido de indenização de R$ 1
milhão, corre no TJ-RJ desde 2021. O produto foi retirado do mercado.
Diante da opressão que impõe pele branca,
cabelo liso e magreza como padrão de beleza, a relação das pessoas negras com a
própria cor e o próprio corpo é pavimentada por pedras no percurso até a
autoestima. A literatura traz evidências. Sem esforço, dá para citar um punhado
de livros que se ocuparam do assunto. “História social da beleza negra” é a
tese de doutorado da historiadora Giovana Xavier, tornada livro pela Rosa dos
Tempos em 2021. A autora investigou o surgimento da indústria — e também da publicidade
— de cosméticos para mulheres negras nos Estados Unidos, na virada do século
XIX para o XX. Desvela segregação racial, ameaça à saúde, busca da boa
aparência e da beleza, projeto de mobilidade social.
Djaimilia Pereira de Almeida, nascida em
Angola, radicada em Lisboa, trata de pertencimento, identidade, racismo e
feminismo em “Esse cabelo — A tragicomédia de um cabelo crespo que cruza
fronteiras” (Leya, 2017). “A minha mãe cortou-me o cabelo pela primeira vez aos
seis meses. O cabelo, que segundo vários testemunhos e escassas fotografias era
liso, renasceu crespo e seco”, escreve de entrada. E lá pela metade: “A minha
avó branca perguntava-me pelo cabelo: ‘Então Mila, quando é que tratas esse
cabelo?’”.
A escritora e tradutora Stephanie Borges
venceu o IV Prêmio Cepe Nacional de Literatura em poesia com “Talvez precisemos
de um nome para isso” (Cepe Editora, 2019). No poema repartido em dez
capítulos, o cabelo da mulher negra — com perdão da imagem — é fio condutor. “É
triste que existam meninas virgens, mas seus cabelos não”, versa sobre as
intervenções de ferro quente a compostos químicos, mais próximas de tortura que
de beleza.
Em “Memórias da plantação — Episódios de
racismo cotidiano” (Cobogó, 2019), Grada Kilomba, uma das curadoras da Bienal
de São Paulo 2023, fez um capítulo inteiro sobre Políticas do Cabelo. Ela
identifica cinco formas como negros são percebidos. Uma delas, a incivilização
(personificação do outro violento e ameaçador, o criminoso, o suspeito, o
indivíduo perigoso), foi a que pautou a abordagem violenta contra Lu Dom no
Santos Dumont.
Corpos negros são alvo preferencial em
abordagens de agentes de segurança pública e privada. No ano passado, o CESeC
publicou “Negro trauma: racismo e abordagem policial no Rio de Janeiro”. Das
pessoas que já tinham sido paradas por agentes da lei, dois terços eram pretas
ou pardas. “Homens e mulheres relataram que, além da revista corporal,
policiais às vezes procuram drogas nos cabelos”, informa o estudo.
Elisa
Lucinda dedica esquete a cabelos crespos em “Parem de falar mal da
rotina”, peça que encena há três décadas, transformada em livro (Record, 2023).
Faz do humor denúncia contra a depreciação da estética e a criminalização da
identidade negra. Nos últimos tempos, a literatura infantil produziu inúmeras
obras para ajudar os pequenos a amar seus cabelos. “Hair love”, sobre uma
menina negra, ganhou o Oscar 2020 de melhor curta de animação. David Junior e
Yasmin Garcez, brasileiros, criaram a “Hora do Blec”, iniciativa artística com
canal no YouTube e espetáculo musical com personagens liderados pelo menino
negro Blec. “Cabelo lindo” é top ten na playlist do meu neto, Martin. É difícil
construir autoestima, quando instituições promovem — e a sociedade naturaliza —
a criminalização da pele e do cabelo de crianças, mulheres e homens negros.
Canta, Lu. É Natal.
Um comentário:
Ridículo,como quase todos.MAM
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