Folha de S. Paulo
A competitividade das eleições impede que
perdedores revisem suas posições para ajustá-las às preferências do eleitorado
Em uma das mais influentes análises da
eleição presidencial de 2020, Lynn Vavreck, Cris Tausanovitch e John Sides argumentam que o sistema
político dos EUA está "calcificado", e não apenas
polarizado. A calcificação alicerça-se em quatro pilares. O primeiro é que a
distância ideológica entre democratas e republicanos se ampliou muito,
aumentando para o leitor o custo de mudar o voto, como já
discuti aqui na coluna.
O segundo é que internamente os partidos estão crescentemente mais homogêneos em termos demográficos (religião, idade, raça, rural x urbano, etc.) e programáticos. A partir dos anos 1970, por exemplo, a população branca dos estados sulistas, que era maciçamente democrata, migrou para o partido republicano, em uma sobreposição crescente de características sociais e partidarismo.
O terceiro é que a dimensão que vertebrava a
disputa política desde o New Deal e girava em torno do tamanho do estado, carga
tributária e política social deu lugar a questões identitárias. O quarto é a
nova e inédita paridade de forças entre os partidos, convertendo as eleições em
pleitos muito competitivos, em forte contraste com a hegemonia democrata na
Câmara dos Deputados no pós-guerra, que se estendeu por 40 anos, como mostrei
aqui.
Estes dois últimos aspectos formam o núcleo
duro da calcificação. Questões
identitárias não admitem compromissos, são fundacionais. A
competitividade das eleições, por sua vez, impede que os perdedores revisem
suas posições para ajustá-las às preferências cambiantes do eleitorado. Os
perdedores quase ganharam as eleições; têm, portanto, não só incentivos para
cristalizar seus programas mas também para interferir nas regras do jogo,
afinal pequenas modificações podem levar à vitória. Assim, os eleitores
voláteis, sem identidade partidária forte, e que são persuadidos a mudarem de
posição nas eleições estão desaparecendo. Só houve mudanças de voto de um
partido a outro, em 2022, em cerca de 5% do eleitorado, o menor percentual
desde 1940.
A evidência mais forte de calcificação,
afirmam os autores, é que ela resistiu a eventos disruptivos excepcionais como
a pandemia e Trump. Se isto é verdade, a eleição de 2024 será igual a de
2020. Prevalecerá o
hiperpartidarismo em um quadro de preferências calcificadas. E
também a segmentação espacial, em que os grotões pobres e áreas rurais votarão
em Trump e os estados de renda mais elevada em Biden (que é uma imagem
invertida do mapa do voto entre nós).
Em novo livro (que será objeto de resenha específica na coluna),
Felipe Nunes e Thomas Traumann sustentam que o eleitorado brasileiro também
está "calcificado". Que o Congresso não está já sabemos: a vasta
maioria dos partidos que apoiavam Bolsonaro agora também apoia Lula. Quem está
calcificado? O eleitorado, militantes, parlamentares?
*Professor da Universidade Federal de
Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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