Folha de S. Paulo
Israelenses e palestinos precisam de líderes
motivado pela consciência de sua interpendência, mas ambos não os têm
Atualmente, Israel está
correndo um grande perigo. Com inimigos como o Hamas,
o Hezbollah, os houthis e
o Irã,
Israel deveria contar com a simpatia de grande parte do mundo. Mas não conta.
Devido à maneira como o primeiro-ministro
Binyamin Netanyahu e sua coalizão extremista têm conduzido a guerra na Faixa de
Gaza e a ocupação da Cisjordânia, o país está se tornando radioativo, e as
comunidades judaicas da diáspora em todos os lugares estão cada vez mais
inseguras. Temo que a situação esteja prestes a piorar.
Nenhuma pessoa justa poderia negar a Israel o
direito de autodefesa depois que o ataque do
Hamas em 7 de outubro matou cerca de 1.200 israelenses em um dia.
Mulheres foram abusadas sexualmente; crianças
foram mortas na frente de seus pais, e pais, na frente de seus filhos. Dezenas
de homens, mulheres, crianças e idosos israelenses sequestrados ainda são
mantidos como reféns em condições terríveis.
Mas nenhuma pessoa justa pode olhar para a campanha israelense para destruir o Hamas, que já matou mais de 31 mil palestinos em Gaza, cerca de um terço deles combatentes, e não concluir que algo deu terrivelmente errado lá.
Entre os mortos estão milhares de crianças e,
entre os sobreviventes, muitos órfãos. Grande parte da Faixa de Gaza é agora um
deserto de morte e destruição, fome e casas em ruínas.
A guerra urbana traz à tona o que há de pior
nas pessoas, e isso certamente é verdade para Israel em Gaza. Essa é uma mancha
no Estado judeu. Mas Israel não é o único responsável por essa tragédia. A
mancha do Hamas também é negra.
Essa milícia islâmica iniciou o conflito em 7
de outubro sem nenhum aviso, proteção ou abrigo para os civis palestinos, e fez
isso sabendo muito bem, por experiência própria, que Israel responderia
bombardeando as fortalezas do Hamas, que se encontram em túneis sob casas,
mesquitas e hospitais.
O Hamas demonstrou total desprezo pela vida
dos palestinos, não apenas dos israelenses. Mas o Hamas já havia sido rotulado
como uma organização terrorista. Ele não é um aliado dos EUA e nunca alegou
praticar a "pureza das armas".
Dito isso, a posição de Israel no mundo pode
sofrer outro grande golpe em breve devido a algo que me fez desconfiar de sua
invasão desde o início: Netanyahu enviou as Forças de Defesa de Israel para
Gaza sem um plano coerente para governá-la após qualquer desmantelamento ou
cessar-fogo do Hamas.
Na minha opinião, há apenas uma coisa pior
para Israel, sem mencionar os palestinos, do que uma Gaza controlada pelo
Hamas: uma Gaza em que ninguém está no comando, uma Gaza em que o mundo espera
que Israel estabeleça a ordem, mas Israel não pode ou não quer, de modo que ela
se torna uma crise humanitária permanente e gritante.
Minha recente visita à fronteira de Gaza me
sugeriu que é exatamente para onde estamos indo. Em 2 de março, acompanhei o
comandante do Centcom dos EUA [órgão responsável por planejar e conduzir
operações militares dos EUA no Oriente Médio, na África Central e na Ásia
Central], general Michael Kurilla, em sua visita ao ponto de passagem de Erez
entre Israel e Gaza. Kurilla estava encarregado do lançamento aéreo de
alimentos humanitários dos EUA que estava prestes a ocorrer
Com o som de drones zumbindo no alto e o
estrondo distante da artilharia, um comandante israelense local explicou que a
maioria das forças israelenses no norte de Gaza, que inclui sua maior área
urbana, a Cidade de Gaza, havia se retirado para a área de fronteira israelense
ou ao longo da estrada que divide Gaza de Norte a Sul.
De agora em diante, disse outro oficial
israelense sênior, as tropas israelenses e as forças especiais só entrariam e
sairiam do Norte de Gaza para atacar ameaças específicas do Hamas, mas
basicamente ninguém estava governando o dia a dia dos civis deixados para trás,
exceto algumas centenas de combatentes do Hamas e líderes de gangues locais.
Entendi imediatamente como uma
cena caótica se desenrolou na distribuição de alimentos dois dias antes.
Israel está rompendo o controle do Hamas e, ainda assim, recusando-se a assumir
a responsabilidade pela administração civil em Gaza com suas próprias forças —e
recusando-se a recrutar a Autoridade Nacional Palestina (ANP) na Cisjordânia,
que tem milhares de funcionários em Gaza, para realizar essa tarefa.
Ele está se comportando dessa maneira porque
Netanyahu não quer que a ANP se torne o governo palestino na Cisjordânia e em
Gaza, o que poderia dar a ela uma chance de credibilidade para se tornar um
Estado palestino independente um dia.
Em outras palavras, Israel tem um
primeiro-ministro que, aparentemente, prefere ver Gaza se transformar na
Somália, governada por senhores da guerra, e arriscar os ganhos militares de
Israel no desmantelamento do Hamas a fazer parceria com a Autoridade Palestina
ou com qualquer órgão governamental palestino legítimo, de base ampla e não
pertencente ao Hamas. Isso porque seus aliados de extrema direita do gabinete,
que sonham que Israel controle todo o território entre o rio Jordão e o mar
Mediterrâneo, incluindo Gaza, o expulsarão do poder se ele fizer isso.
O governo de Netanyahu aparentemente espera
alistar líderes de clãs palestinos locais na Gaza pós-Hamas, mas duvido muito
que isso funcione. Israel tentou e fracassou com essa estratégia na Cisjordânia
na década de 1980, pois esses locais eram frequentemente estigmatizados como
colaboradores e nunca ganharam força de governo.
Confesso que, ao contemplar tudo isso da
fronteira, tive dois flashbacks que foram uma espécie de pesadelo acordado.
O primeiro foi a lembrança de como os EUA invadiram
o Iraque com o objetivo de construir uma nova ordem democrática para
substituir a tirania de Saddam Hussein, que eu apoiava. Mas quando se tratou da
implementação, o governo Bush quebrou o Exército iraquiano e o Partido Baath,
que estava no poder, sem nenhum plano coerente para criar uma alternativa
melhor de governança. Isso fez com que muitos iraquianos anti-Saddam se
voltassem contra os EUA e criou as condições para a insurgência antiamericana.
Resumi tudo isso em uma coluna publicada em 9 de abril de 2003. Eram 20 dias após a
invasão do Iraque pelos EUA e eu havia entrado no país com uma equipe da Cruz
Vermelha do Kuwait que estava entregando suprimentos médicos ao principal
hospital do porto iraquiano de Umm Qasr.
Notei três coisas quase imediatamente: quão
poucas tropas americanas ou aliadas estavam por perto mantendo a ordem, o caos
que isso estava produzindo e como as pessoas estavam mal-humoradas.
Escrevi da seguinte forma: "É difícil
sorrir quando não há água. É difícil aplaudir quando se está com medo. É
difícil dizer: 'Obrigado por me libertar', quando a libertação significou que
os saqueadores levaram tudo, desde os silos de grãos até a escola local, onde
levaram até mesmo o quadro negro. (...) Seria uma idiotice perguntar aos
iraquianos daqui o que eles achavam da política. Eles estão em um estado de
natureza pré-político e primordial. No momento, Saddam foi substituído por
Hobbes, não por Bush."
Escrevi que havia entrado com membros de uma
equipe de ajuda humanitária do Kuwait, "que, com pena dos iraquianos,
jogaram comida da janela de um ônibus quando saímos. Os habitantes da cidade de
Umm Qasr correram atrás dessa comida... lutando por migalhas de pão. Essa foi
uma cena de humilhação, não de libertação. Precisamos fazer melhor".
Concluí: "Os EUA quebraram o Iraque;
agora os EUA são donos do Iraque e têm a responsabilidade de normalizá-lo. Se a
água não flui, se a comida não chega, se as chuvas não vêm e se o sol não
brilha, a culpa agora é dos EUA. É melhor nos acostumarmos com isso, é melhor
consertarmos as coisas, é melhor fazermos isso logo e é melhor conseguirmos
toda a ajuda possível."
Flashback nº 2: É 22 de maio de 2018, e estou
escrevendo perto da fronteira de Gaza com Israel uma coluna que seria
intitulada "Hamas, Netanyahu e mãe natureza".
Baseando-me em dados de ambientalistas
israelenses e palestinos, escrevi sobre como —devido à má administração da
economia de Gaza pelo Hamas e ao desvio de materiais de construção para cavar
túneis para penetrar em Israel— Gaza estava sofrendo uma escassez crítica de
infraestrutura, especialmente de estações de tratamento de esgoto. Portanto, os
palestinos estavam despejando cerca de 100 milhões de litros de esgoto bruto no
Mediterrâneo todos os dias.
Por que os israelenses deveriam se importar?
Afinal de contas, Gaza está "ali", atrás de uma cerca. Conheça a mãe
natureza. Devido à correnteza predominante no Mediterrâneo, a maior parte do
esgoto não tratado de Gaza despejado no Mediterrâneo fluía para o norte, para a
cidade litorânea israelense de Ashkelon, local da segunda maior usina de
dessalinização de Israel.
Cerca de 80% da água potável de Israel vem da
dessalinização e 15% da água potável vem apenas dessa usina de Ashkelon.
Como resultado dos resíduos flutuantes de
Gaza, a usina de dessalinização de Ashkelon teve que fechar várias vezes para
limpar a sujeira de Gaza de seus filtros.
Israelenses e palestinos são
interdependentes. Perde-se lá, sente-se aqui. A única questão é se um dia eles
conseguirão forjar uma interdependência saudável ou se estarão condenados a uma
interdependência doentia. Mas eles serão interdependentes. Cada comunidade
precisa de um líder cujas ações sejam motivadas por essa verdade fundamental.
No momento, nenhuma delas tem um.
*Editorialista de política internacional do
New York Times desde 1995, foi ganhador do prêmio Pulitzer em três
oportunidades
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