Valor Econômico
A coragem dos processos, dos inquéritos e das comissões parlamentares de inquérito podem restituir ao Brasil a soberania que o autoritarismo usurpador substituiu pela técnica antidemocrática das “fake news” e da boçalidade
O levantamento do sigilo de numerosos
depoimentos de civis e militares ouvidos no processo da tentativa de golpe de
Estado de Jair Bolsonaro e seus ajudantes aparentemente fecha um ciclo de
tensões e impasses políticos que teve início na circunstância da renúncia do
presidente Jânio da Silva Quadros, em 1961.
Aquele foi um período agudo da Guerra Fria e
da hegemonia americana na América Latina, sobretudo como consequência da
Revolução Cubana. Uma revolução que não era comunista, mas movida pelo afã
moral e político de completar a independência do país e libertá-lo da condição
de cassino e prostíbulo de Miami.
Os americanos cometeram o grave engano
político de irritarem-se com o atrevimento dos cubanos liderados por Fidel de
se libertarem da dominação do que havia de pior no capitalismo de periferia.
Decretaram o boicote aos produtos da ilha e negando-lhes até mesmo fornecimento
de remédios. Aos revoltosos não restou alternativa senão a de aliarem-se aos
russos e ao risco da guerra nuclear.
Os países latino-americanos tiveram seu destino alterado pela polarização entre EUA e URSS. Situação descabidamente persistente na melancólica ascensão do bolsonarismo. E no mais melancólico governo que resultou de técnicas antipolíticas de criação de fantasias que convencessem a grande massa da população brasileira partidarizável, mas não politizada, de que o país estava à beira do abismo vermelho.
É importante retornar à campanha política do
general Hamilton Mourão, que aspirava à presidência, mas foi passado para trás
e se conformou em ser vice e subalterno de um capitão do Exército, de curiosa
carreira até o poder.
Mourão e outros altos oficiais militares
entendem que a questão política no Brasil é um elo da questão geopolítica
centrada na hegemonia americana no continente. Ou seja, o general, mesmo muito
depois do fim da União Soviética e da Guerra Fria, continuara e continua preso
ao domínio ideológico de uma realidade política que não existe mais. O que
sugere que os militares brasileiros foram profissionalmente socializados na
visão de mundo de uma sociedade sem alternativa e de um Brasil sem futuro, um
Brasil que só tem o futuro da dependência.
As irracionalidades e arcaísmos dessa visão
retrógrada de mundo manifestam-se em todas as partes e em todos os níveis da
estrutura política herdada desse passado. A URSS deixara de servir como
referência para um desenvolvimento econômico alternativo. Até para Cuba.
Mas não foram apenas os fatores geopolíticos
que afetaram decisivamente a crise decorrente do janismo na direção do que veio
a ser o golpe político de 1964. Por trás da conspiração do golpe estava o
projeto de transformar o capitalismo brasileiro, cheio de resíduos econômicos
não capitalistas, num capitalismo “de verdade”, isto é, que se enquadrasse no
capitalismo multinacional que se desenvolvia no mundo após a Segunda Guerra
Mundial.
O nacionalismo econômico brasileiro, que
ganhara corpo e substância com a Revolução de Outubro de 1930, com Getúlio
Vargas, entra em crise na década de 1950, especialmente com o suicídio de
Vargas em agosto de 1954. O suicídio adiou o golpe para 1964, que reintroduzia
o país na realidade da dominação externa e dependente. O golpe foi opção para
negar ao Brasil um protagonismo histórico próprio e autônomo.
Um fenômeno paralelo, no qual se prestou
pouca atenção, foi o surto religioso, evangélico, dos anos 1950. Na Guerra da
Coreia, que resultou na divisão do país em duas Coreias, teve uma função
importante para barrar a expansão do comunismo chinês. Apesar de quase metade
da população coreana não manifestar confissão religiosa, o protestantismo
passou o budismo e chega a quase 20% da população.
Os americanos descobriram as religiões
evangélicas como força política auxiliar da geopolítica de sua dominação. O
Brasil tornou-se um dos mais importantes laboratórios dessa inovação política.
Juntar a urna das eleições com o gazofilácio do dízimo das igrejas barateou a
guerra ideológica. Criou uma modalidade de ascensão social e de dominação
política tentadora, sobretudo para a classe média. Viabilizou a tirania
econômica neoliberal de Milton Friedman, que reconhecia que ela só funciona em
regime político autoritário.
Os coadjuvantes religiosos do regime
bolsonarista fazem parte desse sistema. Nesse sentido a coragem dos processos,
dos inquéritos e das comissões parlamentares de inquérito podem restituir ao
Brasil a soberania que o autoritarismo usurpador substituiu pela técnica
antidemocrática das “fake news” e da boçalidade. É nossa chance de voltarmos a
ser brasileiros de verdade, não os de roupa íntima verde-amarela. Não a
bandeira para assoar o nariz.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).
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