quinta-feira, 27 de junho de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Decisão do STF sobre maconha representa avanço

O Globo

Corte eliminou principal lacuna da lei ao estabelecer critério objetivo para distinguir usuário de traficante

Foi acertada a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de descriminalizar o porte de maconha para consumo próprio e fixar uma quantidade — 40 gramas, o equivalente, segundo estudos, a 80 cigarros da droga — para distinguir usuário e traficante. Dependendo das circunstâncias (presença de balança, caderno de anotações e outros indícios), a prisão não dependerá da quantidade. A principal lacuna da legislação atual era a indefinição, responsável pelo encarceramento em massa — e injusto — de dezenas de milhares de usuários. A dificuldade de consenso e as pressões fizeram o julgamento se arrastar por mais de uma década.

O uso de maconha para consumo pessoal, dentro dos parâmetros e circunstâncias estabelecidos, deixa de ser crime. Fica sujeito a sanções administrativas, punidas com advertência ou medidas educativas, e à apreensão da droga. O presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, fez questão de esclarecer no julgamento que a decisão não legaliza a maconha. O consumo de drogas em lugares públicos continua sendo ato ilícito. A decisão vigora até que o Congresso delibere sobre o assunto.

A Lei de Drogas, de 2006, não tinha a intenção de prender usuários, mas, na prática, surtiu efeito contrário ao pretendido. Ao deixar de estabelecer critérios objetivos para distinguir o usuário do traficante, a decisão passou a depender dos humores de policiais, promotores e juízes. Em razão da subjetividade, as prisões variam de acordo com a cor da pele, a situação socioeconômica ou a idade: jovens, negros e pobres são presos com mais frequência, mesmo se flagrados com pequenas quantidades. Como resultado, os superlotados presídios brasileiros reúnem hoje uma legião de usuários, presos desnecessariamente, que servem de mão de obra às organizações criminosas que dominam as cadeias em todo o Brasil.

A dúvida agora é sobre quanto tempo durará a decisão do Supremo. O julgamento não havia nem terminado, e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), disse discordar: “Considero que uma descriminalização só pode se dar através do processo legislativo”. Pacheco é autor da PEC das Drogas, que pretende gravar na Constituição a criminalização da posse e do porte de qualquer quantidade de droga. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), mandou instalar de imediato comissão especial para analisá-la.

Não se questiona a legitimidade do Congresso para legislar sobre o assunto. Mas o Parlamento se omitiu este tempo todo e só saiu da inércia quando, provocado pela sociedade, o STF avançou para remediar a omissão. Deputados e senadores podem concordar ou discordar da Corte, mas precisam apresentar uma solução sensata para o problema. E a PEC das Drogas representaria um retrocesso.

Seu principal problema é não resolver o ponto nevrálgico da legislação. Embora o texto da PEC defenda a distinção entre traficantes e usuários, não estabelece critérios objetivos para isso. Se a proposta for aprovada, as prisões voltarão a depender da subjetividade de policiais, juízes e promotores, até que o Supremo seja novamente provocado. A PEC das Drogas será apenas mais um instrumento para encher as cadeias de cidadãos que não deveriam estar lá. O uso de drogas é um problema de saúde pública, não um caso de polícia.

Novo plano urbanístico desfigura Brasília traçada por Lúcio Costa

O Globo

Governo alega que projeto apenas condensa normas existentes, mas críticos veem risco para a cidade

O Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB), aprovado pela Câmara do Distrito Federal, não faz jus ao nome. A pretexto de preservar, a proposta abre brecha para descaracterizar o plano urbanístico traçado por Lúcio Costa e o conjunto arquitetônico de Oscar Niemeyer, que renderam à capital federal o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, concedido pela Unesco em 1987. Foi a primeira cidade do século XX a receber a honraria.

Embora o governo do Distrito Federal, autor do projeto, alegue que ele apenas condensa normas já existentes e não afeta a preservação do Plano Piloto, o PPCUB tem sido criticado por arquitetos e urbanistas, para quem a proposta favorece o adensamento. Um dos pontos mais controversos é a permissão para aumentar o gabarito de hotéis na área central. Nos Setores Hoteleiros Norte e Sul, prédios hoje com três andares poderão ter 12 pavimentos.

Outros pontos questionados são a liberação de lojas, restaurantes e camping na área do Parque dos Pássaros; a possibilidade de erguer pousadas, flats e motéis em quadras de escolas, igrejas e hospitais; a permissão para criar lotes comerciais e empreendimentos nos setores de clubes no Lago Paranoá; a autorização para que quadras residenciais tenham uso múltiplo; e a previsão para hotéis em áreas inabitadas.

Em carta aos parlamentares, 24 associações vinculadas ao setor produtivo afirmam que o plano é uma legislação “moderna, eficaz e aderente às necessidades do Distrito Federal”. Para o arquiteto Paulo Niemeyer, porém, ele terá resultado oposto à preservação. “O que se quer é fazer especulação imobiliária e aumentar o adensamento”, diz. O Instituto de Arquitetos do Brasil no Distrito Federal também repudiou o projeto como “um reflexo distorcido”.

Não é novidade que o urbanismo de Brasília, inovador em seu tempo, trouxe problemas que seus autores não previam — da dependência do automóvel ao ambiente inóspito com extensa mancha urbana esvaziada, afastando a população de baixa renda para a periferia. Mas preservar a área tombada de Brasília deveria ser preocupação de todos os brasileiros, dada a importância histórica e cultural do patrimônio, reconhecido pelo Iphan e pela ONU.

Lúcio Costa, vencedor do concurso realizado no governo Juscelino Kubitschek para erguer a nova capital, queria construir uma cidade monumental, mas também “cômoda, eficiente, acolhedora e íntima”. Brasília está muito longe disso, como sabe qualquer um que tenha passado por lá. Mas, ainda que o urbanismo de Costa possa estar sujeito a crítica, nenhuma alteração deveria descaracterizá-lo.

O governador Ibaneis Rocha (MDB) disse que vetará duas emendas, sobre campings e motéis. Independentemente da decisão final, Iphan, Ministério Público e demais representantes da sociedade deveriam agir para que as ideias de Lúcio Costa não sejam subvertidas. A preservação do conjunto urbanístico e arquitetônico de Brasília é uma das condições para que ela mantenha o título e continue a ser um Patrimônio da Humanidade.

Rombo fiscal deve exigir contingenciamento de gastos

Valor Econômico

Será difícil aumentar a arrecadação para cumprir a meta fiscal, por um motivo simples: ela já está crescendo muito

As despesas do governo central (Tesouro, Banco Central e Previdência) continuam correndo muito à frente das receitas líquidas, e o déficit primário continua aumentando. O resultado de maio, um rombo de R$ 61 bilhões, confirma as dificuldades do governo, que se debate entre fazer ou não um contingenciamento de receitas para tentar chegar à meta, com margem para menos, de 0,25% do PIB, ou R$ 28,8 bilhões. O presidente Lula, em entrevista ontem ao portal UOL, deu limites para eventuais ajustes e colocou em dúvida a necessidade de cortar despesas, que não é claramente sua preferência. “O problema não é ter que cortar, é saber se precisa efetivamente cortar ou se precisa aumentar a arrecadação”, disse o presidente.

No fim de julho, o governo apresentará seu relatório de receitas e despesas do terceiro bimestre, em que terá de calibrar os gastos para não ultrapassar a meta de déficit zero para o ano. A equipe econômica, depois dos discursos recentes de Lula, nenhum deles favoráveis a qualquer coisa que lembre austeridade, prometeu rever os gastos tributários - uma montanha de R$ 537 bilhões -, em uma iniciativa necessária que, porém, não traz resultados a curto prazo. Bloquear despesas do orçamento é a única ação que poderá dar alguma chance de zerar o déficit, embora o corte temporário incida apenas sobre 10% do orçamento - a parcela referente a custeio, investimentos, e, em menor proporção, emendas parlamentares. Como isso afeta o PAC, há evidentes resistências por parte da Casa Civil, que, nos embates com a Fazenda, tem em geral contado com o apoio do presidente.

Será difícil aumentar a arrecadação para cumprir a meta fiscal, por um motivo simples: ela já está crescendo muito. No acumulado de janeiro a maio, a Receita teve arrecadação de R$ 1,09 trilhão, um recorde no século. Houve avanço acima da inflação no ano de 8,72%. Os recursos que ingressam nos cofres da Previdência subiram 6% em termos reais, alavancados por um impulso de 6,76% da massa salarial, fruto do aumento do emprego e dos salários.

Várias medidas aprovadas pelo Congresso para melhorar a arrecadação estão cumprindo sua função. A receita obtida até maio com a taxação de fundos exclusivos se aproxima da meta para o ano (R$ 12,27 bilhões ante objetivo de R$ 13,28 bilhões), e a prevista para a taxação de fundos offshore já é superior (R$ 7,3 bilhões, ante meta de R$ 5,6 bilhões). A trava estabelecida na compensação de créditos judiciais das empresas permitiu que elas usassem R$ 19,6 bilhões no ano para abatimentos, inferior ao uso de R$ 37 bilhões no ano passado (Folha de S. Paulo, ontem).

Ainda assim, para fazer frente ao grande volume de despesas, será preciso maiores receitas ainda. Há frustração importante nos recursos estimados com acordos com empresas decorrentes de vitórias da União pelo voto de desempate nos julgamentos no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). A previsão oficial para o ingresso de verbas neste caso é de R$ 55,6 bilhões, mas não houve até agora qualquer adesão dos contribuintes (Valor, ontem).

As despesas, por seu lado, seguem suplantando as receitas por larga margem. Enquanto a receita líquida do governo central avançou 8,5% acima da inflação no ano até maio, as despesas totais subiram 13%. Em maio, houve déficit de R$ 60,98 bilhões, levando o rombo acumulado no ano a R$ 30 bilhões, superior ao intervalo máximo de tolerância fixado pela meta fiscal. Apesar do bom crescimento da economia, os benefícios previdenciários aumentaram 13,1% e os gastos com o Benefício de Prestação Continuada, 17,6%, ambos em termos reais. Em 12 meses, o déficit primário aumenta, e não diminui. Fechou 2023 em 2,12% do PIB, evoluiu para 2,2% em março, 2,23% em abril e 2,36% em maio.

Na primeira revisão de gastos e despesas do Tesouro, o governo fez um contingenciamento pró-forma de R$ 2,9 bilhões, suspenso logo a seguir, na segunda revisão, ainda que o resultado previsto tenha sido reduzido de um superávit de R$ 9,1 bilhões para déficit de R$ 14,5 bilhões. Será difícil empurrar a contenção de gastos orçamentários para o quarto bimestre. A previsão dos analistas privados sobre o tamanho do corte oscila muito, de R$ 15 bilhões a R$ 48 bilhões. O tamanho dessa suspensão de despesas vem assustando o governo desde a confecção do orçamento de 2024. Havia previsão de até R$ 53 bilhões, o que levou o governo a uma malograda incursão ao TCU para garantir não a meta primária, mas a de despesas.

Ainda que o contingenciamento possa ser bem menor, terá de ser feito. O esforço mínimo, de R$ 15 bilhões, assegurará a meta, se todas as demais previsões do governo, em especial as de arrecadação, se confirmarem. Pela execução do orçamento até agora, as despesas foram subestimadas e as receitas, superestimadas. As estimativas do boletim Focus da semana passada indicam que o rombo fiscal será de 0,7% do PIB no ano e 0,6% em 2025, o que obrigará o governo a rever sua recusa em cortar gastos, ou a submeter-se a sanções pelo descumprimento dos parâmetros do regime fiscal. Ou então, ele mudará de novo a meta, sepultando a credibilidade do arcabouço.

STF promove avanço em decisão sobre maconha

Folha de S. Paulo

Descriminalizar porte é passo civilizatório; Folha defende legalização de drogas leves, idealmente por meio do Congresso

O Supremo Tribunal Federal deu um passo importante em defesa das liberdades individuais ao decidir, após nove anos de julgamento, que o porte de maconha para uso pessoal não constitui crime.

De acordo com a maioria dos ministros, o consumo da erva ainda é um ato ilícito, mas não deve mais ser tratado sob a ótica do direito penal; em vez disso, o usuário da substância cometerá infração administrativa, sem nenhuma consequência no âmbito criminal.

Ciente da polêmica em torno da medida, o presidente da corte, Luís Roberto Barroso, enfatizou: "Em nenhum momento, estamos legalizando ou dizendo que o consumo de drogas é algo positivo".

Não deixa de ser problemático, é preciso ressalvar, que o STF avance em terreno legislativo —sobretudo ao fixar a quantidade de maconha que doravante deve diferenciar usuários de traficantes. No mérito, entretanto, o entendimento a guiar a maioria dos ministros é partilhado por esta Folha.

Já ficou claro, nos mais diversos países, que o paradigma da guerra às drogas produziu um sonoro fracasso. Seu principal resultado é a superlotação das penitenciárias, onde detentos de variadas estirpes são recrutados pelas facções criminosas, fortalecendo as organizações que se pretende combater.

No Brasil, a Lei de Drogas, de 2006, até buscou sanções menores para o consumo de substâncias ilícitas, mas, ao deixar nebulosa a distinção entre usuário e traficante, transferiu essa tarefa para o sistema de persecução criminal.

Dito de outra forma, cabe a policiais, promotores e juízes arbitrar caso a caso —e quase 20 anos de experiência mostram um saldo funesto. Primeiro porque o índice de pessoas encarceradas por tráfico mais do que dobrou. Depois porque a mão pesada do Estado recai de forma desproporcional sobre os jovens negros e pobres.

Diante da deficiência da lei e sob pressão do Congresso, que ameaça levar adiante uma emenda constitucional reacionária, o Supremo fixou dois limites para sua decisão: ela vale apenas para a maconha e não vai além da descriminalização.

Este jornal defende a legalização do uso recreativo de drogas leves por maiores de 18 anos, sujeito a tributação similar à incidente sobre bebidas alcoólicas e tabaco.

Devem prevalecer aí o princípio da liberdade e da autonomia individual, pleno quando não interfere em direitos de terceiros, e a ótica da saúde pública.

Idealmente o processo de liberalização dos entorpecentes, já avançado no mundo desenvolvido, deveria ser conduzido pelo Congresso Nacional, acompanhado de ampla informação sobre os malefícios à saúde, regulação rigorosa e pesada carga de impostos.

Jogo com lei

Folha de S. Paulo

Como se dá com o álcool, regulação pode conter efeitos deletérios de apostas

Por 14 votos a 12, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou projeto de lei que autoriza o funcionamento de cassinos, jogo do bicho e outras modalidades de aposta. Faltam apenas a aprovação do plenário e a sanção presidencial para que o texto entre em vigor.

Como denota o placar, existe oposição considerável ao projeto, e ela reúne desde bolsonaristas e petistas até vozes da sociedade civil.

São dois os argumentos antijogo: o sanitário (mais oportunidades de apostas aumentam a prevalência de comportamentos compulsivos) e o de segurança pública (a associação entre jogo e atividades criminosas, como sonegação fiscal e tráfico de drogas).

Ambos os problemas são reais, mas tomá-los como justificativa para manter a proibição da prática parece mais expressão de pendores moralistas do que uma avaliação realista do cenário.

No modelo de sociedade liberal em que vivemos, cabe primariamente ao cidadão lidar com suas vulnerabilidades. Ninguém pensa em criminalizar a venda de cerveja por causa do alcoolismo.

Raciocínio similar se aplica à criminalidade. Igrejas se prestam à lavagem de dinheiro até melhor do que cassinos, mas não se cogita fechar templos ou eliminar sua imunidade tributária. Trazer para a legalidade atividades que hoje operam à sua margem, como o jogo do bicho, facilita o trabalho dos bons policiais, já que elimina uma fonte de corrupção

A resposta para atenuar os efeitos perversos da ludomania está na regulação. Apostas devem ser restritas a maiores de idade; propagandas precisam ser limitadas e talvez até banidas, o que também foi feito com as de cigarros.

Ademais, é necessário garantir a dependentes o acesso a tratamento psiquiátrico e à redução de danos —como a ferramenta de autoexclusão do usuário das plataformas. Jogos de azar devem sofrer alta tributação, como ocorre com tabaco e álcool.

Campanhas informativas também podem ajudar a conscientizar interessados em jogos. Se, mesmo sabendo que as chances de ganhar dinheiro são ínfimas, o cidadão decidir apostar, é seu direito.

STF, de novo, usurpa papel do Congresso

O Estado de S. Paulo

Em vez de avaliar a constitucionalidade da Lei de Drogas, STF resolve ‘se ocupar de atribuições próprias dos canais de legítima expressão da vontade popular’, nas sábias palavras de Fux

O Supremo Tribunal Federal (STF) foi chamado a arbitrar uma questão simples, qual seja: o art. 28 da Lei n.º 11.343/2006, a chamada Lei de Drogas, é constitucional? O referido dispositivo, na prática, distingue o tratamento jurídico-penal dado pelo Estado aos usuários e aos traficantes de drogas. Na lei está escrito que “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo” quaisquer drogas para consumo pessoal não está sujeito a pena de prisão, mas sim a medidas menos gravosas, como advertência, prestação de serviços à comunidade ou participação em programa educativo sobre os malefícios das drogas. Ou seja, o porte de quaisquer drogas, desde que para consumo pessoal, foi despenalizado pelo Congresso há 18 anos.

Bastava ao STF, portanto, decidir se essa escolha do Poder Legislativo está ou não de acordo com a Constituição de 1988. Tivesse a Corte seguido por esse bom caminho, o País não teria sido tragado para uma crise institucional – mais uma – absolutamente desnecessária sobre uma questão que, ademais, nem remotamente figura no rol das grandes prioridades nacionais.

Incontidos como têm sido, os ministros da mais alta instância do Poder Judiciário não só se imiscuíram no que não deveriam, como ainda se colocaram na constrangedora posição de apregoadores da quantidade de gramas de maconha que caracterizaria o porte da droga para uso pessoal ou para fins de tráfico. E é o caso de questionar por que apenas maconha, quando a Lei de Drogas não especifica substância alguma.

Vivêssemos tempos normais, prevaleceria o comedimento institucional, e os ministros do STF teriam decidido, preferencialmente em votos breves e diretos, se a distinção entre as sanções impostas a usuários e traficantes de drogas se coaduna ou não com a Constituição. Era tão simples quanto isso. Mas o País não vive tempos normais, como é sabido, de modo que a maioria dos ministros achou que era o caso de ir além da provocação original e, a pretexto de mitigar uma tragédia social real – a discriminação racial –, usurpou uma competência do Congresso ao fixar “parâmetros objetivos” para aquela diferenciação.

Ninguém de boa-fé haverá de negar que, nas ruas Brasil afora, o que fará com que os indivíduos flagrados portando drogas sejam tratados como usuários ou traficantes são a cor da pele e a classe social a que pertencem. As penitenciárias e delegacias do País estão amontoadas de “traficantes” majoritariamente jovens, negros e pobres que foram presos portando a mesma quantidade de drogas, às vezes até menos, que portavam outros tantos brancos – os quais, quando muito, só foram submetidos a uma carraspana do policial que os abordou.

O busílis é que foi da sociedade, por meio de seus representantes eleitos no Congresso, a decisão de deixar a cargo da autoridade policial, no momento da prisão, a verificação das circunstâncias que levam à caracterização do porte de drogas para uso pessoal ou para tráfico. Se essa decisão foi certa ou errada, não é papel do STF decidir, mas, como é óbvio, do próprio Congresso.

Transcorridas quase duas décadas desde a despenalização do porte de drogas para uso pessoal, a sociedade pode entender que a lei, tal como está escrita, agravou a mazela da discriminação racial. Se é esse o caso, cabe aos cidadãos pressionar seus representantes eleitos para que estes fixem critérios objetivos para a distinção. Numa rara e muito bem-vinda autocrítica durante o julgamento, o ministro Luiz Fux foi muito feliz ao enfatizar, à beira da exasperação, que “o Brasil não tem um governo de juízes”. Fux reconheceu as críticas legítimas de que o STF “estaria se ocupando de atribuições próprias dos canais de legítima expressão da vontade popular, reservadas apenas aos Poderes integrados por mandatários eleitos”.

O Brasil só terá a ganhar se as palavras do magistrado carioca forem bem assimiladas por seus pares. A um só tempo, elas lançaram luz sobre o papel institucional da Corte Constitucional e, de forma indireta, reforçaram a ideia de que a legitimidade do STF e a força de sua jurisprudência no tempo vêm da impessoalidade das decisões colegiadas, não do protagonismo vaidoso daqueles que o integram.

Uma transição energética com a cara de Lula

O Estado de S. Paulo

Sem um plano claro, capaz de aproveitar oportunidades do presente e mitigar riscos no futuro, governo seguirá à feição de Lula: confusões e incertezas à espera do arbítrio do grande líder

Há uma distância amazônica entre o discurso e a prática do governo do presidente Lula da Silva naquela que poderia ser uma das grandes agendas transformadoras do País e marca do seu mandato: a transição energética e climática. Enquanto nos fóruns internacionais Lula exibe seu discurso de redentor do mundo na resposta às mudanças climáticas, na prática seu governo demonstra ser uma confusa soma de visões, propostas e atos que aparentemente não se casam. E o mais grave é que ainda deve um efetivo e sólido plano de transição, capaz de ir além das “narrativas” e que se conecte de fato com as diferentes iniciativas em curso. O rumoroso e já longevo debate sobre a possível exploração de petróleo da chamada Margem Equatorial, que abrange a Bacia da Foz do Amazonas, é um bom exemplo do que fazer no presente para não desperdiçar oportunidades sociais e econômicas de curto prazo e, ao mesmo tempo, trabalhar para mitigar riscos e danos ambientais no futuro.

Nos últimos dias, fazendo aquilo que mais gosta – falar incansavelmente e pregar seu arbítrio em meio a divergências públicas –, Lula deixou evidente: o governo está decidido a iniciar as perfurações exploratórias para levantar a existência de petróleo naquela região, formada por cinco bacias sedimentares que se estendem da costa do Amapá até o Rio Grande do Norte, com o potencial de dobrar as atuais reservas nacionais. Depois de algumas declarações em que mostrou sua inclinação a decidir favoravelmente e do anúncio de que chamaria os envolvidos para uma espécie de mediação, Lula usou uma entrevista a uma rádio do Maranhão para ser categórico: “Vamos explorar a Margem (Equatorial)”, disse, emendando em seguida: “Por enquanto não é explorar, queremos fazer uma medição para saber se tem e qual a quantidade de riqueza que tem lá embaixo”.

O que Lula chama de “medição” é o que a Petrobras chamou de “pesquisa” e a indústria petrolífera chama de “exploração”. Dá no mesmo: já é hora de avançar e, acertadamente, seguir adiante no tema. Para tanto, convém ao presidente desobstruir os canais de resistência que se concentram no Ministério do Meio Ambiente e no Ibama, órgão responsável pelo licenciamento. Mas vencer essa resistência interna de maneira madura depende também de o governo definir, de uma vez por todas, o seu modelo de transição. O que se vê hoje, contudo, são iniciativas paralelas e sinais desconexos. Um exemplo: enquanto os Ministérios da Fazenda e do Meio Ambiente trabalham em fundamentos da transição energética, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços recomendou a tributação dos carros 100% elétricos com o Imposto Seletivo – o chamado “imposto do pecado”, que vai sobretaxar bens e serviços que causam danos à saúde ou ao meio ambiente. Pela proposta original da Fazenda, no âmbito da reforma tributária, só os veículos movidos a combustão e os híbridos serão passíveis de taxação, com os elétricos ficando de fora. A pasta de Geraldo Alckmin quer o contrário.

Sem uma visão consistente e um plano coerente que decorra de tal visão, o governo apenas alimenta disputas e antagonismos desnecessários, como se fosse impossível a compatibilização entre um futuro descarbonizado e um presente capaz de atender às evidentes demandas sobre os combustíveis fósseis. Estimativas sugerem que o óleo e o gás representarão em 2050 cerca de 1/3 da matriz energética global. Mesmo no cenário mais agressivo de descarbonização, os combustíveis fósseis ainda responderão por 15% dessa matriz. O Brasil vai desperdiçar essa dependência de hoje e essa demanda no futuro?

Nenhuma transição energética é simples nem imediatista. Requer visão de longo prazo, com métodos e práticas de percurso para permitir a adaptação aos novos tempos. Os fósseis podem ser igualmente letais no longo prazo e vitais no curto prazo. Fortes investimentos em energia renovável podem e devem ser acompanhados de outros, igualmente intensos, na exploração de petróleo, e riscos apontados pelos órgãos ambientais podem e devem ser mitigados. Mas não basta decidir, como aparentemente o presidente decidiu. Sem um roteiro claro do que fazer, como fazer e aonde se quer chegar, o governo seguirá com a cara de Lula: uma soma de confusões, incertezas e ações erráticas à espera do arbítrio do grande líder. Não tem como dar certo.

Os duros recados do BC

O Estado de S. Paulo

Política fiscal impede que juros caiam mais cedo, mas, para Lula, tudo é culpa do mercado

A ata do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) acertou ao enfatizar a coesão do colegiado na decisão de manter os juros em 10,5% ao ano. Em meio a tantas incertezas, tudo que a autoridade monetária precisava demonstrar era convicção no diagnóstico do cenário econômico, sobretudo depois da desabrida pressão do presidente Lula da Silva sobre a instituição.

As expectativas de inflação, que guiam as decisões do Copom, já estavam desancoradas desde a reunião anterior, na qual os diretores divergiram sobre a magnitude do corte. Agora, no entanto, apresentaram “desancoragem adicional”. A despeito da perspectiva de juros mais elevados, as projeções do mercado para a inflação de médio prazo continuam a subir.

Boa parte dessa piora se deve à política fiscal do governo, que trabalha na direção oposta à política monetária. Como a ata menciona, no lugar da desaceleração gradual que o BC esperava, dados mais recentes da atividade econômica têm surpreendido, sustentados pelo mercado de trabalho, mas também pelo pagamento de benefícios sociais e de precatórios.

Políticas fiscal e monetária sincronizadas, destaca o documento, “contribuem para assegurar a estabilidade de preços e, sem prejuízo de seu objetivo fundamental, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego”. O Copom reiterou que perseguirá a ancoragem das expectativas “independentemente de quais sejam as fontes por trás da desancoragem ora observada”.

Após a divulgação da ata, a maioria dos analistas descartou a possibilidade de que a taxa de juros volte a cair neste ano. Parte desses observadores, inclusive, já considera mais factível um aumento do que uma redução da Selic no curto prazo.

Nome mais cotado para assumir a presidência do BC no ano que vem, o diretor de Política Monetária, Gabriel Galípolo, reforçou a unidade do Copom. Galípolo disse que as próximas decisões do comitê estão em aberto e afirmou que a autoridade monetária precisa ter segurança de que os juros estão em patamar suficiente para a convergência da inflação às metas.

Era, portanto, para ser uma semana de boas notícias. Além da coesão demonstrada pelo Copom, o governo finalmente publicou o decreto presidencial que formaliza a meta contínua de inflação a partir de 2025 e estabelece uma antecedência mínima de 36 meses para que o objetivo seja alterado. Mas a retórica lulopetista, como sempre, não ajudou.

O dólar chegou a bater em R$ 5,52 depois que Lula, ignorando a realidade, relativizou, em entrevista ao UOL, a necessidade de o governo cortar gastos. “O problema não é que tem que cortar. O problema é saber se precisa efetivamente cortar, ou se a gente precisa aumentar a arrecadação. Temos que fazer essa discussão”, declarou.

Como se ainda houvesse dúvidas sobre o desequilíbrio fiscal, o Tesouro divulgou que o déficit primário atingiu 2,36% do PIB nos 12 meses encerrados em maio, ainda muito distantes da meta deste ano. Para Lula, no entanto, a culpa é do mercado que torce contra o governo, o que talvez indique que o BC precisa ser ainda mais duro em seus recados.

Uso abusivo de álcool desafia o Brasil

Correio Braziliense

Medidas de enfrentamento no Brasil devem passar, necessariamente, pelo desconhecimento disseminado de que exageramos em um comportamento ligado à boa parte das nossas relações sociais

A cada hora, em 2019, 10 brasileiros morreram em decorrência de fenômenos ligados à ingestão de álcool — seja em um acidente de carro, seja por complicações de uma doença cardiovascular ou de um câncer, por exemplo. Foram quase 92 mil óbitos dos 2,6 milhões registrados no mundo, revela levantamento divulgado, nesta terça-feira, pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Trata-se do estudo com dados globais mais recentes, segundo a agência da ONU, e, em se tratando da realidade nacional, o documento indica que podemos estar diante de um cenário ainda mais desafiador. A tendência global é de uma leve queda nos óbitos desde 2010. Porém, de acordo com o Ministério da Saúde, o consumo excessivo de álcool, no Brasil, aumentou de 17,2% para 20,8% de 2008 a 2023.

Especificidades do país, como o aumento do consumo de álcool entre as mulheres e o desconhecimento da população sobre uma possível dependência à substância, estão entre as dificuldades para o combate à ingestão abusiva. Aliás, entre as ações estratégicas recomendadas pela OMS para reduzir "o fardo sanitário e social atribuível ao consumo do álcool", estão aumentar a sensibilização por meio de campanhas coordenadas e melhorar os sistemas de monitoramento e investigação do problema 

Quanto à desinformação, o desafio é grande. Um dos principais lemas de conscientização em campanhas nacionais contra o álcool, o "beba com moderação" não é entendido pela maioria dos brasileiros: 57%, de acordo com a Pesquisa Domiciliar sobre o Padrão de Consumo de Álcool e suas Características Sociodemográficas no Brasil, elaborada com dados de 2023. 

Entre os consumidores abusivos da substância, a realidade é ainda pior: 75% acham que fazem uma ingestão moderada, e apenas 13% admitem que precisam mudar os próprios hábitos. A OMS prega que não há um padrão seguro para a substância, sendo que o consumo moderado equivale a duas doses por dia para homens e uma dose para mulheres. Uma dose corresponde a uma lata de cerveja de 350 ml, uma taça de 150ml de vinho ou 45ml de destilado.

A quantidade de brasileiras passando desses limites tem aumentado: de 9,6% para 15,2% de 2008 a 2023. No caso dos homens, a taxa praticamente se manteve no período de 15 anos: de 26,1% para 27,3%. Fatores sociais e biológicos contribuem para o agravamento da ingestão entre as mulheres, segundo especialistas. Elas costumam ter, por exemplo, menor concentração de enzimas que metabolizam o álcool, fazendo com que, em pouco tempo de ingestão crônica, surjam graves prejuízos à saúde. Somam-se a isso os atrasos culturais que podem ajudar a transformar a substância em uma "válvula de escape", como a dupla jornada, a maternidade solo e a violência doméstica.

Ao divulgar o levantamento, Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, ressaltou que a construção de uma "sociedade mais saudável e equitativa" passa pela adoção "urgente de ações ousadas que reduzam as consequências negativas para a saúde e sociais do consumo de álcool e tornem o tratamento dos transtornos por uso de substâncias acessível". Elaborar estratégias de enfrentamento focadas, de fato, na realidade da população é um passo fundamental. No caso do Brasil, as medidas devem passar, necessariamente, pelo desconhecimento disseminado de que exageramos em um comportamento ligado à boa parte das nossas relações sociais. 

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