Decisão do STF sobre maconha representa avanço
O Globo
Corte eliminou principal lacuna da lei ao
estabelecer critério objetivo para distinguir usuário de traficante
Foi acertada a decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF)
de descriminalizar o porte de maconha para consumo próprio e fixar uma
quantidade — 40 gramas, o equivalente, segundo estudos, a 80 cigarros da droga
— para distinguir usuário e traficante. Dependendo
das circunstâncias (presença de balança, caderno de anotações e outros
indícios), a prisão não dependerá da quantidade. A principal lacuna da
legislação atual era a indefinição, responsável pelo encarceramento em massa —
e injusto — de dezenas de milhares de usuários. A dificuldade de consenso e as
pressões fizeram o julgamento se arrastar por mais de uma década.
O uso de maconha para consumo pessoal, dentro dos parâmetros e circunstâncias estabelecidos, deixa de ser crime. Fica sujeito a sanções administrativas, punidas com advertência ou medidas educativas, e à apreensão da droga. O presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, fez questão de esclarecer no julgamento que a decisão não legaliza a maconha. O consumo de drogas em lugares públicos continua sendo ato ilícito. A decisão vigora até que o Congresso delibere sobre o assunto.
A Lei de Drogas, de 2006, não tinha a
intenção de prender usuários, mas, na prática, surtiu efeito contrário ao
pretendido. Ao deixar de estabelecer critérios objetivos para distinguir o
usuário do traficante, a decisão passou a depender dos humores de policiais,
promotores e juízes. Em razão da subjetividade, as prisões variam de acordo com
a cor da pele, a situação socioeconômica ou a idade: jovens, negros e pobres
são presos com mais frequência, mesmo se flagrados com pequenas quantidades.
Como resultado, os superlotados presídios brasileiros reúnem hoje uma legião de
usuários, presos desnecessariamente, que servem de mão de obra às organizações
criminosas que dominam as cadeias em todo o Brasil.
A dúvida agora é sobre quanto tempo durará a
decisão do Supremo. O julgamento não havia nem terminado, e o presidente do
Senado, Rodrigo
Pacheco (PSD-MG), disse discordar: “Considero que uma
descriminalização só pode se dar através do processo legislativo”. Pacheco é
autor da PEC das Drogas, que pretende gravar na Constituição a criminalização
da posse e do porte de qualquer quantidade de droga. O presidente da
Câmara, Arthur Lira (PP-AL),
mandou instalar de imediato comissão especial para analisá-la.
Não se questiona a legitimidade do Congresso
para legislar sobre o assunto. Mas o Parlamento se omitiu este tempo todo e só
saiu da inércia quando, provocado pela sociedade, o STF avançou para remediar a
omissão. Deputados e senadores podem concordar ou discordar da Corte, mas
precisam apresentar uma solução sensata para o problema. E a PEC das Drogas
representaria um retrocesso.
Seu principal problema é não resolver o ponto
nevrálgico da legislação. Embora o texto da PEC defenda a distinção entre
traficantes e usuários, não estabelece critérios objetivos para isso. Se a
proposta for aprovada, as prisões voltarão a depender da subjetividade de
policiais, juízes e promotores, até que o Supremo seja novamente provocado. A
PEC das Drogas será apenas mais um instrumento para encher as cadeias de
cidadãos que não deveriam estar lá. O uso de drogas é um problema de saúde
pública, não um caso de polícia.
Novo plano urbanístico desfigura Brasília
traçada por Lúcio Costa
O Globo
Governo alega que projeto apenas condensa
normas existentes, mas críticos veem risco para a cidade
O Plano de Preservação do Conjunto
Urbanístico de Brasília (PPCUB),
aprovado pela Câmara do Distrito Federal, não faz jus ao nome. A pretexto de
preservar, a proposta abre brecha para descaracterizar o plano urbanístico
traçado por Lúcio Costa e o conjunto arquitetônico de Oscar Niemeyer, que
renderam à capital federal o título de Patrimônio Cultural da Humanidade,
concedido pela Unesco em 1987. Foi a primeira cidade do século XX a receber a
honraria.
Embora o governo do Distrito Federal, autor
do projeto, alegue que ele apenas condensa normas já existentes e não afeta a
preservação do Plano Piloto, o PPCUB tem sido criticado por arquitetos e
urbanistas, para quem a proposta favorece o adensamento. Um dos pontos mais
controversos é a permissão para aumentar o gabarito de hotéis na área central.
Nos Setores Hoteleiros Norte e Sul, prédios hoje com três andares poderão ter
12 pavimentos.
Outros pontos questionados são a liberação de
lojas, restaurantes e camping na área do Parque dos Pássaros; a possibilidade
de erguer pousadas, flats e motéis em quadras de escolas, igrejas e hospitais;
a permissão para criar lotes comerciais e empreendimentos nos setores de clubes
no Lago Paranoá; a autorização para que quadras residenciais tenham uso
múltiplo; e a previsão para hotéis em áreas inabitadas.
Em carta aos parlamentares, 24 associações
vinculadas ao setor produtivo afirmam que o plano é uma legislação “moderna,
eficaz e aderente às necessidades do Distrito Federal”. Para o arquiteto Paulo
Niemeyer, porém, ele terá resultado oposto à preservação. “O que se quer é
fazer especulação imobiliária e aumentar o adensamento”, diz. O Instituto de
Arquitetos do Brasil no Distrito Federal também repudiou o projeto como “um
reflexo distorcido”.
Não é novidade que o urbanismo de Brasília,
inovador em seu tempo, trouxe problemas que seus autores não previam — da
dependência do automóvel ao ambiente inóspito com extensa mancha urbana
esvaziada, afastando a população de baixa renda para a periferia. Mas preservar
a área tombada de Brasília deveria ser preocupação de todos os brasileiros,
dada a importância histórica e cultural do patrimônio, reconhecido pelo Iphan e
pela ONU.
Lúcio Costa, vencedor do concurso realizado
no governo Juscelino Kubitschek para erguer a nova capital, queria construir
uma cidade monumental, mas também “cômoda, eficiente, acolhedora e íntima”.
Brasília está muito longe disso, como sabe qualquer um que tenha passado por
lá. Mas, ainda que o urbanismo de Costa possa estar sujeito a crítica, nenhuma
alteração deveria descaracterizá-lo.
O governador Ibaneis Rocha (MDB)
disse que vetará duas emendas, sobre campings e motéis. Independentemente da
decisão final, Iphan, Ministério Público e demais representantes da sociedade
deveriam agir para que as ideias de Lúcio Costa não sejam subvertidas. A
preservação do conjunto urbanístico e arquitetônico de Brasília é uma das
condições para que ela mantenha o título e continue a ser um Patrimônio da
Humanidade.
Rombo fiscal deve exigir contingenciamento de
gastos
Valor Econômico
Será difícil aumentar a arrecadação para cumprir a meta fiscal, por um motivo simples: ela já está crescendo muito
As despesas do governo central (Tesouro,
Banco Central e Previdência) continuam correndo muito à frente das receitas
líquidas, e o déficit primário continua aumentando. O resultado de maio, um
rombo de R$ 61 bilhões, confirma as dificuldades do governo, que se debate
entre fazer ou não um contingenciamento de receitas para tentar chegar à meta,
com margem para menos, de 0,25% do PIB, ou R$ 28,8 bilhões. O presidente Lula,
em entrevista ontem ao portal UOL, deu limites para eventuais ajustes e colocou
em dúvida a necessidade de cortar despesas, que não é claramente sua
preferência. “O problema não é ter que cortar, é saber se precisa efetivamente
cortar ou se precisa aumentar a arrecadação”, disse o presidente.
No fim de julho, o governo apresentará seu
relatório de receitas e despesas do terceiro bimestre, em que terá de calibrar
os gastos para não ultrapassar a meta de déficit zero para o ano. A equipe
econômica, depois dos discursos recentes de Lula, nenhum deles favoráveis a
qualquer coisa que lembre austeridade, prometeu rever os gastos tributários -
uma montanha de R$ 537 bilhões -, em uma iniciativa necessária que, porém, não
traz resultados a curto prazo. Bloquear despesas do orçamento é a única ação que
poderá dar alguma chance de zerar o déficit, embora o corte temporário incida
apenas sobre 10% do orçamento - a parcela referente a custeio, investimentos,
e, em menor proporção, emendas parlamentares. Como isso afeta o PAC, há
evidentes resistências por parte da Casa Civil, que, nos embates com a Fazenda,
tem em geral contado com o apoio do presidente.
Será difícil aumentar a arrecadação para
cumprir a meta fiscal, por um motivo simples: ela já está crescendo muito. No
acumulado de janeiro a maio, a Receita teve arrecadação de R$ 1,09 trilhão, um
recorde no século. Houve avanço acima da inflação no ano de 8,72%. Os recursos
que ingressam nos cofres da Previdência subiram 6% em termos reais, alavancados
por um impulso de 6,76% da massa salarial, fruto do aumento do emprego e dos
salários.
Várias medidas aprovadas pelo Congresso para
melhorar a arrecadação estão cumprindo sua função. A receita obtida até maio
com a taxação de fundos exclusivos se aproxima da meta para o ano (R$ 12,27
bilhões ante objetivo de R$ 13,28 bilhões), e a prevista para a taxação de
fundos offshore já é superior (R$ 7,3 bilhões, ante meta de R$ 5,6 bilhões). A
trava estabelecida na compensação de créditos judiciais das empresas permitiu
que elas usassem R$ 19,6 bilhões no ano para abatimentos, inferior ao uso de R$
37 bilhões no ano passado (Folha de S. Paulo, ontem).
Ainda assim, para fazer frente ao grande
volume de despesas, será preciso maiores receitas ainda. Há frustração
importante nos recursos estimados com acordos com empresas decorrentes de
vitórias da União pelo voto de desempate nos julgamentos no Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). A previsão oficial para o ingresso
de verbas neste caso é de R$ 55,6 bilhões, mas não houve até agora qualquer
adesão dos contribuintes (Valor, ontem).
As despesas, por seu lado, seguem suplantando
as receitas por larga margem. Enquanto a receita líquida do governo central
avançou 8,5% acima da inflação no ano até maio, as despesas totais subiram 13%.
Em maio, houve déficit de R$ 60,98 bilhões, levando o rombo acumulado no ano a
R$ 30 bilhões, superior ao intervalo máximo de tolerância fixado pela meta
fiscal. Apesar do bom crescimento da economia, os benefícios previdenciários
aumentaram 13,1% e os gastos com o Benefício de Prestação Continuada, 17,6%, ambos
em termos reais. Em 12 meses, o déficit primário aumenta, e não diminui. Fechou
2023 em 2,12% do PIB, evoluiu para 2,2% em março, 2,23% em abril e 2,36% em
maio.
Na primeira revisão de gastos e despesas do
Tesouro, o governo fez um contingenciamento pró-forma de R$ 2,9 bilhões,
suspenso logo a seguir, na segunda revisão, ainda que o resultado previsto
tenha sido reduzido de um superávit de R$ 9,1 bilhões para déficit de R$ 14,5
bilhões. Será difícil empurrar a contenção de gastos orçamentários para o
quarto bimestre. A previsão dos analistas privados sobre o tamanho do corte
oscila muito, de R$ 15 bilhões a R$ 48 bilhões. O tamanho dessa suspensão de
despesas vem assustando o governo desde a confecção do orçamento de 2024. Havia
previsão de até R$ 53 bilhões, o que levou o governo a uma malograda incursão
ao TCU para garantir não a meta primária, mas a de despesas.
Ainda que o contingenciamento possa ser bem menor, terá de ser feito. O esforço mínimo, de R$ 15 bilhões, assegurará a meta, se todas as demais previsões do governo, em especial as de arrecadação, se confirmarem. Pela execução do orçamento até agora, as despesas foram subestimadas e as receitas, superestimadas. As estimativas do boletim Focus da semana passada indicam que o rombo fiscal será de 0,7% do PIB no ano e 0,6% em 2025, o que obrigará o governo a rever sua recusa em cortar gastos, ou a submeter-se a sanções pelo descumprimento dos parâmetros do regime fiscal. Ou então, ele mudará de novo a meta, sepultando a credibilidade do arcabouço.
STF promove avanço em decisão sobre maconha
Folha de S. Paulo
Descriminalizar porte é passo civilizatório;
Folha defende legalização de drogas leves, idealmente por meio do Congresso
O Supremo Tribunal Federal deu um passo
importante em defesa das liberdades individuais ao decidir, após nove anos de
julgamento, que o porte de maconha para
uso pessoal não constitui crime.
De acordo com a maioria dos ministros, o
consumo da erva ainda é um ato ilícito, mas não deve mais ser tratado sob a
ótica do direito penal; em vez disso, o usuário da substância cometerá infração
administrativa, sem nenhuma consequência no âmbito criminal.
Ciente da polêmica em torno da medida, o
presidente da corte, Luís Roberto
Barroso, enfatizou: "Em nenhum momento, estamos legalizando ou
dizendo que o consumo de drogas é
algo positivo".
Não deixa de ser problemático, é preciso
ressalvar, que o STF avance
em terreno legislativo —sobretudo ao fixar a quantidade
de maconha que doravante deve diferenciar usuários de traficantes.
No mérito, entretanto, o entendimento a guiar a maioria dos ministros é
partilhado por esta Folha.
Já ficou claro, nos mais diversos países, que
o paradigma da guerra às drogas produziu um sonoro fracasso. Seu principal
resultado é a superlotação das penitenciárias, onde detentos de variadas
estirpes são recrutados pelas facções criminosas, fortalecendo as organizações
que se pretende combater.
No Brasil, a Lei de Drogas, de 2006, até
buscou sanções menores para o consumo de substâncias ilícitas, mas, ao deixar
nebulosa a distinção entre usuário e traficante, transferiu essa tarefa para o
sistema de persecução criminal.
Dito de outra forma, cabe a policiais,
promotores e juízes arbitrar caso a caso —e quase 20 anos de experiência
mostram um saldo funesto. Primeiro porque o índice de pessoas encarceradas por
tráfico mais do que dobrou. Depois porque a mão pesada do Estado recai de forma
desproporcional sobre os jovens negros e pobres.
Diante da deficiência da lei e sob pressão do
Congresso, que ameaça levar adiante uma emenda
constitucional reacionária, o Supremo fixou dois limites para sua
decisão: ela vale apenas para a maconha e não vai além da descriminalização.
Este jornal defende a
legalização do uso recreativo de drogas leves por maiores de 18 anos,
sujeito a tributação similar à incidente sobre bebidas alcoólicas e tabaco.
Devem prevalecer aí o princípio da liberdade
e da autonomia individual, pleno quando não interfere em direitos de terceiros,
e a ótica da saúde pública.
Idealmente o processo de liberalização dos
entorpecentes, já avançado no mundo desenvolvido, deveria ser conduzido pelo
Congresso Nacional, acompanhado de ampla informação sobre os malefícios à
saúde, regulação rigorosa e pesada carga de impostos.
Jogo com lei
Folha de S. Paulo
Como se dá com o álcool, regulação pode
conter efeitos deletérios de apostas
Por 14 votos a 12, a Comissão de Constituição
e Justiça do Senado aprovou
projeto de lei que autoriza o
funcionamento de cassinos, jogo do bicho e outras modalidades de aposta.
Faltam apenas a aprovação do plenário e a sanção presidencial para que o texto
entre em vigor.
Como denota o placar, existe oposição
considerável ao projeto, e ela reúne desde bolsonaristas e petistas até vozes
da sociedade civil.
São dois os argumentos antijogo: o sanitário
(mais oportunidades de apostas aumentam a prevalência de comportamentos
compulsivos) e o de segurança pública (a associação entre jogo e atividades
criminosas, como sonegação fiscal e tráfico de drogas).
Ambos os problemas são reais, mas tomá-los
como justificativa para manter a proibição da prática parece mais expressão de
pendores moralistas do que uma avaliação realista do cenário.
No modelo de sociedade liberal em que
vivemos, cabe primariamente ao cidadão lidar com suas vulnerabilidades. Ninguém
pensa em criminalizar a venda de cerveja por causa do alcoolismo.
Raciocínio similar se aplica à criminalidade.
Igrejas se prestam à lavagem de dinheiro até melhor do que cassinos, mas não se
cogita fechar templos ou eliminar sua imunidade tributária. Trazer para a
legalidade atividades que hoje operam à sua margem, como o jogo do bicho,
facilita o trabalho dos bons policiais, já que elimina uma fonte de corrupção
A resposta para atenuar os efeitos perversos
da ludomania está na regulação. Apostas devem ser restritas a maiores de idade;
propagandas precisam ser limitadas e talvez até banidas, o que também
foi feito com as de cigarros.
Ademais, é necessário garantir a dependentes
o acesso a tratamento psiquiátrico e à redução de danos —como a ferramenta de
autoexclusão do usuário das plataformas. Jogos de azar devem sofrer alta
tributação, como ocorre com tabaco e álcool.
Campanhas informativas também podem ajudar a
conscientizar interessados em jogos. Se, mesmo sabendo que as chances de ganhar
dinheiro são ínfimas, o cidadão decidir apostar, é seu direito.
STF, de novo, usurpa papel do Congresso
O Estado de S. Paulo
Em vez de avaliar a constitucionalidade da
Lei de Drogas, STF resolve ‘se ocupar de atribuições próprias dos canais de
legítima expressão da vontade popular’, nas sábias palavras de Fux
O Supremo Tribunal Federal (STF) foi chamado
a arbitrar uma questão simples, qual seja: o art. 28 da Lei n.º 11.343/2006, a
chamada Lei de Drogas, é constitucional? O referido dispositivo, na prática,
distingue o tratamento jurídico-penal dado pelo Estado aos usuários e aos
traficantes de drogas. Na lei está escrito que “quem adquirir, guardar, tiver
em depósito, transportar ou trouxer consigo” quaisquer drogas para consumo
pessoal não está sujeito a pena de prisão, mas sim a medidas menos gravosas,
como advertência, prestação de serviços à comunidade ou participação em
programa educativo sobre os malefícios das drogas. Ou seja, o porte de
quaisquer drogas, desde que para consumo pessoal, foi despenalizado pelo
Congresso há 18 anos.
Bastava ao STF, portanto, decidir se essa
escolha do Poder Legislativo está ou não de acordo com a Constituição de 1988.
Tivesse a Corte seguido por esse bom caminho, o País não teria sido tragado
para uma crise institucional – mais uma – absolutamente desnecessária sobre uma
questão que, ademais, nem remotamente figura no rol das grandes prioridades
nacionais.
Incontidos como têm sido, os ministros da
mais alta instância do Poder Judiciário não só se imiscuíram no que não
deveriam, como ainda se colocaram na constrangedora posição de apregoadores da
quantidade de gramas de maconha que caracterizaria o porte da droga para uso
pessoal ou para fins de tráfico. E é o caso de questionar por que apenas
maconha, quando a Lei de Drogas não especifica substância alguma.
Vivêssemos tempos normais, prevaleceria o
comedimento institucional, e os ministros do STF teriam decidido,
preferencialmente em votos breves e diretos, se a distinção entre as sanções
impostas a usuários e traficantes de drogas se coaduna ou não com a Constituição.
Era tão simples quanto isso. Mas o País não vive tempos normais, como é sabido,
de modo que a maioria dos ministros achou que era o caso de ir além da
provocação original e, a pretexto de mitigar uma tragédia social real – a
discriminação racial –, usurpou uma competência do Congresso ao fixar
“parâmetros objetivos” para aquela diferenciação.
Ninguém de boa-fé haverá de negar que, nas
ruas Brasil afora, o que fará com que os indivíduos flagrados portando drogas
sejam tratados como usuários ou traficantes são a cor da pele e a classe social
a que pertencem. As penitenciárias e delegacias do País estão amontoadas de
“traficantes” majoritariamente jovens, negros e pobres que foram presos
portando a mesma quantidade de drogas, às vezes até menos, que portavam outros
tantos brancos – os quais, quando muito, só foram submetidos a uma carraspana
do policial que os abordou.
O busílis é que foi da sociedade, por meio de
seus representantes eleitos no Congresso, a decisão de deixar a cargo da
autoridade policial, no momento da prisão, a verificação das circunstâncias que
levam à caracterização do porte de drogas para uso pessoal ou para tráfico. Se
essa decisão foi certa ou errada, não é papel do STF decidir, mas, como é
óbvio, do próprio Congresso.
Transcorridas quase duas décadas desde a
despenalização do porte de drogas para uso pessoal, a sociedade pode entender
que a lei, tal como está escrita, agravou a mazela da discriminação racial. Se
é esse o caso, cabe aos cidadãos pressionar seus representantes eleitos para
que estes fixem critérios objetivos para a distinção. Numa rara e muito
bem-vinda autocrítica durante o julgamento, o ministro Luiz Fux foi muito feliz
ao enfatizar, à beira da exasperação, que “o Brasil não tem um governo de
juízes”. Fux reconheceu as críticas legítimas de que o STF “estaria se ocupando
de atribuições próprias dos canais de legítima expressão da vontade popular,
reservadas apenas aos Poderes integrados por mandatários eleitos”.
O Brasil só terá a ganhar se as palavras do
magistrado carioca forem bem assimiladas por seus pares. A um só tempo, elas
lançaram luz sobre o papel institucional da Corte Constitucional e, de forma
indireta, reforçaram a ideia de que a legitimidade do STF e a força de sua
jurisprudência no tempo vêm da impessoalidade das decisões colegiadas, não do
protagonismo vaidoso daqueles que o integram.
Uma transição energética com a cara de Lula
O Estado de S. Paulo
Sem um plano claro, capaz de aproveitar
oportunidades do presente e mitigar riscos no futuro, governo seguirá à feição
de Lula: confusões e incertezas à espera do arbítrio do grande líder
Há uma distância amazônica entre o discurso e
a prática do governo do presidente Lula da Silva naquela que poderia ser uma
das grandes agendas transformadoras do País e marca do seu mandato: a transição
energética e climática. Enquanto nos fóruns internacionais Lula exibe seu
discurso de redentor do mundo na resposta às mudanças climáticas, na prática
seu governo demonstra ser uma confusa soma de visões, propostas e atos que
aparentemente não se casam. E o mais grave é que ainda deve um efetivo e sólido
plano de transição, capaz de ir além das “narrativas” e que se conecte de fato
com as diferentes iniciativas em curso. O rumoroso e já longevo debate sobre a
possível exploração de petróleo da chamada Margem Equatorial, que abrange a
Bacia da Foz do Amazonas, é um bom exemplo do que fazer no presente para não
desperdiçar oportunidades sociais e econômicas de curto prazo e, ao mesmo
tempo, trabalhar para mitigar riscos e danos ambientais no futuro.
Nos últimos dias, fazendo aquilo que mais
gosta – falar incansavelmente e pregar seu arbítrio em meio a divergências
públicas –, Lula deixou evidente: o governo está decidido a iniciar as
perfurações exploratórias para levantar a existência de petróleo naquela
região, formada por cinco bacias sedimentares que se estendem da costa do Amapá
até o Rio Grande do Norte, com o potencial de dobrar as atuais reservas
nacionais. Depois de algumas declarações em que mostrou sua inclinação a
decidir favoravelmente e do anúncio de que chamaria os envolvidos para uma
espécie de mediação, Lula usou uma entrevista a uma rádio do Maranhão para ser
categórico: “Vamos explorar a Margem (Equatorial)”, disse, emendando em
seguida: “Por enquanto não é explorar, queremos fazer uma medição para saber se
tem e qual a quantidade de riqueza que tem lá embaixo”.
O que Lula chama de “medição” é o que a
Petrobras chamou de “pesquisa” e a indústria petrolífera chama de “exploração”.
Dá no mesmo: já é hora de avançar e, acertadamente, seguir adiante no tema.
Para tanto, convém ao presidente desobstruir os canais de resistência que se
concentram no Ministério do Meio Ambiente e no Ibama, órgão responsável pelo
licenciamento. Mas vencer essa resistência interna de maneira madura depende
também de o governo definir, de uma vez por todas, o seu modelo de transição. O
que se vê hoje, contudo, são iniciativas paralelas e sinais desconexos. Um
exemplo: enquanto os Ministérios da Fazenda e do Meio Ambiente trabalham em
fundamentos da transição energética, o Ministério do Desenvolvimento,
Indústria, Comércio e Serviços recomendou a tributação dos carros 100%
elétricos com o Imposto Seletivo – o chamado “imposto do pecado”, que vai
sobretaxar bens e serviços que causam danos à saúde ou ao meio ambiente. Pela
proposta original da Fazenda, no âmbito da reforma tributária, só os veículos
movidos a combustão e os híbridos serão passíveis de taxação, com os elétricos
ficando de fora. A pasta de Geraldo Alckmin quer o contrário.
Sem uma visão consistente e um plano coerente
que decorra de tal visão, o governo apenas alimenta disputas e antagonismos
desnecessários, como se fosse impossível a compatibilização entre um futuro
descarbonizado e um presente capaz de atender às evidentes demandas sobre os
combustíveis fósseis. Estimativas sugerem que o óleo e o gás representarão em
2050 cerca de 1/3 da matriz energética global. Mesmo no cenário mais agressivo
de descarbonização, os combustíveis fósseis ainda responderão por 15% dessa matriz.
O Brasil vai desperdiçar essa dependência de hoje e essa demanda no futuro?
Nenhuma transição energética é simples nem
imediatista. Requer visão de longo prazo, com métodos e práticas de percurso
para permitir a adaptação aos novos tempos. Os fósseis podem ser igualmente
letais no longo prazo e vitais no curto prazo. Fortes investimentos em energia
renovável podem e devem ser acompanhados de outros, igualmente intensos, na
exploração de petróleo, e riscos apontados pelos órgãos ambientais podem e
devem ser mitigados. Mas não basta decidir, como aparentemente o presidente
decidiu. Sem um roteiro claro do que fazer, como fazer e aonde se quer chegar,
o governo seguirá com a cara de Lula: uma soma de confusões, incertezas e ações
erráticas à espera do arbítrio do grande líder. Não tem como dar certo.
Os duros recados do BC
O Estado de S. Paulo
Política fiscal impede que juros caiam mais
cedo, mas, para Lula, tudo é culpa do mercado
A ata do Comitê de Política Monetária (Copom)
do Banco Central (BC) acertou ao enfatizar a coesão do colegiado na decisão de
manter os juros em 10,5% ao ano. Em meio a tantas incertezas, tudo que a
autoridade monetária precisava demonstrar era convicção no diagnóstico do
cenário econômico, sobretudo depois da desabrida pressão do presidente Lula da
Silva sobre a instituição.
As expectativas de inflação, que guiam as
decisões do Copom, já estavam desancoradas desde a reunião anterior, na qual os
diretores divergiram sobre a magnitude do corte. Agora, no entanto,
apresentaram “desancoragem adicional”. A despeito da perspectiva de juros mais
elevados, as projeções do mercado para a inflação de médio prazo continuam a
subir.
Boa parte dessa piora se deve à política
fiscal do governo, que trabalha na direção oposta à política monetária. Como a
ata menciona, no lugar da desaceleração gradual que o BC esperava, dados mais
recentes da atividade econômica têm surpreendido, sustentados pelo mercado de
trabalho, mas também pelo pagamento de benefícios sociais e de precatórios.
Políticas fiscal e monetária sincronizadas,
destaca o documento, “contribuem para assegurar a estabilidade de preços e, sem
prejuízo de seu objetivo fundamental, suavizar as flutuações do nível de
atividade econômica e fomentar o pleno emprego”. O Copom reiterou que
perseguirá a ancoragem das expectativas “independentemente de quais sejam as
fontes por trás da desancoragem ora observada”.
Após a divulgação da ata, a maioria dos
analistas descartou a possibilidade de que a taxa de juros volte a cair neste
ano. Parte desses observadores, inclusive, já considera mais factível um
aumento do que uma redução da Selic no curto prazo.
Nome mais cotado para assumir a presidência
do BC no ano que vem, o diretor de Política Monetária, Gabriel Galípolo,
reforçou a unidade do Copom. Galípolo disse que as próximas decisões do comitê
estão em aberto e afirmou que a autoridade monetária precisa ter segurança de
que os juros estão em patamar suficiente para a convergência da inflação às
metas.
Era, portanto, para ser uma semana de boas
notícias. Além da coesão demonstrada pelo Copom, o governo finalmente publicou
o decreto presidencial que formaliza a meta contínua de inflação a partir de
2025 e estabelece uma antecedência mínima de 36 meses para que o objetivo seja
alterado. Mas a retórica lulopetista, como sempre, não ajudou.
O dólar chegou a bater em R$ 5,52 depois que
Lula, ignorando a realidade, relativizou, em entrevista ao UOL, a necessidade
de o governo cortar gastos. “O problema não é que tem que cortar. O problema é
saber se precisa efetivamente cortar, ou se a gente precisa aumentar a
arrecadação. Temos que fazer essa discussão”, declarou.
Como se ainda houvesse dúvidas sobre o desequilíbrio fiscal, o Tesouro divulgou que o déficit primário atingiu 2,36% do PIB nos 12 meses encerrados em maio, ainda muito distantes da meta deste ano. Para Lula, no entanto, a culpa é do mercado que torce contra o governo, o que talvez indique que o BC precisa ser ainda mais duro em seus recados.
Uso abusivo de álcool desafia o Brasil
Correio Braziliense
Medidas de enfrentamento no Brasil devem
passar, necessariamente, pelo desconhecimento disseminado de que exageramos em
um comportamento ligado à boa parte das nossas relações sociais
A cada hora, em 2019, 10 brasileiros morreram
em decorrência de fenômenos ligados à ingestão de álcool — seja em um acidente
de carro, seja por complicações de uma doença cardiovascular ou de um câncer,
por exemplo. Foram quase 92 mil óbitos dos 2,6 milhões registrados no mundo,
revela levantamento divulgado, nesta terça-feira, pela Organização Mundial da
Saúde (OMS). Trata-se do estudo com dados globais mais recentes, segundo a
agência da ONU, e, em se tratando da realidade nacional, o documento indica que
podemos estar diante de um cenário ainda mais desafiador. A tendência global é
de uma leve queda nos óbitos desde 2010. Porém, de acordo com o Ministério da
Saúde, o consumo excessivo de álcool, no Brasil, aumentou de 17,2% para 20,8%
de 2008 a 2023.
Especificidades do país, como o aumento do
consumo de álcool entre as mulheres e o desconhecimento da população sobre uma
possível dependência à substância, estão entre as dificuldades para o combate à
ingestão abusiva. Aliás, entre as ações estratégicas recomendadas pela OMS para
reduzir "o fardo sanitário e social atribuível ao consumo do álcool",
estão aumentar a sensibilização por meio de campanhas coordenadas e melhorar os
sistemas de monitoramento e investigação do problema
Quanto à desinformação, o desafio é grande.
Um dos principais lemas de conscientização em campanhas nacionais contra o
álcool, o "beba com moderação" não é entendido pela maioria dos
brasileiros: 57%, de acordo com a Pesquisa Domiciliar sobre o Padrão de Consumo
de Álcool e suas Características Sociodemográficas no Brasil, elaborada com
dados de 2023.
Entre os consumidores abusivos da substância,
a realidade é ainda pior: 75% acham que fazem uma ingestão moderada, e apenas
13% admitem que precisam mudar os próprios hábitos. A OMS prega que não há um
padrão seguro para a substância, sendo que o consumo moderado equivale a duas
doses por dia para homens e uma dose para mulheres. Uma dose corresponde a uma
lata de cerveja de 350 ml, uma taça de 150ml de vinho ou 45ml de destilado.
A quantidade de brasileiras passando desses
limites tem aumentado: de 9,6% para 15,2% de 2008 a 2023. No caso dos homens, a
taxa praticamente se manteve no período de 15 anos: de 26,1% para 27,3%.
Fatores sociais e biológicos contribuem para o agravamento da ingestão entre as
mulheres, segundo especialistas. Elas costumam ter, por exemplo, menor
concentração de enzimas que metabolizam o álcool, fazendo com que, em pouco
tempo de ingestão crônica, surjam graves prejuízos à saúde. Somam-se a isso os
atrasos culturais que podem ajudar a transformar a substância em uma
"válvula de escape", como a dupla jornada, a maternidade solo e a
violência doméstica.
Ao divulgar o levantamento, Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, ressaltou que a construção de uma "sociedade mais saudável e equitativa" passa pela adoção "urgente de ações ousadas que reduzam as consequências negativas para a saúde e sociais do consumo de álcool e tornem o tratamento dos transtornos por uso de substâncias acessível". Elaborar estratégias de enfrentamento focadas, de fato, na realidade da população é um passo fundamental. No caso do Brasil, as medidas devem passar, necessariamente, pelo desconhecimento disseminado de que exageramos em um comportamento ligado à boa parte das nossas relações sociais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário