Desvincular BPC do salário mínimo é medida necessária
O Globo
Trocar correção pela inflação não traria
perda a beneficiários e ajudaria a equilibrar as contas públicas
‘Não
considero isso gasto, gente.’ A frase do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva sobre o Benefício de Prestação Continuada (BPC), voltado
a idosos e deficientes de baixa renda, revela o longo caminho que o governo tem
a percorrer para controlar a dívida pública. Como o BPC está vinculado ao
salário mínimo, desde o ano passado passou a ser regido pela mesma regra de
correção, que prevê aumento acima da inflação.
O histórico recente do BPC é de alta. Nos 12 meses terminados em março, a quantidade de benefícios assistenciais cresceu 12%, pelos dados do Instituto Brasileiro de Economia (FGV/Ibre). Essa expansão foi decisiva para aumentar o rombo da Previdência federal, equivalente a 3,9% do PIB em 2023. Isso se faz sentir nos resultados fiscais de maio, que registrou déficit de R$ 61 bilhões ante superávit de R$ 1,8 bilhão no ano passado. De acordo com o Tesouro, o déficit foi puxado pelo crescimento de R$ 24,4 bilhões nos benefícios previdenciários.
Embora o BPC não seja o único desses
benefícios, o exemplo escolhido por Lula é
perfeito para ilustrar a confusão que se dá em torno do reajuste de todos.
Quando se fala em desvinculá-los do salário mínimo, não se quer deixar de
garantir a quem recebe o mínimo necessário para sobreviver. É fundamental
manter o poder de compra dos beneficiários. Para isso, porém, basta a correção
pelos índices de inflação. Nas contas do economista Felipe Salto, mudar apenas
a correção do BPC e benefícios como auxílio-doença poderia render aos cofres
públicos o equivalente a R$ 20 bilhões pelos números deste ano. Isso ajudaria a
evitar a explosão no custo da Previdência em relação às demais despesas do
governo. Do jeito como está, o sistema é inviável.
Lula está certo em dizer ser preciso
identificar quem recebe benefícios irregulares e cortar o desperdício. A
Previdência atrai um sem-número de pequenos e grandes golpistas em busca de
vantagens indevidas. Mas seria ingênuo superestimar os resultados dessa medida.
Por maiores que se revelem as irregularidades, eliminá-las não será suficiente
para equilibrar as contas. Para controlar o déficit fiscal, a única saída é
diminuir despesas. E a desvinculação do BPC e de outros benefícios
previdenciários do mínimo é uma forma simples de cortar, sem acarretar nenhuma
perda a quem recebe.
Diante de tudo isso, é desolador o estágio
incipiente desse debate no Palácio do Planalto. Lula ainda não se convenceu da
urgência de controlar as despesas. “O problema não é que tem que cortar. O
problema é saber se precisa efetivamente cortar ou se a gente precisa aumentar
a arrecadação. Temos de fazer essa discussão”, disse nesta semana. O
descasamento entre o entendimento dele e o do setor produtivo não poderia ser
maior. Na economia real, a conclusão é que, num país com carga tributária
escorchante, não dá mais para aumentar a arrecadação como pretende o governo. A
desconfiança dos agentes econômicos é o principal fator responsável pela
disparada do dólar nos últimos dias.
Enquanto as despesas do governo não couberem
no Orçamento, isso resultará em endividamento galopante. A dívida pública alta
e crescente torna a vida dos pobres muito mais difícil, pois juros altos inibem
investimentos, geração de empregos e renda. A irresponsabilidade fiscal é
socialmente injusta. Deixar de encarar essa realidade não a dissipará. Pelo
contrário. Só a piorará.
Bolívia mostrou que espaço para golpe
diminuiu na América Latina
O Globo
País que registra maior número de tentativas
de ruptura desde 1945 saiu íntegro de mais uma quartelada
O fracasso da tentativa de golpe na Bolívia reforça
a constatação de que diminuiu muito o espaço na América Latina para rupturas
institucionais, comuns no passado. Desde a independência, em 1825, a Bolívia já
sofreu quase duas centenas de golpes ou tentativas de golpe, nem todos
bem-sucedidos. Desde 1945, é o país do mundo que registra o maior índice de
golpismo, de acordo com dados do Cline Center da Universidade de Illinois —
foram ao todo quatro conspirações, 18 tentativas de golpe e 17 golpes de Estado
bem-sucedidos.
A última
tentativa aconteceu na quarta-feira, quando o general Juan José Zúñiga,
demitido na véspera do comando do Exército, entrou com suas tropas na sede do
governo em La Paz, o Palácio Queimado, depois que um blindado
arrombou as portas. Enfrentou o presidente Luis Arce —
um político de esquerda oriundo do Movimento ao Socialismo (MAS), que depois
rompeu com o ex-presidente Evo Morales. Diante da revolta popular, Zúñiga deu
meia- volta e se retirou com seus soldados. Sem apoio nas Forças Armadas,
terminou preso. Depois alegou que o golpe havia sido uma encenação tramada com
Arce para aumentar sua popularidade.
Na América Latina, é longínquo o passado de
ditaduras das décadas de 1960, 1970 e 1980. Os tempos mudaram. Tanto que a
quartelada despertou reprovação praticamente unânime no continente. A começar
pelos vizinhos Brasil e Argentina. Mesmo não sendo integrante pleno do
Mercosul, a Bolívia está obrigada a cumprir a cláusula democrática do bloco. De
acordo com esse dispositivo, a ruptura institucional acarreta punição com
suspensão ou expulsão.
A Bolívia, como qualquer democracia, deve
resolver seus impasses pelo exercício da política e pela consulta periódica à
população em eleições abertas e transparentes. As bolivianas serão realizadas
no ano que vem. Há grande possibilidade de Arce, ao tentar a reeleição,
enfrentar seu ex-padrinho político, Morales, de quem foi ministro da Economia
por pouco mais de dez anos.
Arce já disse que a candidatura de Morales
será ilegal. Na entrevista concedida na segunda-feira que selou sua destituição
do comando do Exército, Zúñiga, ao se referir à intenção de Morales de disputar
mais uma eleição presidencial, afirmou que não permitiria que ele “pisoteie a
Constituição, que desobedeça ao mandato do povo”. Se contava com a
condescendência de Arce pelo ataque a seu provável rival, cometeu um erro de
cálculo. Se há divergências entre interpretações do que estabelece a
Constituição, que se consulte o Poder Judiciário. Nenhum general deve decidir
nada pela força. Funciona assim nas democracias.
Eleição na França lança incerteza sobre
estabilidade europeia
Valor Econômico
Para a UE, uma coalizão de governo fraca na França seria um cenário ruim, mas um governo minoritário de extrema direita seria um pesadelo
A França, e por tabela a União Europeia, pode
dar um salto no escuro com as eleições legislativas deste fim de semana. Há
riscos importantes, tanto do ponto de vista político como econômico. Essas
incertezas podem causar volatilidade nos mercados europeus e talvez globais nos
próximos meses.
Neste domingo os franceses irão eleger a nova
Assembleia Nacional (o Parlamento), numa votação antecipada pelo presidente
Emmanuel Macron após a derrota de seu partido nas eleições europeias, no início
de junho. Foi uma aposta arriscada do presidente, cujo partido hoje lidera o
governo, mas sem maioria. A Presidência não está em disputa, e Macron
continuará no cargo até 2027.
A média das pesquisas feita pela “The
Economist” indica que o partido de extrema direita Reunião Nacional, liderado
por Marine Le Pen, lidera com cerca de 37% dos votos. Em segundo lugar está a
coligação de esquerda/extrema esquerda Nova Frente Popular, com 29%. O Juntos,
coligação centrista de Macron, está em terceiro, com 21%.
A eleição legislativa na França ocorre em
dois turnos. Isto é, se nenhum candidato obtiver a maioria absoluta, os mais
votados em cada distrito eleitoral disputam um segundo turno, marcado para 7 de
julho. Isso costuma favorecer partidos centristas, já que eles tendem a herdar
os votos dos candidatos que não passaram ao segundo turno.
A votação em dois turnos também dificulta a
projeção das bancadas, já que o comportamento do eleitor no segundo turno não é
claro. Ainda assim, as principais projeções apontam que nenhum partido ou
coligação terá maioria absoluta na Assembleia. Como uma aliança entre a extrema
direita e a frente esquerdista é inviável, o mais provável é que o novo governo
surgirá de uma coalizão que envolverá os centristas de Macron. Porém, se a
extrema direita chegar muito perto da maioria, poderá tentar formar governo minoritário.
A nova Assembleia Nacional elegerá então o
primeiro-ministro. Os candidatos são: Jordan Bardella (Reunião Nacional), de
apenas 28 anos, o esquerdista Manuel Bompard (38 anos) e o atual premiê Gabriel
Attal (35 anos), pelo Juntos. Nada impede, porém, que outro nome surja das
negociações. O provável impasse no Parlamento já aponta para negociações
difíceis e para um governo fraco e dividido.
A França tem sistema de governo misto, no
qual o premiê e o presidente dividem as atribuições. O presidente formalmente
cuida de política externa e defesa. O premiê, das políticas internas. Mas
quando o premiê é do mesmo partido do presidente, como hoje, este último é quem
de fato lidera o governo.
Quem quer que venha a liderar o país nesse
cenário, seja um governo de coalizão fraco, seja um governo minoritário de
extrema direita, terá dificuldade de aprovar reformas importantes na
Assembleia. Há um risco real de paralisia política. E, diante das promessas de
campanha eleitoral, será ainda mais difícil realizar o ajuste fiscal de que o
país precisa.
A principal preocupação dos eleitores,
segundo as pesquisas, é a inflação, com queda do poder aquisitivo. A guerra na
Ucrânia fez a UE deixar de comprar gás e petróleo da Rússia, o que gerou uma
crise energética no continente. O preço da energia disparou, elevando a
inflação e comendo uma parte maior da renda das famílias.
Tanto a direita como a esquerda estão
prometendo mais gasto público e cortes de impostos para ajudar a população. Mas
a França dificilmente poderá pagar esse tipo de bondade. Ao contrário, o país
precisa de um ajuste fiscal. O déficit público, de 5,4% em 2023, está muito
alto. Quase todos os países aumentaram dramaticamente o gasto durante a
pandemia de covid-19, e muitos, como a França, estão com dificuldade de
reduzi-lo. A média do déficit dos 27 países da UE foi de 3,5% no ano passado. A
por ora suspensa regra do euro prevê déficit de até 3% do PIB.
Pesquisa feita pelo “Financial Times” indica
que os franceses confiam mais na extrema direita para ajustar a economia. O
risco maior é que aconteça algo parecido com a crise financeira de 2022 no
Reino Unido. À época, a então nova premiê, a conservadora Liz Truss, propôs um
programa econômico com aumento de gastos e corte de impostos, visto como
inconsistente pelos mercados. Após forte queda nos ativos financeiros, foi
obrigada a renunciar. Uma crise de confiança similar na França poderia abalar o
euro, com repercussões globais. As principais bolsas europeias e o euro estão
em queda desde a decisão de Macron de antecipar eleições.
Para a UE, uma coalizão de governo fraca na França seria um cenário ruim, mas um governo minoritário de extrema direita seria um pesadelo. Apesar de as decisões mais importantes na relação com a UE (como a escolha do presidente da Comissão Europeia) serem de atribuição de Macron, um governo francês de extrema direita pode dificultar a governança europeia. Tradicionalmente a UE tem dois motores políticos, a França e a Alemanha. Quando os dois funcionam bem e em conjunto, o bloco avança. Após as eleições francesas, o mais provável é que os dois governos estejam enfraquecidos politicamente, o que lança uma sombra de incertezas sobre o futuro da UE.
Que a quartelada tenha fim no continente
Folha de S. Paulo
Ensaio tosco de golpe, ainda nebuloso,
fracassa na Bolívia; risco de saídas populistas e autoritárias deve ser
observado
A Bolívia passou
por um inesperado,
inusitado e tosco ensaio de golpe militar na quarta-feira (26).
Sem evidente apoio popular nem de setores políticos, o general Juan José
Zúñiga, recém-removido do posto de comandante do Exército, reuniu tropas e
invadiu o palácio presidencial com um blindado.
A operação canhestra não vingou. O
presidente Luis Arce encarou
Zúñiga com a ordem para retirar-se e o entregou às autoridades policiais. As
tropas leais ao general voltaram aos quartéis e, da aventura castrense,
seguiu-se a demissão dos chefes das Forças
Armadas.
Ainda são nebulosas as circunstâncias da
investida armada contra o Estado de Direito no vizinho sul-americano, que pôs
fim à ditadura
militar com eleições a
partir de 1982. Quarteladas do gênero, que proliferaram no continente durante
os anos 1960 e 1970, pareciam erradicadas há décadas.
Em tempos mais recentes, os casos de ruptura
democrática se deram com líderes civis se valendo de popularidade
circunstancial para minar instituições e cooptar militares —assim foi, por
exemplo, com Alberto Fujimori, que governou o Peru de 1990 a 2000, e Nicolás
Maduro, agarrado ao poder na Venezuela desde
2013.
Na Bolívia, Evo Morales, parceiro do
chavismo de Maduro e padrinho político do atual presidente,
governou de 2006 a 2019, favorecido pela escalada dos preços das
matérias-primas. Renunciou após obter o quarto mandato em eleição controversa,
mas ainda é figura influente na política do país.
Acredita-se agora que o enfrentamento público
com o general golpista possa alavancar a popularidade de Arce, combalida pela
atividade econômica débil, com escassez de dólares e aumento do desemprego. Seu
projeto de reeleição em 2025 depende também da retirada de Morales, com quem
está rompido, da disputa.
A elucidação do episódio será essencial para
a democracia boliviana. A Procuradoria-Geral do país abriu uma investigação
contra Zúñiga, oficial contra o qual pesam denúncias de corrupção e
de controle sobre um grupo militar envolvido em operações de contrabando e
narcotráfico.
Demitido após críticas a uma eventual
candidatura de Morales, o militar deixou o palácio presidencial declarando
ter agido sob incentivo do próprio Arce, sem apresentar evidências
disso.
No segundo país mais pobre da América do
Sul, à frente apenas da devastada Venezuela, a fragilidade das
forças políticas e da gestão econômica permanece um fator de instabilidade para
a democracia.
Guardadas as proporções, o risco representado
por saídas populistas e autoritárias ainda precisa ser observado pelos
vizinhos.
O futuro está no berço
Folha de S. Paulo
Enquanto governos descuidarem da primeira
infância, país continuará atrasado
Dentre as políticas mais comuns em boa parte
dos países desenvolvidos estão aquelas voltadas a crianças de 0 a 5 anos de
idade, já que a atenção a esse estrato produz benefícios duradouros tanto para
indivíduos quanto para a sociedade.
Há descaso histórico no Brasil nessa seara,
que contribui para perpetuar um ciclo de desperdício de capital humano e baixa
produtividade, acirrando desigualdades.
Considerando que se avizinham as eleições municipais,
o debate sobre o tema torna-se ainda mais pertinente. Afinal, são as
prefeituras as responsáveis imediatas pelos aparelhos públicos que lidam
diretamente com a primeira
infância, tema de série de
reportagens publicadas pela Folha.
Segundo o Plano
Nacional de Educação (2014), 50% das crianças de até 3 anos deveriam
estar em creches, e 100% daquelas entre 4 e 5 anos, na pré-escola, neste 2024.
Mas a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) apontou taxas
de 38,7% e 92,9%, respectivamente, em 2023.
Para piorar, parte considerável (38,5%) das
crianças entre 1 e 3 anos estava fora do sistema de ensino não por vontade dos
pais, mas porque não conseguiram vagas; ou seja, por inépcia do poder público.
A educação na primeira infância melhora o
aprendizado nas séries futuras e contribui para o aumento da renda. Não só.
Estudos do economista James Heckman, Prêmio Nobel em 2000, apontaram benefícios
para saúde:
menor risco de consumo de drogas,
cuidado na alimentação e
maior interesse em atividades físicas na fase adulta.
Heckman estimou que cada dólar gasto em
programas para crianças desfavorecidas entre 0 e 5 anos gera retorno de 13% ao
ano.
De acordo com pesquisa de 2023 do Ministério da
Saúde, 22,9% das
crianças nessa faixa têm atraso no desenvolvimento infantil (habilidades
motoras, cognitivas, de linguagem e socioemocionais).
Candidatos a prefeitos precisam apresentar propostas para a primeira infância e eleitores devem exigi-las, antes e depois de depositar seus votos nas urnas. O governo federal, ao qual cabe desenvolver e guiar políticas nacionais, não pode se omitir sobre o tema.
É Lula quem fabrica sua própria crise
O Estado de S. Paulo
Tal como uma profecia autorrealizável, quanto
mais o petista rejeita a necessidade de um ajuste fiscal, mais ele eleva o
custo das medidas que terão de ser adotadas para reverter a sangria
Há muitas razões para ter algum otimismo
sobre o Brasil. A economia cresce, a inflação está sob controle, o desemprego
está baixo, a renda sobe e até os investimentos têm ensaiado uma recuperação.
Não há problemas nas contas externas. Mesmo com o aumento das importações, a
balança comercial acumula um saldo positivo, e o déficit em conta corrente até
se elevou, mas é facilmente coberto pelo Investimento Direto no País (IDP).
Sabe-se, no entanto, que o País tem uma
grande vulnerabilidade: uma política fiscal inconsistente, caracterizada por um
desequilíbrio estrutural entre receitas e despesas de mais de dez anos. Esse
rombo é a razão pela qual o Brasil pratica taxas de juros tão elevadas, e
impedir que o buraco continue a crescer é – ou deveria ser – a principal tarefa
de qualquer governo preocupado em criar um ambiente de negócios amigável à
atração de investimentos.
O presidente Lula da Silva já demonstrou ser
incapaz de assimilar essa lógica, mas, em uma conjuntura favorável, o mercado é
capaz de relevar esse problema e apostar suas fichas na capacidade do ministro
Fernando Haddad de convencê-lo a ter algum juízo na administração das contas
públicas. No entanto, basta que algo mude na conjuntura para que a precariedade
desse arranjo fique clara.
Foi o que ocorreu em março, quando o Federal
Reserve decidiu prolongar o aperto nas taxas de juros norte-americanas – o
maior em 23 anos – pela quinta vez consecutiva, decisão mantida também nas
reuniões de maio e junho e sem perspectiva de revisão no curto prazo. Desde
então, o dólar tem ganhado valor sobre muitas moedas no mundo, entre as quais o
real.
A questão é que a moeda brasileira está entre
as cinco que mais se desvalorizaram neste ano. E essa posição relativa,
lamentavelmente, se deve muito a deméritos próprios – em especial, a evidente
má vontade do governo em enfrentar seus desafios fiscais. Não se trata de mera
impressão: foi uma decisão materializada em abril, quando o governo alterou as
metas fiscais de 2025 e 2026 e driblou o arcabouço, aumentando o limite de
gastos deste ano para reverter o parco contingenciamento anunciado em março.
Em paralelo, a agenda de recuperação de
receitas da equipe econômica dá cada vez mais sinais de esgotamento. Principal
aposta do governo para reforçar a arrecadação neste ano, a negociação especial
para contribuintes derrotados pelo voto de desempate nos julgamentos do
Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) não contabilizou uma única
adesão formal até agora, e o Congresso devolveu trechos da medida provisória
que limitavam o uso de créditos de PIS/Cofins pelas empresas.
Os números não mentem. O Tesouro Nacional
divulgou que as contas do governo central registraram um déficit de R$ 61
bilhões em maio. Foi o segundo pior resultado para o mês em toda a série
histórica, iniciada em 1997, superado apenas por maio de 2020, auge da
covid-19.
O detalhe é que as receitas avançaram
incríveis 9% em termos reais, resultado que só não impressiona mais que as
despesas, que aumentaram em um ritmo 14% acima da inflação, como se o arcabouço
fiscal nem sequer existisse. Em 12 meses, o rombo acumulado é de R$ 268,4
bilhões, o equivalente a 2,36% do PIB, muito acima da meta de déficit zero.
Não há crise financeira internacional nem uma
pandemia a justificar essa gastança, que, não por acaso, muito se assemelha
àquela promovida por Dilma Rousseff, presidente de triste memória. A exemplo de
sua criatura, tudo que Lula fez, até agora, foi desautorizar as iniciativas dos
poucos ministros que ainda defendem um mínimo de responsabilidade fiscal.
Lula acha que está tudo bem e, em seu
negacionismo econômico, amplia incertezas e retroalimenta uma crise de
confiança criada por suas próprias ações hesitantes e declarações desastrosas.
Quanto mais o presidente fala, mais eleva a curva futura de juros e a
desvalorização do real ante o dólar. Tal como uma profecia autorrealizável,
quanto mais Lula da Silva rejeita o ajuste fiscal, mais aumenta o custo das
medidas que serão necessárias para reverter essa sangria.
Ambição na educação também exige realismo
O Estado de S. Paulo
Novo PNE traz novas metas para os próximos
dez anos sem que se tenha cumprido o atual. Ainda assim é uma virtude, desde
que objetivos não fiquem mais uma vez no papel
Sem o alarde e os discursos públicos
triunfantes habituais, o presidente Lula da Silva assinou, enfim, o projeto de
lei que cria o novo Plano Nacional de Educação (PNE) e o encaminhou ao
Congresso, abrindo caminho para a instituição de novas metas, diretrizes e
objetivos para a educação brasileira nos próximos dez anos. A falta de destaque
para a assinatura e os dois meses de atraso do envio são dois sinais
preocupantes no contexto da revisão do plano, mas a maior inquietação é outra:
o Brasil seguirá com novas e ambiciosas metas para o próximo decênio sem ter
feito o dever de casa do anterior. Definido em 2014, durante o mandato de Dilma
Rousseff, o plano atual chegou a este mês na vexatória situação de não ter
nenhuma de suas 20 metas cumprida integralmente, e apenas 4 foram cumpridas
parcialmente. Apesar disso, o novo PNE cria novos objetivos e institui metas
ainda mais ambiciosas, por exemplo, na ampliação do acesso ao ensino e no
aumento do número de crianças em creches, além de manter a já robusta previsão
de chegar a um investimento na educação equivalente a 10% do Produto Interno
Bruto (PIB) – no cálculo mais atual, de 2020, esse índice ficou em 5,4%.
A proposta tem 18 objetivos, da creche ao
ensino superior, que se desdobram em 58 metas e 253 estratégias. Ao pé da
letra, ou dos números, trata-se de uma virtuosa carta de intenções. Além do
financiamento da educação e de metas de equidade, registre-se, por exemplo, a
meta destinada à alfabetização, na qual o objetivo principal é assegurar que,
em cinco anos, no mínimo 75% das crianças estejam alfabetizadas ao final do 2.º
ano do ensino fundamental, e todas as crianças devem estar alfabetizadas até o
final do decênio. O PNE buscará ainda ter 60% das crianças de até três anos
matriculadas em creches – hoje são 37,3%. Também há uma meta para redução de
dez pontos porcentuais na desigualdade de acesso entre crianças pobres e mais
ricas. Estão previstas a universalização do acesso e a garantia da permanência
de alunos de 4 a 17 anos com deficiência, transtornos globais do
desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na educação básica, com a
garantia de um sistema educacional inclusivo. O texto também estabelece
internet de alta velocidade para uso pedagógico em 50% das escolas públicas da
educação básica em até cinco anos e em 100% até o final dos dez anos de
vigência do plano.
Num Brasil de atrasos e desigualdades
educacionais, ambição é uma virtude. Mas as lições deixadas pelo descumprimento
do plano atual sugerem que é preciso muito mais do que colocar uma lista de
objetivos a alcançar, sem que o País defina mecanismos concretos para o seu
atingimento – ou que, vá lá, cheguemos perto disso. Como não é impositivo, o
PNE sempre correrá o risco de ser desvirtuado, limitado ou convertido em peça
de ficção, seja por incompetência, limitações na avaliação e implementação de
políticas ou mera má vontade dos governos. O plano atual passou por três
governos federais e foi concluído no quarto, todos com prioridades diferentes e
entraves diversos. Dilma Rousseff enfrentou seus incontáveis problemas de
gestão, Michel Temer teve pouco tempo e Jair Bolsonaro produziu um MEC ausente,
com ideias que tiraram o foco do que era importante. A pandemia, que provocou o
fechamento das escolas por tempo em demasia e ampliou as desigualdades entre os
alunos, também foi outro fator desabonador.
Tudo isso prejudicou a evolução das metas,
conjugadas com a vocação para objetivos inalcançáveis enquanto reformas
fundamentais eram deixadas de lado. O País também falhou no próprio
monitoramento dos indicadores ao longo dos anos: eles estavam lá, como um
adorno no horizonte, sem que nos apressássemos ou reagíssemos com o rigor
devido conforme se distanciavam na paisagem educacional. É preciso reconhecer,
porém, que mesmo propostas irrealistas (como a meta de 10% do PIB para os
investimentos na educação) podem ajudar a ampliar as exigências por mais e
melhores recursos para o setor, e por novos padrões de qualidade de
infraestrutura, ensino, formação e gestão. Só não se pode aceitar que mais uma
vez tenhamos ambição demais, daquelas que ficam só no papel.
O ‘Desenrola’ da Lava Jato
O Estado de S. Paulo
Governo oferece desconto camarada de 50% em
multas de leniência. Empresas querem ainda mais
O governo Lula da Silva ofereceu descontos de
até 50% em multas bilionárias impostas em acordos de leniência – legais, vale
lembrar – firmados por empresas envolvidas em escândalos de corrupção revelados
pela Operação Lava Jato. Companhias que há poucos anos reconheceram desvios em
contratos firmados com o poder público aceitaram a proposta com ressalvas e
querem ainda mais. Alegam que a realidade – ou melhor, o faturamento – mudou.
O caso está em discussão no Supremo Tribunal
Federal (STF) após PSOL, PCdoB e Solidariedade ajuizarem uma ação de
descumprimento de preceito fundamental (ADPF) em defesa de empreiteiras que
alimentaram esquemas de corrupção em gestões petistas passadas. Pediram as
agremiações alinhadas ao lulopetismo que seja reconhecido um suposto estado de
coisas inconstitucional – instrumento criado na Corte Constitucional da
Colômbia para tratar de sistemáticas e generalizadas violações de direitos. O
que, sem dúvida, não é o caso.
A história recente conta que jorrou dinheiro
– isso, sim, uma ilegalidade – para irrigar campanhas eleitorais de petistas e
companhia bela em troca de obras, que, após a descoberta da pilhagem –
sobretudo na Petrobras –, claro, rarearam. Eis o aperto no caixa.
A ação está sob a relatoria do ministro André
Mendonça, que formou uma mesa de negociação com o governo e empresas para
discutir a revisão dos acordos. A Controladoria-Geral da União (CGU) e a
Advocacia-Geral da União (AGU) primeiramente propuseram abatimentos de 20% a
30% para Metha (antiga OAS), Nova Participações (Engevix), UTC Engenharia,
Mover Participações (Camargo Corrêa), Andrade Gutierrez, Novonor (Odebrecht) e
Braskem.
Os devedores reconhecem a dívida e dizem que
querem pagá-la, mas não gostaram da proposta. Fato é que querem pagar o quanto
bem entenderem e da forma que melhor lhes convier. Por isso, insistiam na
pechincha e pediram um desconto de até 70%, o que, ainda bem, foi negado.
O governo, porém, cedeu e apresentou o
desconto camarada, em uma última oferta. Em valores corrigidos, essas
companhias devem ainda cerca de R$ 11,7 bilhões. Ao cortar pela metade esse
saldo, o governo Lula da Silva se dispôs a abrir mão de cerca de R$ 5,8
bilhões. As empresas, que de ingênuas não têm nada, concordam em abater a multa
com prejuízo fiscal, mas reivindicam agora que o benefício se dê sobre o total
devedor – o que pode chegar a R$ 8 bilhões.
Como apurou o Estadão, as companhias
estão divididas. Há advogados que ainda avaliam deixar correr a judicialização.
Outros defendem a negociação – essa espécie de “Desenrola” da Lava Jato.
As ressalvas feitas poderão ser sanadas nos próximos dias. Até aqui, a CGU e a AGU resistiram a uma revisão tão radical quanto à pleiteada pelas empresas. Que assim se mantenham, haja vista que o abatimento de metade do débito sobre o saldo devedor é um excelente negócio – para as empreiteiras, não para os cofres públicos. Se o governo ceder mais, logo essas companhias vão cobrar indenização e exigir pedido de desculpas.
Epidemia de obesidade
Correio Braziliense
Mantidas as tendências atuais, 130 milhões de
adultos brasileiros viverão com sobrepeso ou obesidade (75%), sendo 83 milhões
com obesidade e 47 milhões com sobrepeso
Um tema muito complexo está sendo amplamente
debatido nesta semana, em São Paulo: a obesidade. O congresso internacional
reúne, até amanhã, autoridades e especialistas, entre os quais
endocrinologistas, clínicos, oncologistas, angiologistas, enfim, toda a
comunidade médica em torno do assunto. Os dados continuam alarmantes: quase
metade dos adultos brasileiros viverão com obesidade em 20 anos; três quartos
dos adultos brasileiros terão obesidade ou sobrepeso em 2044; obesidade em
meninos e meninas de todas as idades no Brasil deve aumentar significativamente
nos próximos 20 anos; e taxas de obesidade, obesidade severa e sobrepeso estão
varrendo todas as áreas do Brasil e atingirão níveis recordes até 2030.
As projeções vêm de estudo liderado pelo
especialista em políticas públicas e gestão governamental Eduardo Augusto
Fernandes Nilson, que é pesquisador e docente no Programa de Alimentação,
Nutrição e Cultura da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Brasília. E o que estamos
fazendo para tentar mudar esse quadro? Comendo mais. De acordo com o
levantamento, mantidas as tendências atuais, em 2044, 130 milhões de adultos
brasileiros viverão com sobrepeso ou obesidade (75%), sendo 83 milhões com
obesidade e 47 milhões com sobrepeso. Hoje, esse contingente está em 56%.
Nos papers dos estudiosos, eles destacam a
alavancada rumo à obesidade no Brasil entre 2006 e 2019. A população obesa
praticamente dobrou, chegando a 20,3% dos adultos. Em 2030, a previsão é de que
ultrapassemos os 68%, sendo 29,6% para obesidade e 38,5% para sobrepeso. Os
especialistas chegam a considerar o problema como uma epidemia de obesidade,
com destaque para as mulheres, os negros e outras etnias minoritárias. Sem
contar os gastos com comorbidades decorrentes dos problemas primários.
Entre as causas que levam à obesidade e a
várias doenças, está a redução do consumo de frutas, verduras e legumes,
principalmente pelos jovens. Os alimentos saudáveis são substituídos por
refrigerante, sucos artificiais e ultraprocessados, com elevado percentual de
calorias. Segundo a Organização Mundial da Saúde, ao lado da ingesta de
produtos não saudáveis, a maioria das pessoas é sedentária, quando deveria, no
mínimo, praticar 150 minutos de atividades físicas semanais. O comprometimento
do sono, quando o ideal é dormir entre sete e nove horas por dia, também está
entre os fatores que levam ao excesso de peso corporal e favorecem o surgimento
de várias doenças.
Nesse levantamento, foi montada uma tabela da
vida mostrando os impactos do sobrepeso e da obesidade sobre 11 doenças
associadas ao índice de massa corporal (IMC) elevado. E a lista é grande:
doenças cardiovasculares, doença renal crônica, cânceres, diabetes, além de
outras condições atreladas ao envelhecimento da população. A estimativa é de
10,9 milhões de novos casos de doenças crônicas e 1,32 milhão de mortes
associados ao sobrepeso e à obesidade. No ranking das comorbidades, o diabetes
lidera, com 51% dos novos casos, e as doenças cardiovasculares, com 57% em
termos de mortes até 2044.
Enquanto não houver um planejamento de políticas públicas específicas que possam oferecer tratamentos assertivos para a população que se encontra com sobrepeso ou obesa, além de esquemas de prevenção capazes de conter essa avalanche — e aí, sim, incluindo todas as faixas etárias —, vamos cada vez mais nos afastar dos objetivos de termos uma população majoritariamente saudável. A esperança existe, mas o tempo está ficando cada vez mais curto.
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