Valor Econômico
O Brasil está propondo uma solução não
educacional a complexos problemas relativos à qualidade do ensino sem que haja
qualquer evidência da efetividade de tal proposta
A forma como os países organizam a educação
tem efeitos que ultrapassam essa política pública. Lembrar disso é fundamental
quando a adoção das chamadas escolas cívico-militares é ampliada no Brasil.
Elas devem ser analisadas não só na maneira como impactam o modelo de ensino,
mas também nas consequências que têm sobre o Estado e a visão de democracia.
Neste sentido, a militarização da política
educacional bate de frente com várias conquistas obtidas a partir da
redemocratização, levando a um retrocesso amplo que expressa o atraso
civilizacional brasileiro em sua versão do século XXI.
O primeiro ponto que chama atenção no modelo
das escolas cívico-militares é sua singularidade frente à experiência
internacional recente. Nenhum dos países com resultados destacados em política
educacional no mundo adota um padrão similar a essa nova jaboticaba brasileira.
Militarizar o funcionamento das escolas não é característica nem dos governos
mais próximos do autoritarismo que aparecem bem em rankings como o da avaliação
do Pisa, exame organizado pela OCDE com cerca de 80 países.
Indo mais direto à essência da singularidade dessa proposta: não passa pela cabeça de gestores, educadores ou pesquisadores de educação em qualquer parte minimamente desenvolvida do mundo colocar militares aposentados como resposta a desafios educacionais.
O Brasil está propondo, assim, uma solução
não educacional a complexos problemas relativos à qualidade do ensino, sem que
haja qualquer evidência da efetividade de tal proposta. Nossas crianças e
jovens vão ser submetidas, como ratos de laboratório, a um experimento
completamente fora das principais recomendações internacionais sobre como
reformar com sucesso a política educacional. Tamanha irresponsabilidade pode
custar muito caro ao futuro do país.
Alguns dos governadores que encabeçam hoje
essa proposta têm se apresentado à sociedade como modernizadores do Estado, ou
pelo menos como uma parte mais civilizada do bolsonarismo. Eles têm feito
verdadeiros road shows pelo país para convencer a elite de que suas propostas
estariam adequadas aos desafios do século XXI.
No entanto, gostaria muito que tais
lideranças políticas tentassem defender o modelo de escolas cívico-militares em
fóruns internacionais de educação ou de políticas públicas mais amplas, como a
OCDE ou o Banco Mundial - e nenhuma dessas organizações pode ser chamada de
comunista. Esse modelo seria visto como anacrônico, um verdadeiro veículo do
atraso que só levaria à piora dos padrões do desenvolvimento brasileiro. Pena
que o provincianismo de boa parte da opinião pública brasileira ignore a
compreensão desse grave equívoco educacional.
Embora não haja um único padrão internacional
de modelo educacional bem-sucedido, o portfólio de medidas consideradas boas
práticas vai na direção contrária das escolas cívico-militares. Entre esses
elementos, destacam-se propostas como a governança colaborativa das escolas,
que exige o reforço do trabalho coletivo e do aprendizado pela via do diálogo
amplo, dimensões completamente opostas à hierarquização militar do ambiente
escolar.
Pesquisas mostram também que lideranças
escolares com maior êxito são aquelas capazes de engajar os profissionais da
educação, as famílias e os estudantes em torno de objetivos pedagógicos que
passam longe do disciplinamento forçado dos jovens, algo que está mais para o
padrão Coreia do Norte do que para qualquer caso de êxito educacional e
civilizacional.
Além disso, o desenvolvimento da capacidade
crítica dos estudantes, de suas competências interpessoais relacionadas à
diversidade e do estímulo à criatividade constitui outro elemento de destaque
em países com bons resultados educacionais. Aliás, o Brasil apareceu
recentemente no exame do Pisa como um destaque negativo não só na aferição do
aprendizado de disciplinas básicas (linguagem, ciências e matemática), como
ainda no que se refere ao desempenho criativo de nossos jovens.
O modelo das escolas cívico-militares piorará
mais esse quadro, uma vez que a obediência baseada em padrões autoritários de
comando produzirá jovens que não seriam capazes de ir além do convencional e de
pensar “fora da caixa”, algo tão valorizado hoje no mercado de trabalho.
Pode-se argumentar que a proposição desse
modelo educacional seria uma resposta ao aumento da violência no ambiente
escolar, uma demanda legítima da sociedade e das famílias mais vulneráveis. Se
essa é a origem da proposta, ela está equivocada em dois sentidos.
Em primeiro lugar, é fundamental aumentar a
intersetorialidade na política educacional, pois sua lógica setorial não é
capaz de resolver todos os problemas que afetam o aprendizado e o
desenvolvimento das crianças e jovens. Assim, é fundamental a articulação com a
saúde, a cultura, a assistência social, o esporte e, sim, a segurança pública,
aspecto essencial especialmente nas comunidades mais atingidas pela
criminalidade.
Só que o suporte intersetorial não significa
transportar completamente a lógica de outra política ao ambiente escolar. Ter
em conta que o aprendizado é afetado por aspectos relacionados à saúde, por
exemplo, não significa ter que contratar dezenas de médicos para atender todos
os estudantes de uma escola, tomando a maior parte do horário de ensino para
essa função. Ou ainda transformar o papel de uma diretora escolar numa extensão
da atividade das assistentes sociais, de modo que a gestão escolar estaria apenas
preocupada com as condições sociais das famílias do alunado, sem ter de
desenvolver propósitos e metas pedagógicas.
O mesmo raciocínio vale para a questão da
segurança: colocar um profissional da área como gestor não resolverá a questão
da violência e ainda tende a transportar uma lógica repressora e punitivista
para um espaço educativo, o inverso do que deveria ser a política educacional.
A militarização das escolas contém um segundo
equívoco em seu propósito de reduzir a violência no ambiente escolar. O que
produz um clima escolar mais saudável é a construção compartilhada do respeito
entre todos os atores que convivem na escola. A imposição autoritária de
comportamentos e a obediência pelo medo podem, ao contrário, aumentar os casos
de bullying e gerar insatisfações psicológicas capazes de produzir casos de
violência extrema.
Cabe lembrar os assassinatos em série
cometidos por alunos ou ex-alunos ocorridos recentemente, frutos de uma
complexa cadeia causal, mas que com certeza têm mais a ver com a incapacidade
de as escolas construírem um ambiente mais respeitoso em sua diversidade do que
com a falta de um comandante policial na direção da escola.
A adoção das escolas cívico-militares produz
retrocessos para além da política educacional. Essa proposta tem um sentido
mais amplo de afronta a avanços obtidos pelo Estado e sociedade brasileiros a
partir da redemocratização.
Entre os muitos efeitos desse atraso
institucional, duas dimensões são evidentes. A primeira é o desrespeito à ideia
de profissionalização e de especialização das atividades estatais, que teriam
de ser orientadas por conhecimento científico atinentes a cada problema social.
Só foi possível criar o SUS graças ao saber
de médicos e profissionais de saúde, especialmente os que construíram, por
décadas, uma concepção sanitarista. Não teria ocorrido o sucesso da
estabilização monetária do Plano Real sem economistas bem formados que
pesquisaram cientificamente as causas do fracasso dos planos anteriores. O
sucesso da agricultura brasileira certamente tem forte relação com bons cursos
de agronomia e com a atuação da Embrapa, bem como a inovação tecnológica na
Embraer e na Petrobras vinculam-se a nichos de excelência em engenharia.
Colocar policiais como gestores de escola é
um enorme amadorismo, com uma pitada de patrimonialismo, porque esses
profissionais são escolhidos pela sua vinculação política com determinados
grupos, e não por sua excelência no assunto. Imagine o escândalo que seria
escolher um jogador de futebol para a presidência do Banco Central ou um
professor para comandar o policiamento numa grande cidade.
No fundo, a lógica da escola cívico-militar
segue o mesmo padrão do negacionismo científico: não acredita em ciência nem em
especialista. Essa postura bolsonarista levou à morte 700 mil pessoas durante a
pandemia da covid-19. Quantos talentos e possibilidades de cidadãos mais
críticos e criativos serão ceifados pela militarização das escolas?
Em seu efeito mais profundo, as escolas
cívico-militares atacam a ideia de democracia como padrão principal de
organização do espaço público. Na verdade, a militarização educacional é uma
forma de deslegitimar a escola pública como instituição livre e responsável por
formar crianças e jovens pelo diálogo.
E todas as arenas que servem hoje ao
propósito da democratização, muitas montadas ou aprimoradas pela Constituição
de 1988, estão em jogo quando o civismo é substituído pelo autoritarismo em
nome da ordem social.
Eis aqui a grande farsa do projeto: ao ser
militarizada, uma escola pública não pode ser cívica - nem profissional, muito
menos democrática. Os governadores que estão apostando neste modelo sem base
científica colocam em risco não só o ensino da população mais carente do país,
como também a própria democracia. São líderes do atraso, não da modernização.
5 comentários:
Em toda avaliação internacional o Brasil fica lá atrás, atrás de Gana do Peru , África do Sul e outros países do Terceiro mundo
isso sim é um escândalo , as nossas escolas transformadas em centro ideológicos de péssima qualidade , as crianças não sabem escrever não sabem fazer conta não sabe interpretar um texto na oitava série Isso sim é a prova cabal da falência da educação brasileira e não ficar falando em escola civil militar quem dera nosso problema fosse esse
Texto brilhante! O comentarista acima simplesmente NÃO LEU o que escreveu e argumentou o colunista. Ou, como papagaio que simplesmente repete o que lhe ensinam, o pobre ser nem compreendeu o que o colunista demonstrou!
Destaco 2 frases sintéticas e PERFEITAS do colunista:
"Não passa pela cabeça de gestores, educadores ou pesquisadores de educação em qualquer parte minimamente desenvolvida do mundo colocar militares aposentados como resposta a desafios educacionais."
"Colocar policiais como gestores de escola é um enorme amadorismo"!!
Devemos relembrar a contribuição bolsonarista à Educação brasileira: ministros da Educação criminosos, como Abraham Weitraub, pastor Milton Ribeiro, ex-militar Carlos Alberto Decotelli, que se sucederam ao longo de 4 anos de caos educacional. O último mentia no próprio currículo, dizendo ser pós-doutor quando nem doutor era, e os 2 primeiros sendo ainda hoje processados por seus crimes no cargo.
O artigo é,de fato,brilhante!
Postar um comentário