O Globo
Rituais de sucessão como eleições periódicas
expõem a ambiguidade dos limbos, purgatórios e viagens
Toda mudança de papéis e de espaço social é
uma “passagem”, e tal movimento requer uma ritualização confirmadora. Arnold
van Gennep, que estudou e cunhou essa dinâmica ritual num livro clássico (“Os
ritos de passagem”, publicado em 1909 e introduzido no Brasil em 2013, com
minha apresentação), dizia que todas as passagens implicam separação,
marginalidade e integração.
Dessas três fases, a mais perigosa é a intermediária. Fase na qual o grupo ou a pessoa não está onde estava, mas ainda não se encontra onde deveria estar. Rituais de sucessão como eleições periódicas — essa exigência da democracia liberal — expõem a ambiguidade dos limbos, purgatórios e viagens. Na campanha eleitoral, a dramaticidade dessa etapa intermediária da sucessão exibe o seu momento crítico.
Não é por acaso que a consagração de reis e
papas é repleta de vestes, adornos e gestos de sujeição e autoridade
transcendentes. Nos tempos pós-modernos, porém, coroas e espadas foram
substituídas por códigos digitais, como profetizou Stanley Kubrick no filme
“Dr. Fantástico”. Um automatismo que autoriza iniciar ou terminar uma guerra
nuclear capaz de destruir o planeta. Essa capacidade digital é, sem dúvida, o
aterrorizante símbolo que acompanha o cargo de presidente ou ditador das
potências mundiais.
A eleição presidencial americana traz de
volta a simbologia dos ritos de sucessão na sua fase mais delicada: o momento
em que um presidente conduz uma eleição na qual ele tem partido, e o seu
adversário é um ex-presidente marcado por uma selvagem agressividade verbal e
um comportamento incompatível com o papel, mas que foi vítima de uma tentativa
de assassinato. Culmina esse tumulto numa disputa eleitoral com uma candidata
negra que desempenhou o papel de vice-presidente do atual chefe da nação, que
preside essa passagem eleitoral com um alto teor de ambivalência e polarização.
É um bom exemplo de evaporação das racionalidades que, afinal, são os guias de
nosso modo de vida.
Os iluministas delinearam a República com
poderes interdependentes e um sistema sucessório destituído da parafernália
sacrossanta. Mas não se pode deixar de assinalar que, nos ritos de posse
presidencial dos Estados Unidos, o eleito levanta sua mão direita para os céus
e pousa a outra mão numa Bíblia (o livro sagrado dos puritanos). Ao compromisso
transcendental realizado com a mão direita (a mão das preces e contratos
voltada para o alto), segue a promessa de cumprir um outro livro equivalente à
Bíblia — um código que é o espírito dos Estados nacionais modernos: a
Constituição que governa governos.
Um antropólogo abusado perguntaria: qual é o
livro mais sagrado, mais idealizado e mais removido do mundo diário e das
espertezas políticas, focadas no apetite de vencer?
Tais gestos rituais reafirmam o credo liberal
americano e, com ele, o conceito rousseauniano de “religião civil”. Crença
ameaçada por Donald Trump.
Nos Estados Unidos existe uma arrepiadora
tradição de assassinar presidentes. Na América Central e na do Sul, ainda se
corre o risco dos “golpes” que dissolvem a tripartição dos Poderes e instauram
furiosa repressão e um Executivo centralizado. Ao lado disso, há a competição
pelo extremismo de ideologias que deteriam o segredo da felicidade. Valores
transcendentes são relativizados pela força bruta do poder ou do poder como
força bruta.
Em matéria de vida coletiva, precisamos de
instituições perenes e de gestos praticados em nome de uma terra que foi feita
por certos ideais e estilo de vida que estão inscritos nos nossos corações. É
mais do que terra: é pátria.
Foi o que vi e admirei em Joe Biden.
Há quem diga que o altruísmo é um mero gesto político. Sem dúvida. Mas lembro
que, num estudo sobre o suicídio de 1897, Émile Durkheim chamou a atenção para
os “suicídios altruístas”, realizados em nome de valores coletivos. Então, o
egoísmo que caracterizaria a renúncia não seria somente uma forma de esperteza.
O egoísmo do altruísmo é o cerne de nossa maravilhosa contradição humana. É ela
que distingue “heróis” e “salvadores do mundo”. Esses “egoístas” que se
sacrificam em nome da democracia.
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