quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Como Trump alveja a soberania tributária dos países - Assis Moreira

Valor Econômico

Um acordo para taxação das gigantes da Internet já tinha fracassado na OCDE, e a situação agora complicou mais

Donald Trump terminou seu discurso de posse como novo presidente dos Estados Unidos, na segunda-feira (20), avisando que "nada se interporá em nosso caminho porque somos americanos".

No mesmo dia, anunciou uma avalanche de decisões, marcadas pelo isolacionismo. Uma delas procura desmantelar a vasta reforma do sistema tributário internacional negociada na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Alveja na prática a soberania dos outros países e busca ditar as regras do jogo conforme a exclusiva conveniência dos EUA.

Trump não se preocupa com a ordem internacional baseada em regras e nem em alimentar sua rede de aliados, e quer exercer seu poder por dominação econômica, medo e força, como definiu o "New York Times". No caso da tributação global, essa é uma ilustração a mais.

Ele mandou o secretário do Tesouro notificar a OCDE que compromissos feitos pelo governo de Joe Biden relacionadas ao Acordo Tributário Global não tem força ou efeito nos EUA.

Além disso, mandou o Tesouro e a USTR (Agência de Representação Comercial dos EUA) investigarem nos próximos 60 dias as regras tributárias de todos os outros países do mundo, ameaçando com sanções qualquer medida que considerem "extraterritorial" ou que afete "desproporcionalmente" as empresas americanas. Republicanos já tinham deixado claro que consideram que é isso que acontece hoje, o que significa que os outros países estão sob ameaça.

O plano de reforma do sistema tributário internacional, negociado por 147 países na OCDE, em Paris, tem, ou tinha, dois pilares.

O "Pilar 2" introduziu o imposto mínimo global que os países podem adotar em suas regras internas para cobrar das grandes multinacionais uma taxa efetiva de 15% sobre os lucros que elas realizam onde exercem suas atividades. Vem sendo implementado por cerca de 50 países, incluindo o Brasil.

Já o "Pilar 1" não teve acordo entre os países, como foi constatado no começo deste ano. Por ele, uma fatia de 25% dos lucros das vendas realizadas por cerca das 113 maiores múltis, muitas do setor digital, como FacebookAmazon Google, seriam tributadas onde suas vendas se realizaram, mesmo sem presença física nesses locais. Procurava definir critérios para realocação de lucros entre jurisdições e estabelecer quais os Estados que tem direito a tributar.

No ano passado, lideranças do Partido Republicano já tinham enviado uma carta à direção da OCDE avisando que o Congresso exerceria represálias contra os países que taxassem os lucros das empresas americanas em seus territórios. Rejeitavam acordo global, alegando que isso "obrigaria os EUA a renunciar a US$ 120 bilhões de receita em proveito de governos estrangeiros, ao mesmo tempo oferecendo vantagens concorrenciais à China e a outros países".

Agora, em meio a "pânico e caos" em círculos da OCDE, alguns procuram acreditar que o memorando de Trump 2.0 não representa desengajamento total, diferente de uma saída da Organização Mundial da Saúde (OMS), por exemplo.

A avaliação é que o governo Trump será transacional em impostos e tarifas internacionais, usando estes como armas de dissuasão na busca de conformidade aos seus interesses. E que no médio prazo talvez não seja interesse dos EUA ficar fora de um acordo na OCDE, até para empresas americanas escaparem do risco de dupla tributação. Mas isso ocorreria se os demais países eventualmente decidissem enfrentar o unilateralismo trumpiano.

A China quer o acordo tributário global. E a expectativa é de que Pequim vai negociar com os EUA também nessa área. Com outros países, Washington poderá entrar numa fase de discussões bilaterais para estabelecer o que querem. No "Pilar 2", de taxação mínima de 15%, por exemplo, o governo Biden excluiu do acordo setores como bancos e companhias de petróleo, por exemplo.

É muito difícil negociar com qualquer governo dos EUA. Mas com equipe de Trump é ainda mais duro. Os trumpistas não negociam, e sim exigem. Não ouvem, tentam impor, conforme diferentes relatos.

Sem o acordo para taxação dos gigantes da Internet, vários países tinham avisado na OCDE que adotariam diferentes taxas individuais sobre as big techs. Ao invés de uma taxação global, haveria assim o risco de haver mais de 80, no que negociadores chamam de "volta ao mundo da selva", ampliando a fragmentação da economia mundial e retaliação entre países. Se isso vai acontecer, em meio às ameaças de Trump, é algo a ver.

No primeiro governo Trump (2017-2021), a USTR, a agência de representação comercial americana, abriu investigação sobre "taxas de serviços digitais" visando o Brasil, Áustria, República Checa, União Europeia (UE), Índia, Indonésia, Itália, Espanha, Turquia e Reino Unido com base na "Section 301 of the Trade Act of 1974". Essa lei dá ao governo americano ampla autoridade para responder ao que considerar práticas desleais afetando negativamente interesses comerciais americanos.

No caso brasileiro, Washington reclamava de uma proposta apresentada na Câmara pelo deputado João Maia (PL-RN), a chamada Cide-Digital. O Brasil aceitou fazer consultas bilaterais com o governo dos EUA, e explicou que essa iniciativa não era do governo e sim de um parlamentar.

Agora, para a ONG Tax Justice Network, o que Trump 2.0 fez em seu primeiro dia na Casa Branca foi não apenas eliminar as "já fracas reformas tributárias da OCDE, como efetivamente ameaçar destruir tudo o que foi construído no último século na área tributária internacional".

"O memorando de Trump coloca em dúvida qualquer medida que busque garantir que os lucros sejam declarados onde a atividade ocorre -- pelo menos se a multinacional for dos EUA, e certamente se os lucros estiverem sendo transferidos para lá", avalia Tax Justice Network. "O governo dos EUA está, portanto, colocando em dúvida o direito de qualquer país de tributar uma empresa americana, inclusive quando elas estão localizadas e fazem negócios em outros países."

A escolha para os países é clara: "Eles podem desistir de qualquer esperança de exercer seus direitos de tributação sobre grandes multinacionais por pelo menos mais quatro anos [durante o mandato de Trump] e simplesmente tentar evitar uma briga com o novo agressor. Ou podem se unir e trabalhar para defender a soberania tributária de cada país, comprometendo-se com um progresso ambicioso e inclusivo nas negociações da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Cooperação Tributária Internacional".

As reações até agora tem sido de prudência. No momento, não há indicação de países querendo antagonismo com Trump e buscando ação coletiva para ‘’resistir à intimidação do novo governo dos EUA”, na expressão de Tax Justice Network.

 

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