O Estado de S. Paulo
O debate sobre a ‘desdolarização’ da economia
global e a ‘multipolaridade’ do SMFI já tinha emergido antes da eleição
americana, mas ganhou impulso desde então
Desde a campanha presidencial, Donald Trump reafirmou
seu compromisso com a hegemonia do dólar como divisa-chave do sistema monetário
e financeiro internacional (SMFI). Ou seja, o dólar desempenha a função de
moeda internacional, sendo predominantemente utilizado como meio de pagamento,
unidade de conta e reserva de valor fora das fronteiras nacionais.
Após a eleição, Trump intensificou suas exigências, ameaçando aplicar sanções comerciais (especialmente na forma de tarifas de 100%) contra países que abandonassem a moeda americana, inclusive os países dos Brics, que aventaram a possibilidade de criar uma moeda alternativa ao dólar nas duas últimas cúpulas – Johannesburgo (2023) e Kazan (2024).
O mundo anterior ao colapso do regime de
Bretton Woods, em 1973, era muito mais simples. Nele, o dólar era conversível
em ouro e mantinha uma taxa de câmbio fixa. Só a partir do desarranjo de meados
dos anos 1970 moedas de países desenvolvidos despontaram como possíveis
substitutos, notadamente o marco e o iene, e, posteriormente, o euro. Agora,
pela primeira vez, uma moeda de um país em desenvolvimento, o renminbi (RMB)
chinês, desponta como uma alternativa.
Nos últimos anos, a China tem buscado ampliar
a utilização do RMB no comércio internacional e nos empréstimos aos países em
desenvolvimento (dos quais é atualmente o principal credor). Também expandiu
suas linhas de swap cambial com bancos centrais de outros países. Assim, o
debate sobre a “desdolarização” da economia global e a “multipolaridade” do
SMFI já tinha emergido antes da eleição de Trump, mas ganhou impulso desde
então.
A emissão da divisa-chave do sistema
financeiro internacional confere vantagens estratégicas, tanto políticas quanto
econômicas, por isso foram apelidadas de “privilégio exorbitante”, no início
dos anos 1960, por Valéry Giscard d'Estaing, então ministro das Finanças da
França. Isso significa que os EUA podem pagar suas dívidas externas com sua própria
moeda.
Vale ressaltar que esse privilégio se tornou
ainda maior depois do colapso do regime de Bretton Woods porque o dólar deixou
de ser conversível em ouro, passando a ter uma taxa de câmbio flutuante, o que
aumentou ainda mais a autonomia de política econômica dos Estados Unidos. Ao
mesmo tempo, a participação dos Estados Unidos na economia global diminuiu,
representando 20%, tendo a China 18% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial e
25% da produção de manufaturados.
Apesar disso, a hegemonia do dólar não foi
ameaçada. Os ativos em dólar correspondem a cerca de 60% das reservas oficiais
dos bancos centrais, dos créditos bancários e dos instrumentos de dívida
globais. Metade das transações internacionais ainda é liquidada em dólares, e
os ativos americanos, principalmente os títulos do Tesouro americano, são
considerados os mais seguros e líquidos pelos investidores globais. Em momentos
de crise é para esses títulos que a riqueza global se dirige. Em contrapartida,
o RMB responde por somente 3% dos pagamentos globais e menos de 3% das reservas
oficiais.
Crises recentes, como a guerra na Ucrânia,
têm acelerado a busca por alternativas ao dólar. Na Rússia, por exemplo, o uso
comercial e financeiro do RMB dobrou para quase 100%, em um mês, após as
sanções impostas pelo Ocidente. O uso do dólar como arma geopolítica tem
alertado outras economias sobre os riscos de depender exclusivamente de um
sistema dominado pelos EUA.
Neste ambiente internacional, a grande
questão é se a estratégia de Trump de preservar a hegemonia do dólar pode ter
sucesso ou se, ao contrário, poderá acelerar a fragmentação monetária global.
No curto e médio prazos, é pouco provável que
isso aconteça. A hegemonia do dólar no atual SMFI ancora-se, sobretudo, no
poder financeiro dos Estados Unidos. O mercado de títulos públicos americano
continua sendo o mais líquido e profundo dentre todos. Isso também vale para o
mercado de capitais, seja o mercado acionário, seja o de dívida privada.
A China ainda mantém restrições à entrada de
investidores estrangeiros e não oferece ativos financeiros com potencial para
substituir os ativos americanos como âncora da manutenção da riqueza global.
Eliminar essas restrições ameaçaria a autonomia de política econômica, o que
não parece estar no horizonte do governo chinês. Isso não quer dizer, contudo,
que a participação de outras moedas nas transações internacionais não possa
ocorrer durante o governo Trump. O que se sustenta aqui é que ela não será suficiente
para destronar o dólar como divisa-chave num horizonte razoável.
O novo governo Trump estreou num tom mais
radical, disposto a ecoar e defender o sonho americano de permanecer dominando
os negócios e as finanças do mundo. As ameaças à Groenlândia, ao Canadá, ao
Panamá e aos Brics já se associam à miséria da guerra contra os imigrantes e ao
apoio à baderna institucional na premiação aos invasores do Capitólio. A única
certeza é que o grau de turbulências na economia mundial deve ganhar novo
patamar.
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