domingo, 24 de agosto de 2025

Educar para a arte do encontro

Por Marcio Junior é editor do Voto Positivo

Em situação atípica em muitos espaços de pesquisa e rincões acadêmicos no mundo, a Fundação Casa de Rui Barbosa, em Botafogo, se viu invadida por estudantes do Colégio Estadual Professora Jeannette de Souza Coelho Mannarino, de Campo Grande. Os adolescentes, moradores desta Zona Oeste profunda, foram participar no dia 18 de agosto do encontro conduzido pelo Prof. Vagner Gomes, professor do próprio colégio, doutorando pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e colunista do Voto Positivo. O encontro foi promovido pelo pesquisador da Casa, Julio Aurélio Vianna Lopes.

No conteúdo, advindo de sua pesquisa de doutoramento em curso, Vagner apresentou Sueli Carneiro como liderança ativista cuja obra tensiona o lugar comum que reduz “política” à disputa de cargos e à representação formal. Nascida em 1950, formada em Filosofia (USP) e doutora no início dos anos 2000 (na Pedagogia), Sueli fundou em 1988 o Geledés – Instituto da Mulher Negra; o ano coincide com a Constituinte e ajuda a situar seu ativismo num momento de rearranjo institucional no país. Essa temporalidade não é mero detalhe, pois ela aponta uma gramática de ação capaz de pressionar por meio de ativismo social, por fora da mediação eleitoral.

Ao distinguir movimento negro (misto) e feminismo negro, o professor ressaltou o duplo enfrentamento proposto por Sueli (racismo e sexismo) e a demarcação do sujeito político “mulher negra” como condição de visibilidade. Entre as formulações projetadas, duas sintetizam o eixo do argumento: “o racismo é um sistema de dominação, exploração e exclusão que exige resistência sistemática e organização política” e “ser mulher negra é experimentar uma condição de asfixia social”. 

Levando em consideração estas provocações conhecidas de Sueli, parte da exposição foi dedicada a mapear a relação entre ativismo e esfera institucional. De um lado, a Constituição de 1988 e a emergência de uma bancada negra com nomes como Benedita da Silva, Vicentinho, Carlos Alberto de Oliveira (Caó) e Paulo Paim; de outro, a ênfase de Sueli em organização social autônoma, capaz de incidir na agenda pública sem se reduzir à ocupação de cadeiras. A tensão não é meramente estratégica; ela ilumina modalidades de comportamento político pouco capturadas por métricas eleitorais, mas decisivas.

O ponto mais áspero da tarde foi a pergunta que orienta o estudo: por que Sueli Carneiro, com tamanho capital organizativo, manteve distância da disputa direta por cargos e do jogo eleitoral? Vagner não ofereceu respostas fechadas. Apresentou, em vez disso, hipóteses de trabalho: um ceticismo em relação à centralização do sistema político brasileiro; o trânsito de Filosofia para Pedagogia ao longo de três décadas; e uma aposta estratégica nos movimentos como lócus de transformação.

Para iluminar esse ceticismo, o professor arriscou um paralelo interpretativo incomum: Tavares Bastos (século XIX), frequentemente associado à descentralização e ao federalismo, como chave para ler um “autonomismo” presente no modo de ação de Sueli. Não se trata de filiação direta, afinal, Sueli não é apresentada como leitora de Tavares Bastos, mas de um espelho teórico para discutir formas de fazer política de maneira descentralizada, advinda da inspiração também americanista da ativista. Em outra direção, apareceu também Abdias Nascimento e o pan-africanismo como horizonte de articulação transnacional. A combinação não fecha um retrato definitivo, mas abre frentes: até que ponto a crítica de Sueli ao “jogo centralizado” das instituições explica sua refratariedade à política eleitoral? E como isso reconfigura o comportamento político-eleitoral de grupos com os quais ela dialoga?

Ao fim, fica um convite discreto: não valeria a pena tentar recuperar um universalismo poroso, tecido no encontro como o desses estudantes neste espaço de pesquisa, dos movimentos com as instituições, das diferenças entre si? E, quem sabe, não seja justamente nessa fricção que se forjaram respostas mais largas, capazes de unir sem apagar, de vincular sem domesticar: um universal que nasce do diálogo e só se sustenta quando encontra o outro.

 

 

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