Por Marcio Junior é editor do Voto Positivo
Em situação atípica em muitos espaços de
pesquisa e rincões acadêmicos no mundo, a Fundação Casa de Rui Barbosa, em
Botafogo, se viu invadida por estudantes do Colégio Estadual Professora
Jeannette de Souza Coelho Mannarino, de Campo Grande. Os adolescentes,
moradores desta Zona Oeste profunda, foram participar no dia 18 de agosto do
encontro conduzido pelo Prof. Vagner Gomes, professor do próprio colégio,
doutorando pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e colunista do
Voto Positivo. O encontro foi promovido pelo pesquisador da Casa, Julio Aurélio
Vianna Lopes.
No conteúdo, advindo de sua pesquisa de doutoramento em curso, Vagner apresentou Sueli Carneiro como liderança ativista cuja obra tensiona o lugar comum que reduz “política” à disputa de cargos e à representação formal. Nascida em 1950, formada em Filosofia (USP) e doutora no início dos anos 2000 (na Pedagogia), Sueli fundou em 1988 o Geledés – Instituto da Mulher Negra; o ano coincide com a Constituinte e ajuda a situar seu ativismo num momento de rearranjo institucional no país. Essa temporalidade não é mero detalhe, pois ela aponta uma gramática de ação capaz de pressionar por meio de ativismo social, por fora da mediação eleitoral.
Ao distinguir movimento negro (misto) e
feminismo negro, o professor ressaltou o duplo enfrentamento proposto por Sueli
(racismo e sexismo) e a demarcação do sujeito político “mulher negra” como
condição de visibilidade. Entre as formulações projetadas, duas sintetizam o
eixo do argumento: “o racismo é um sistema de dominação, exploração e exclusão
que exige resistência sistemática e organização política” e “ser mulher negra é
experimentar uma condição de asfixia social”.
Levando em consideração estas provocações conhecidas
de Sueli, parte da exposição foi dedicada a mapear a relação entre ativismo e
esfera institucional. De um lado, a Constituição de 1988 e a emergência de uma
bancada negra com nomes como Benedita da Silva, Vicentinho, Carlos Alberto de
Oliveira (Caó) e Paulo Paim; de outro, a ênfase de Sueli em organização social
autônoma, capaz de incidir na agenda pública sem se reduzir à ocupação de
cadeiras. A tensão não é meramente estratégica; ela ilumina modalidades de
comportamento político pouco capturadas por métricas eleitorais, mas decisivas.
O ponto mais áspero da tarde foi a pergunta
que orienta o estudo: por que Sueli Carneiro, com tamanho capital organizativo,
manteve distância da disputa direta por cargos e do jogo eleitoral? Vagner não
ofereceu respostas fechadas. Apresentou, em vez disso, hipóteses de trabalho:
um ceticismo em relação à centralização do sistema político brasileiro; o
trânsito de Filosofia para Pedagogia ao longo de três décadas; e uma aposta
estratégica nos movimentos como lócus de transformação.
Para iluminar esse ceticismo, o professor
arriscou um paralelo interpretativo incomum: Tavares Bastos (século XIX),
frequentemente associado à descentralização e ao federalismo, como chave para
ler um “autonomismo” presente no modo de ação de Sueli. Não se trata de
filiação direta, afinal, Sueli não é apresentada como leitora de Tavares
Bastos, mas de um espelho teórico para discutir formas de fazer política de
maneira descentralizada, advinda da inspiração também americanista da ativista.
Em outra direção, apareceu também Abdias Nascimento e o pan-africanismo como
horizonte de articulação transnacional. A combinação não fecha um retrato
definitivo, mas abre frentes: até que ponto a crítica de Sueli ao “jogo
centralizado” das instituições explica sua refratariedade à política eleitoral?
E como isso reconfigura o comportamento político-eleitoral de grupos com os
quais ela dialoga?
Ao fim, fica um convite discreto: não valeria
a pena tentar recuperar um universalismo poroso, tecido no encontro como o
desses estudantes neste espaço de pesquisa, dos movimentos com as instituições,
das diferenças entre si? E, quem sabe, não seja justamente nessa fricção que se
forjaram respostas mais largas, capazes de unir sem apagar, de vincular sem
domesticar: um universal que nasce do diálogo e só se sustenta quando encontra
o outro.
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