Folha de S. Paulo
Livros ensinam que autoritarismo na região é
engrenagem cultural que se reinventa em diferentes épocas
Houve uma época em que se consolidou na América
Latina uma tradição literária peculiar: a dos chamados "romances
de ditador". Não foram poucos os escritores que se deixaram fascinar (e
assombrar, às vezes, ao mesmo tempo) pelo vínculo cultural e político que se
estabelecia entre povos inteiros e líderes carismáticos, temidos e venerados.
Entre as obras mais destacadas desse ciclo está "O Senhor Presidente" (1946, ed. Mundareu), do Nobel guatemalteco Miguel Ángel Asturias. Nela, a brutalidade de um regime repressivo é narrada a partir da história de uma pessoa em situação de rua que, sem querer, causa a morte de um coronel.
O nome do país e do ditador não são ditas de
modo explícito, mas tudo leva a crer que se trata do regime de Manuel Estrada
Cabrera, que governou a Guatemala com mão de ferro de 1898 a 1920, com uma
série de eleições fraudulentas.
Outras obras fundamentais dessa tradição são:
"Eu o Supremo" (1974, ed. Pinard), do paraguaio Augusto Roa Bastos, e
"A Festa do Bode" (2000, ed.Mandarin), do peruano Mario
Vargas Llosa, outro Nobel.
No primeiro, Roa Bastos mergulha na figura de
José Gaspar Rodríguez de Francia, que governou o Paraguai de 1814 a 1840 de
modo isolacionista para se defender de vizinhos poderosos. Transformou-se em
alegoria do poder absoluto na região.
Já Vargas Llosa decidiu reconstruir a era de
Rafael Trujillo, ditador da República Dominicana de 1930 a 1938 e de 1942 a
1952, tendo ainda governado de modo indireto nos períodos de 1938 a 1942 e de
1952 a 1961, usando líderes que ele mesmo colocava no poder e manipulava.
Seu regime é responsabilizado por dezenas de
milhares de mortes. Inimigos políticos eram atirados no mar.
Cinco décadas atrás, a esse cânone se
juntaria sua obra mais importante: "O Outono do Patriarca (1975, Record),
do mais célebre entre os Nobel da região, Gabriel
García Márquez.
A obra é a mais ousada dessas novelas. Ao
contrário das que se apoiavam em figuras históricas reais, Gabo, como Gabriel
García Márquez também é conhecido, construiu um ditador arquetípico, sem nome e
feito de pedaços de muitos outros. Um general eterno, que morre e ressuscita,
que governa um país fictício, imóvel num tempo circular. É a ficção levada ao
limite para mostrar que o autoritarismo não é só um regime, mas uma atmosfera
que envenena a linguagem, a memória e o futuro.
Esses livros mostram como a literatura foi
capaz de decifrar as patologias políticas do continente. Asturias revelou a
sombra paranoica de Estrada Cabrera; Roa Bastos mostrou como Francia esteve
presente no defensivismo paraguaio desde então; Vargas Llosa desnudou o trauma
de Trujillo; García Márquez inventou o ditador eterno.
Todos, à sua maneira, demonstraram que o
autoritarismo latino-americano é mais do que uma sucessão de governos: é uma
engrenagem cultural que se reinventa em diferentes épocas.
Em tempos em que líderes personalistas
continuam a ameaçar a democracia —Bukele, Ortega, Bolsonaro, Evo Morales,
Rafael Correa e Daniel Noboa,
entre outros—, o cinquentenário de "O Outono do Patriarca" ganha
relevância.
Ele nos lembra que líderes que podem encantar
e seduzir são muitos e estão sempre prestes a aparecer. Só não podemos dizer
que não fomos avisados.
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