domingo, 3 de agosto de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Brasil deve entender por que saiu do Mapa da Fome

O Globo

Se não identificar as políticas que deram certo, país poderá voltar em breve à vexatória lista da FAO

É boa a notícia que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) tenha retirado o Brasil do Mapa da Fome, depois de três anos integrando essa lista vergonhosa. No período entre 2022 e 2024, menos de 2,5% da população brasileira apresentou risco de subnutrição ou de falta de acesso a alimentação suficiente. Significa que o problema foi resolvido de forma definitiva? Por certo, não. Trata-se de um retrato dos últimos três anos, que pode mudar para pior, como já mudou outras vezes.

O passado recente mostra que a linha é tênue. Em 2014, o país celebrou ter deixado pela primeira vez o Mapa da Fome, permanecendo assim até 2018. Mas, no período 2019-2020-2021, as condições se deterioraram, e o Brasil retornou. “Em primeiro lugar, é preciso dizer que a gente melhorou. Saímos da crise aguda”, diz Laura Müller Machado, professora de gestão pública do Insper. “Mas o grande problema é que não sabemos exatamente as políticas públicas que tiraram o país do Mapa da Fome”, completa.

Sabe-se que o Bolsa Família, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) tiveram papel relevante. A exata contribuição de cada um, porém, é um mistério. Conhecer e documentar as estratégias que estão dando certo é fundamental para continuar combatendo a fome nos lugares onde ela persiste.

Estar fora do Mapa da Fome não quer dizer que o problema foi erradicado. O relatório da ONU não especifica o percentual exato da população brasileira em risco de subnutrição, apenas que está abaixo de 2,5%. Há, portanto, um contingente que pode chegar próximo de 5,3 milhões que não se alimenta de forma suficiente.

Por ora, o governo só está preocupado em se promover. A saída do Mapa da Fome foi rapidamente incluída na propaganda oficial. Como era esperado, o Ministério do Desenvolvimento Social atribuiu a melhoria do cenário a decisões políticas que “priorizaram a redução da pobreza, o estímulo à geração de emprego e renda, o apoio à agricultura familiar, o fortalecimento da alimentação escolar e o acesso à alimentação saudável”. Nenhuma ênfase a pesquisas detalhadas e independentes para saber o que deu certo e o que não deu.

Não se pode perder de vista que, com sua política econômica errática e a conhecida resistência ao controle de gastos, o governo Luiz Inácio Lula da Silva tem contribuído para manter a inflação fora da meta, o que afeta o custo de vida de todos, incluindo a parcela da população em risco de subnutrição. Inflação alta é um dos fatores que mais dificultam o acesso aos alimentos.

O Brasil investe um volume grande de recursos em programas sociais. Como mostrou reportagem do GLOBO, já existem mais de 2 mil iniciativas similares ao Bolsa Família espalhadas por diferentes estados e cidades do país. A atenção aos mais vulneráveis é um avanço conjunto da sociedade brasileira, mas o risco de duplicidades, ineficiências ou de falta de foco é alto. Cada real desperdiçado condena mais brasileiros à miséria e à subnutrição.

Evitar que o Brasil volte à vexatória lista da FAO e erradicar a fome exige a busca continuada por dados que expliquem os efeitos positivos, nulos ou negativos de políticas públicas. É preciso manter as ações comprovadamente bem-sucedidas e ir além, lançando o olhar para os que ainda estão à sombra dos programas sociais.

Da festa dos livros em Paraty para as listas das obras mais vendidas

O Globo

A 23ª edição da Flip termina hoje esbanjando popularidade e influência sobre o mercado livreiro

Desde o ano de sua criação, em 2003, a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) chamou a atenção como sinônimo de literatura e, de forma mais ampla, de lazer. O sucesso retumbante da edição que termina hoje em Paraty reforça o papel de destaque do evento na cultura brasileira e também na agenda de escritores nacionais e estrangeiros. Mais uma vez, um público fiel, caloroso e ávido por novidades encheu as ruas da cidade fluminense do século XVII, patrimônio mundial pela Unesco.

De porto de embarque para Portugal do ouro trazido de Minas Gerais, o lugar se converteu em escala cobiçada por escritores interessados no contato com leitores e em impulsionar a venda de seus livros. São inúmeros os casos de aumentos significativos em tiragens após passagens marcantes pelo evento. “Autores que têm a capacidade de performar ao vivo crescem muito durante a Flip. O carisma seduz a plateia, é como um rastilho de pólvora que se espalha. A performance do autor fala tão alto quando o próprio livro”, disse ao GLOBO o ex-curador da festa literária Flávio Moura.

Um dos escritores estrangeiros que se tornaram mais conhecidos após uma Flip é o angolano José Eduardo Agualusa, hoje colunista do GLOBO. Ele foi pela primeira vez a Paraty em 2004. O encontro começou com as atenções voltadas para nomes como Isabel Allende (“A casa dos espíritos”), Margaret Atwood (“O conto da aia”), Ian McEwan (“Reparação”) e Paul Auster (“Trilogia de Nova York”). A Flip, porém, permite grande e longa proximidade e interação entre autores e leitores, que podem se estender das palestras a conversas nas ruas de pedras, bares e restaurantes.

Agualusa não deixou passar a oportunidade. À época, Luis Fernando Verissimo escreveu no GLOBO que Agualusa “conseguiu brilhar ao lado de Caetano Veloso”. O autor de “Vendedor de passados” e “Teoria geral do esquecimento” credita à Flip, e a Caetano, a merecida presença no mercado editorial brasileiro. “Vou a muitos festivais, mas nenhum se compara à Flip. É realmente uma festa. A Flip tem o que nenhum festival internacional consegue produzir: o público brasileiro. As pessoas te abraçam nas ruas, você vira um pop star”, diz Agualusa. Vários escritores brasileiros também saíram do evento bem mais famosos do que quando chegaram à cidade.

O autor homenageado da 23ª edição foi o poeta curitibano Paulo Leminski (1944-1989). A festa começou na quarta-feira com uma homenagem de Arnaldo Antunes no Auditório da Matriz. Grande pergunta: quem foram os escritores que viraram sensação neste ano? Os candidatos são a francesa Neige Sinno, o marfinense GauZ’, a mexicana Cristina Rivera Garza, o italiano Sandro Veronesi, a amazonense Verenilde Pereira, o linguista curitibano Caetano Galindo e, claro, Valter Hugo Mãe e Rosa Montero, que já merecem o título de paratienses honorários. Para ter certeza, é preciso esperar o fim da repercussão da festa nas redes sociais, nos clubes de leitura e nos cursos de escrita espalhados por todo o Brasil.

Chantagem de Trump não melhora situação de Lula

Folha de S. Paulo

  • Datafolha revela que continua ruim a avaliação do petista e acirrada a disputa pelo Planalto em 2026
  • Ao não fazer um governo de conciliação com público centrista que votou nele em 2022, presidente agora tem margem de manobra reduzida

A crise desencadeada pela chantagem de Donald Trump contra o Brasil até agora não melhorou, a contrapelo do que alguns previam, a popularidade do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nem as perspectivas de reeleição do presidente no pleito de outubro de 2026.

A bateria de perguntas realizadas pelo Datafolha com uma amostra representativa do eleitorado nacional, três semanas após Trump anunciar o tarifaço sobre as exportações brasileiras por razões políticas, revela um quadro complexo da reação à inusitada e gravosa agressão estrangeira.

Dos entrevistados, 57% repudiam a tentativa do governante dos EUA de interferir no julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por tentativa de golpe de Estado. Mas o que configura certa surpresa é uma parcela volumosa, de 36%, apoiar o chefe da Casa Branca na motivação declarada para a sanção econômica.

Outro indício da camada de gelo fino sobre a qual caminha a política brasileira é o fato de 45% concordarem que Bolsonaro é perseguido e injustiçado. Apoiam a medida de impedir a entrada do ministro Alexandre de Moraes nos EUA 47% dos consultados.

A manutenção da má avaliação de seu governo —40% continuam tachando-o de ruim ou péssimo— e as simulações de desempenho eleitoral sobre o pleito de outubro de 2026 completam o diagnóstico de que a situação política do presidente Luiz Inácio Lula da Silva não melhorou após o achaque do chefe da Casa Branca.

Neste último aspecto, ressalta a elevada rejeição a uma provável candidatura do presidente à reeleição, com 47% dos entrevistados declarando que não votariam no petista de jeito nenhum. Lula lidera com folga nos cenários de primeiro turno, mas nos de segundo turno a sua folga é mínima em algumas hipóteses.

Enquanto há tumulto para definir se haverá —e, nesse caso, de quem será— a candidatura única da oposição à direita, isso parece mudar pouco o fato de que o nome que lograr passar para o segundo turno, qualquer que seja ele, tende a ser competitivo.

Isso ocorre porque a população parece continuar tão dividida quanto se mostrou nas eleições presidenciais de 2022. Cerca de metade confia no presidente Lula, enquanto a outra metade o rejeita. É a típica situação em que movimentos tênues de eleitores centristas definem o vencedor.

Esse cenário já estava claro no início do mandato e recomendava que Lula fizesse um governo de conciliação com algumas pautas dos eleitores não petistas que circunstancialmente votaram nele naquela eleição. Mas temas como a prudência orçamentária e a modernização da economia foram desprezados na sua terceira passagem pela Presidência.

Agora a margem de manobra do presidente se estreitou a ponto de não conseguir tirar vantagem de um fato que seria potencialmente benéfico para ele. Fica a lição de que, quanto mais Lula marchar para a esquerda, menor ficará sua chance de reeleição.

Consumo de drogas não é caso de polícia

Folha de S. Paulo

  • Redução de registros de posse e uso é bem-vinda; Congresso precisa debater legalização de psicoativos leves
  • Ocorrências policiais de porte e consumo pessoal caíram 26% de 2023 a 2024, enquanto as de tráfico subiram apenas 0,4% no período

Entre 2023 e 2024, o número de ocorrências policiais de posse e uso de drogas no Brasil caiu 26%, de 176,3 mil para 131,2 mil. A queda é positiva, já que o consumo de psicoativos deve ser tratado como questão de saúde, não criminal.

Os dados, divulgados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública em julho, revelam discrepâncias regionais. A redução foi puxada por Amazonas (53%), Minas Gerais (52%) e Roraima (39%), mas houve alta em Amapá (16%), Paraíba (7%) e Paraná (6%). Por se tratar de tema multifatorial, as razões para o fenômeno ainda não são claras.

Em junho do ano passado, o Supremo Tribunal Federal descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal e fixou a quantidade de até 40 gramas ou seis plantas fêmeas para diferenciar o usuário do traficante.

Mas, como a pesquisa ora divulgada não especifica o tipo de droga em cada ocorrência policial e o período de vigência da medida do STF em 2024 foi curto, é cedo para estabelecer causalidade entre a diminuição dos registros e a decisão do Supremo.

Importante ressaltar que a redução dos casos de posse e uso não veio acompanhada de aumento das ocorrências policiais de tráfico, que apresentaram alta de apenas 0,4% durante o mesmo período. Ou seja, não há evidências de que parte do consumo não registrado teria sido enquadrado como tráfico.

É boa notícia que essa migração não tenha ocorrido. Como a Lei de Drogas, de 2006, não estabelece critérios objetivos de diferenciação entre usuários e traficantes, muitos suspeitos eram colocados na segunda categoria, mesmo sem conexão com organizações criminosas que comercializam entorpecentes.

Dado que a pena para tráfico é elevada, essa lacuna no diploma, aliada ao pendor punitivista do Judiciário, gerou um salto no número de encarcerados no Brasil.

Espera-se que essa trajetória de diminuição de ocorrências policiais de posse e uso se mantenha. Entretanto o sistema de justiça precisa acelerar a revisão dos casos dos que já foram condenados por porte ou consumo pessoal de maconha. É desumano manter pessoas presas por uma atividade já descriminalizada pela mais alta corte do país.

Ademais, já passa da hora de o Congresso Nacional reavaliar o ordenamento vigente, a partir de dados técnicos e experiências internacionais, para legalizar drogas leves.

A sociedade não está mais segura com usuários atrás das grades, e o punitivismo só dificulta o tratamento daqueles que desenvolvem dependência.

Uma ode à miséria crônica

O Estado de S. Paulo

Enquanto Lula gasta saliva e dinheiro público em propaganda para vender que, graças a ele, o País saiu do Mapa da Fome, milhões de brasileiros ainda vivem sem a mínima dignidade

O Brasil saiu oficialmente do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). E o presidente Lula da Silva, como era previsível, transformou esse dado em peça de propaganda sem nem tentar disfarçar o vezo eleitoreiro. O que, na realidade, significa essa mudança de status do País no triênio 2022-2024? A resposta honesta é uma só: um mero alívio estatístico que nem remotamente apaga a cruel realidade de milhões de brasileiros que ainda vivem em situação de insegurança alimentar, ou seja, sem acesso regular a alimentos – e, ademais, a condições mínimas para uma vida digna, como água tratada e esgotamento sanitário.

A propaganda ufanista do Palácio do Planalto, veiculada em horário nobre na TV, diz mais sobre a desfaçatez de Lula de manipular a realidade em nome de suas pretensões eleitorais do que sobre as supostas conquistas de seu governo no combate à fome e à miséria.

De fato, no triênio, o Brasil registrou menos de 2,5% de sua população em risco de subnutrição ou de falta de acesso a alimentação suficiente, indicador da FAO para determinar se um país está ou não no Mapa da Fome. Entretanto, segundo a mesma organização, há cerca de 7 milhões de brasileiros (3,4% da população) em situação de insegurança alimentar “severa” – falta de capacidade para consumo de três refeições por dia – e outros 28,5 milhões (13,5%) convivendo com insegurança alimentar “moderada” ou “grave” – o que significa, respectivamente, incerteza quanto à capacidade para obter alimentos no futuro e convívio com a fome em algum período do ano.

Como se vê, não há o que celebrar. Qualquer festejo a despeito dessa renitente indignidade soa como uma ode à miséria crônica a que está submetida uma parcela expressiva de brasileiros – para não dizer como falta de vergonha na cara.

Para piorar, Lula padece de amnésia seletiva. O presidente da República, convenientemente, esqueceu de mencionar na milionária propaganda do governo que o que afundou milhões de brasileiros no Mapa da Fome foi a profunda recessão ocasionada pela incúria da sra. Dilma Rousseff quando esteve na Presidência. Além disso, ficou implícito na peça governamental que o País só saiu do Mapa da Fome porque o petista derrotou Jair Bolsonaro na eleição de 2022. Em primeiro lugar, a melhora dos indicadores de uma administração para outra foi observada dentro da margem de erro estabelecida pela própria FAO. Em segundo lugar, é de justiça reconhecer que a pandemia, ocorrida no governo Bolsonaro, provocou aumento dos níveis de pobreza e fome não só no Brasil, como no mundo inteiro.

Portanto, quando atribui a “conquista”, chamemos assim, exclusivamente a seu plano “Brasil Sem Fome”, Lula disfarça um problema que nem de longe foi resolvido – malgrado o PT ter governado o País por 16 anos nas últimas duas décadas. Estar no Mapa da Fome é vergonhoso. Mas simplesmente não estar não reflete a complexidade da miríade de dificuldades por que passam milhões de brasileiros dia sim, outro também. Não há dinheiro nem marqueteiro que deem conta de manipular essa verdade factual aos olhos de quem não foi cegado pela idolatria ao demiurgo petista.

Aquela peça de propaganda eleitoral antecipada tinha o único objetivo de promover a imagem pessoal de Lula e de seu governo. Mais grave, porém, é o fato de que o presidente dá sinais inequívocos de que não está nem um pouco interessado na construção de um ambiente macroeconômico que estimule o crescimento real do País e, consequentemente, a geração de emprego e renda melhores para mais brasileiros – a única saída sustentável para o problema da fome, pois alimentos há de sobra.

Tratar a insegurança alimentar como uma oportunidade de autopromoção é coisa de governo indecente. E é ainda mais indigno quando a empulhação é patrocinada por um governo que alardeia seu suposto compromisso com a justiça social. O País está longe de resolver seus problemas estruturais, e o combate à fome passa necessariamente por investimentos contínuos em educação básica, saúde, habitação e saneamento. Tirar o Brasil do Mapa da Fome, no papel, não é o mesmo que garantir que nenhum brasileiro – nenhum – jamais volte a se angustiar sem saber quando será sua próxima refeição.

Trump, o fora da lei

O Estado de S. Paulo

Seu furor protecionista não ameaça só o livre comércio, mas o Estado de Direito. Judiciário dos EUA tem a chance de restaurar as prerrogativas do Congresso e o respeito à Constituição

A Corte de Apelações do Circuito Federal dos Estados Unidos ouviu na semana passada os argumentos finais sobre a legalidade das tarifas impostas por Donald Trump a pretexto de uma “emergência nacional”. O caso, movido por empresas importadoras e uma coalizão de Estados, é mais que uma disputa tributária: trata-se de um teste decisivo sobre os limites do poder presidencial. E, por extensão, uma batalha sobre o futuro do Estado de Direito no país.

As tarifas fazem parte do infame regime batizado de “Dia da Libertação”, anunciado em abril, que impôs uma alíquota de 10% sobre praticamente todas as importações, com aumentos adicionais para países como Índia (25%) ou Brasil (50%). Para justificar a manobra, o governo recorreu à Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional (Ieepa, na sigla em inglês), criada em 1977 para permitir sanções econômicas em casos de ameaças extraordinárias vindas do exterior. O problema: o déficit comercial americano – invocado como emergência – é tudo, menos extraordinário. Como apontaram os próprios juízes, trata-se de um “fenômeno persistente há meio século”.

Em maio, a Corte de Comércio Internacional já havia concluído que o presidente ultrapassou os limites da Ieepa ao usá-la para redesenhar, unilateralmente, a estrutura tarifária do país. A decisão foi suspensa pela instância superior, que agora analisa o caso. Durante as audiências, o ceticismo foi evidente: “É difícil enxergar como o Congresso teria pretendido dar ao presidente autoridade irrestrita para rasgar a tabela tarifária que levou anos para ser construída”, disse o juiz Timothy Dyk. O argumento do governo – de que o termo “regular importações” implicitamente autoriza a criação indiscriminada de tarifas – é um abuso sem precedentes. Nenhum outro presidente, em mais de quatro décadas de vigência da Ieepa, ousou tanto.

A Constituição é cristalina: compete ao Congresso o poder de legislar sobre tarifas. A delegação dessa prerrogativa ao Executivo, quando ocorre, deve ser explícita, limitada e vinculada a procedimentos específicos. A interpretação maximalista de Trump não apenas atropela o Legislativo, como desafia os fundamentos do sistema de freios e contrapesos. Aí reside o verdadeiro perigo. As tarifas são o sintoma. A doença é o projeto de um Executivo hipertrofiado que reivindica poderes imperiais.

Desde seu primeiro mandato, Trump vem sistematicamente testando os limites institucionais: declarou emergências para construir um muro fronteiriço sem aprovação orçamentária; desafiou o Congresso ao se apropriar da Guarda Nacional da Califórnia; ameaçou juízes e promotores; sugeriu que seu adversário político merecia “pena de morte” – isso sem falar na tentativa de obliterar a transferência de poder, instando manifestantes a invadir o Congresso para impedir a ratificação das urnas em 6 de janeiro de 2021. Em seus atos e palavras, Trump vê as instituições democráticas não como garantias, mas como obstáculos.

O caso das tarifas sintetiza esse ethos autoritário: um presidente que usa poderes de guerra para taxar tênis canadenses e brinquedos alemães, que trata o comércio como instrumento de chantagem e que vê em cada desacordo diplomático uma emergência nacional. E tudo com efeitos econômicos devastadores. Empresas alertam para o aumento de preços e para a desorganização das cadeias de suprimentos. Grupos como a U. S. Chamber of Commerce e a Consumer Technology Association ingressaram na ação denunciando o impacto sobre investimentos, empregos e inflação.

Não se trata, portanto, apenas de uma disputa sobre políticas comerciais. Trata-se de impedir que um presidente transforme o livre comércio – e a própria Constituição – em reféns de seu voluntarismo. Mais cedo ou mais tarde a questão precisará ser solucionada pela Suprema Corte. O desfecho do processo poderá definir os limites do Executivo nos anos por vir. Que a Justiça se recorde de que, numa democracia digna desse nome, o presidente não pode fabricar “emergências” para contornar o Congresso e suspender o império da lei.

Demagogia ao volante

O Estado de S. Paulo

Ministro quer acabar com obrigatoriedade de treinamento prévio para tirar habilitação

O Ministério dos Transportes pretende acabar com a obrigatoriedade de aulas de condução nas chamadas autoescolas para quem deseja obter Carteira Nacional de Habilitação (CNH) das categorias A (motocicletas) e B (veículos de passeio). O objetivo seria “democratizar” o acesso à carteira de motorista, segundo informou o ministro Renan Filho.

Em princípio, é sempre bem-vinda qualquer medida tendente a eliminar intermediários compulsórios nas relações sociais mais corriqueiras. O cartorialismo é uma das faces mais antigas e renitentes do nosso atraso.

Contudo, do modo como foi apresentada, a ideia do ministro Renan Filho é imprudente, num país que já registra alarmantes índices de letalidade no trânsito em razão da imperícia de motoristas e motoqueiros, grande parte dos quais sem habilitação. Facilitar o acesso à carteira de habilitação sem exigir treinamento profissional prévio significa, na prática, aumentar significativamente a possibilidade de acidentes.

A alegação de que países como Inglaterra e Japão dispensaram esse treinamento prévio para conceder habilitação não serve como argumento. Enquanto o trânsito no Brasil vem registrando mais de 15 mortos por 100 mil habitantes ano após ano, o Japão e o Reino Unido registram pouco menos de 3 por 100 mil. A diferença, óbvia, é que o Brasil tem fiscalização frouxa, incapaz de tirar das ruas os motoristas inabilitados ou despreparados. É lícito imaginar que sem a obrigatoriedade de treinamento profissional prévio, por pior que seja, haverá ainda mais acidentes.

Mas a demagogia fala mais alto num governo desesperado para ganhar a simpatia de uma fatia robusta do eleitorado que trabalha por conta própria e vive às turras com os governos petistas. Não surpreende que o ministro Renan Filho tenha dito que um dos objetivos da medida seria ajudar os mais pobres a terem acesso à carteira de habilitação e, assim, conseguirem trabalhar como motoristas ou motoqueiros.

De fato, há toda uma indústria montada em torno da emissão de licença para dirigir, o que encarece o processo e, não raro, resulta em corrupção. Mas nada disso muda o fato de que é preciso exigir dos candidatos a motorista ou motociclista que tenham preparo mínimo, com conhecimento das regras de trânsito e de manejo do veículo, para serem habilitados.

O ministro Renan Filho disse à Folha de S.Paulo que o treinamento pode ser dado pelo “irmão mais velho”, um claro incentivo à imprudência, pois o “irmão mais novo” teria de dirigir sem habilitação, o que é ilegal, e num carro sem as devidas adaptações para aulas, como são os carros de autoescola, que podem ser freados pelo instrutor.

É por essas e outras que a ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, correu às redes sociais para dizer que a ideia “é do ministro Renan” e que ainda precisava ser discutida no governo, porque, afinal, “dirigir exige muita responsabilidade”. Sábias palavras.

Oxalá seja só mais uma iniciativa voluntarista de um ministro ávido por ajudar o presidente Lula a conquistar eleitores ariscos. Do contrário, caso prospere, será uma imensa irresponsabilidade.

Inteligência artificial e o futuro

Correio Braziliense

Em sua obra póstuma Brief answers to the big questions, Hawking previu que a aprimoração da IA pode levar a humanidade a ser simplesmente ignorada e mesmo colocada em segundo plano, sendo então descartada como uma espécie superada

Ainda não temos a exata medida da revolução trazida pela inteligência artificial (IA). O que se sabe até agora vem de previsões, a maioria repleta de interrogações e de sinais de mau agouro sobre essa nova tecnologia. De fato, o século 21 parece que será moldado pela IA em múltiplos aspectos. Cientistas respeitados, como o físico britânico Stephen Hawking, alertam para o perigo que a humanidade enfrentará caso a IA venha a adquirir vontade própria aliada a uma competência extrema e sobre-humana capaz, segundo ele, de representar uma ameaça à própria existência humana sobre o planeta.

Em sua obra póstuma Brief answers to the big questions, Hawking previu que a aprimoração da IA pode levar a humanidade a ser simplesmente ignorada e mesmo colocada em segundo plano, sendo então descartada como uma espécie superada. O fato é que a IA colocou o homem numa espécie de encruzilhada decisiva entre a salvação e a destruição. A questão é como estabelecer uma espécie de regulação ética e desenvolvimento responsável para a IA quando se sabe que a espécie humana é guiada por desejos — um deles o desejo pelo poder e pela dominação.

Desse modo, estaríamos numa encruzilhada do tipo dialética, alimentando uma tecnologia que, no futuro, irá simplesmente nos destruir sem remorsos, sem choro nem vela. Talvez, estejamos inventando um novo tipo de pólvora ou bomba atômica que, mais cedo ou mais tarde, irá explodir a todos. Nas últimas quatro décadas, Peter Diamandis, empresário, médico e engenheiro, fundador da X Prize Foundation e da Singularity University, vem tentando entender que tecnologias vão moldar este século. Segundo ele, em pouco mais de uma década, o mundo tal qual o conhecemos hoje será totalmente irreconhecível. A principal ferramenta responsável por essa mudança será justamente a IA.

Neste mês, Peter Diamandis estará presente no Rio Innovation Week (RIW) falando sobre esse tema. Ao contrário de Hawking, ele  é um otimista em relação ao futuro com a ajuda da IA. O que temos em mãos é que a  IA, como toda grande revolução tecnológica da história, é ambivalente. Pode ser instrumento de dominação ou de libertação, dependendo de como a humanidade escolher usá-la.

Vejamos algumas das possibilidades concretas e positivas que a IA já começou a trazer. A medicina personalizada e cura de doenças é uma dessas esperanças. A IA está revolucionando a medicina com diagnósticos precoces mais precisos do que os realizados por médicos, detectando câncer, doenças neurodegenerativas e patologias raras com maior exatidão. Com o avanço de tecnologias como o machine learning, será possível desenvolver terapias personalizadas, criadas para o perfil genético de cada paciente, e prever surtos epidêmicos antes mesmo de se alastrarem. 

Na educação, em vez de um modelo de ensino industrial, que trata todos os alunos como iguais, a IA permitirá a criação de ambientes educacionais altamente personalizados, que se adaptam ao ritmo, estilo de aprendizagem e interesses de cada estudante. Isso pode levar à inclusão de populações tradicionalmente marginalizadas, como adultos analfabetos, pessoas com deficiência e comunidades remotas. 

Também na redução drástica da pobreza, há esperanças. Se associada a políticas públicas inteligentes, a IA pode significar maior acesso a bens, serviços e oportunidades e uma redistribuição mais justa da riqueza produzida, abrindo caminho para a redução da pobreza extrema em muitas regiões do mundo.

Na proteção ao meio ambiente, pode ser utilizada para prever desastres naturais com mais antecedência, otimizar o uso de recursos naturais, monitorar ecossistemas ameaçados e desenvolver novas formas de energia limpa. Algoritmos estão sendo usados para combater o desmatamento na Amazônia e para analisar os impactos das mudanças climáticas em tempo real.

Na governança inteligente, poderá ser responsável por tornar a gestão pública mais eficiente, transparente e orientada por dados reais. A corrupção poderá ser reduzida com sistemas de auditoria automatizados, e o planejamento urbano, a saúde pública e a segurança poderão ser otimizados com base em análises profundas e imparciais. 

No entanto, nada disso será alcançado caso a IA venha a cair em mãos erradas. Algoritmos enviesados podem reforçar injustiças; sistemas autônomos de armas já estão sendo testados em zonas de conflito; e há o risco de concentração de poder nas mãos de poucas corporações ou Estados que dominem essa tecnologia. Por isso, mais do que discutir se devemos parar ou avançar, o centro da questão está no "como avançar".

Ética, regulação internacional, educação pública sobre tecnologia e a formação de uma consciência coletiva global são elementos indispensáveis para garantir que a IA seja uma ferramenta de emancipação, e não de escravidão digital. Assim como aconteceu com as conquistas do fogo, da eletricidade e da energia nuclear, a IA é uma ferramenta. Não é boa nem má em si mesma. Tudo dependerá daquilo que faremos com ela. A pergunta que fica é: seremos capazes de guiar essa revolução com sabedoria ou seremos guiados por ela rumo à obsolescência? A resposta, por ora, ainda está em nossas mãos.

3 de agosto: um marco para a redemocratização do País

O Povo (CE)

A data é muito mais do que um registro no calendário: é válida como um relevante lembrete da importância de proteger a liberdade de expressão e de combater qualquer forma de censura ou cerceamento da liberdade. Deve ser, pois, um momento de reflexão acerca do papel da sociedade na defesa da democracia e dos direitos fundamentais

O dia 3 de agosto é considerado um marco histórico para a democracia do País. Nesse dia, em 1988, a Assembleia Nacional Constituinte brasileira aprovava o fim da censura e da tortura e garantia a liberdade de expressão intelectual e de imprensa, elementos cruciais que fazem parte da Constituição de 1988. Desse modo, a data é celebrada como o marco do fim da censura no Brasil, um período de restrição à liberdade de expressão durante o regime militar.

É preciso lembrar sempre para não esquecer o horror que marcou o regime militar (1964-1985), com a prática comum da censura e da tortura, tendo a liberdade de expressão sendo cerceada por meio de diversas formas, como censura prévia e controle da mídia. Assim, o dia 3 de agosto foi representado pela votação do texto que estabeleceu o fim da censura na Assembleia Constituinte, constituindo-se um símbolo da luta pela liberdade de expressão no Brasil.

A data é considerada um símbolo de extrema importância para o processo de redemocratização da política brasileira depois do fim da ditadura militar. A Assembleia Constituinte, que fora instalada no ano anterior, redigia no texto constitucional os artigos que cessaram a censura e a tortura no País, e reestabelecia a liberdade de expressão para todos os cidadãos. Também garantia o livre exercício do jornalismo em território nacional.

Sabe-se que a função da censura era calar as opiniões contrárias ao governo ou que manifestassem avaliações que fossem de encontro à gestão vigente. A verdade do regime militar era a que prevalecia. Outra forma de colocá-la em prática e atender aos interesses do governo era por meio da violência, como prisões arbitrárias e sequestro político, além do uso comum da tortura - em suas diversas maneiras - para procedimentos interrogatórios.

A data é muito mais do que um registro no calendário: é válida como um relevante lembrete da importância de proteger a liberdade de expressão e de combater qualquer forma de censura ou cerceamento da liberdade. Deve ser, pois, um momento de reflexão acerca do papel da sociedade na defesa da democracia e dos direitos fundamentais.

A cronologia da censura no Brasil, nesse período, começou em 9 de fevereiro de 1967, quando foi instituída a Lei nº 5.250 ou Lei da Imprensa, que restringia a liberdade de expressão. Em 1968, no dia 13 de dezembro, foi instituído o Ato Inconstitucional nº 5 (AI-5), que suspendeu as garantias constitucionais e institucionalizou a tortura no País. Um ano depois, em 29 de setembro, o Decreto-Lei nº 898 ou Lei de Segurança Nacional (LSN) foi elaborada para proteger o Estado contra um "inimigo interno". Finalmente, em 21 de janeiro de 1970, o Decreto-Lei nº 1.077 instituiu a censura prévia, por meio da qual uma equipe de censores permanecia na redação dos jornais e das revistas para decidir o que poderia ou não ser publicado.

Desse modo, a Assembleia Nacional Constituinte, responsável por elaborar a nova Constituição, foi um marco na redemocratização do Brasil. A Constituição de 1988, promulgada em outubro do mesmo ano, consagrou a liberdade de expressão como um direito fundamental, vedando a censura e a tortura. É essa democracia, conquistada sob o sangue e a dor de muitos, que devemos defender todos os dias, prezando pelos direitos fundamentais e cidadãos..

 

 

 

 

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