Brasil deve entender por que saiu do Mapa da Fome
O Globo
Se não identificar as
políticas que deram certo, país poderá voltar em breve à vexatória lista da FAO
É boa a notícia que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) tenha retirado o Brasil do Mapa da Fome, depois de três anos integrando essa lista vergonhosa. No período entre 2022 e 2024, menos de 2,5% da população brasileira apresentou risco de subnutrição ou de falta de acesso a alimentação suficiente. Significa que o problema foi resolvido de forma definitiva? Por certo, não. Trata-se de um retrato dos últimos três anos, que pode mudar para pior, como já mudou outras vezes.
O passado recente mostra que a linha é tênue. Em 2014, o país celebrou ter deixado pela primeira vez o Mapa da Fome, permanecendo assim até 2018. Mas, no período 2019-2020-2021, as condições se deterioraram, e o Brasil retornou. “Em primeiro lugar, é preciso dizer que a gente melhorou. Saímos da crise aguda”, diz Laura Müller Machado, professora de gestão pública do Insper. “Mas o grande problema é que não sabemos exatamente as políticas públicas que tiraram o país do Mapa da Fome”, completa.
Sabe-se que o Bolsa Família,
o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação
Escolar (Pnae) tiveram papel relevante. A exata contribuição de cada um, porém,
é um mistério. Conhecer e documentar as estratégias que estão dando certo é
fundamental para continuar combatendo a fome nos lugares onde ela persiste.
Estar fora do Mapa da Fome
não quer dizer que o problema foi erradicado. O relatório da ONU não
especifica o percentual exato da população brasileira em risco de subnutrição,
apenas que está abaixo de 2,5%. Há, portanto, um contingente que pode chegar
próximo de 5,3 milhões que não se alimenta de forma suficiente.
Por ora, o governo só está
preocupado em se promover. A saída do Mapa da Fome foi rapidamente incluída na
propaganda oficial. Como era esperado, o Ministério do Desenvolvimento Social
atribuiu a melhoria do cenário a decisões políticas que “priorizaram a redução
da pobreza, o estímulo à geração de emprego e renda, o apoio à agricultura
familiar, o fortalecimento da alimentação escolar e o acesso à alimentação
saudável”. Nenhuma ênfase a pesquisas detalhadas e independentes para saber o
que deu certo e o que não deu.
Não se pode perder de vista
que, com sua política econômica errática e a conhecida resistência ao controle
de gastos, o governo Luiz Inácio Lula da Silva tem contribuído para manter a
inflação fora da meta, o que afeta o custo de vida de todos, incluindo a
parcela da população em risco de subnutrição. Inflação alta é um dos fatores
que mais dificultam o acesso aos alimentos.
O Brasil investe um volume
grande de recursos em programas sociais. Como
mostrou reportagem do GLOBO, já existem mais de 2 mil iniciativas similares ao
Bolsa Família espalhadas por diferentes estados e cidades do país.
A atenção aos mais vulneráveis é um avanço conjunto da sociedade brasileira,
mas o risco de duplicidades, ineficiências ou de falta de foco é alto. Cada
real desperdiçado condena mais brasileiros à miséria e à subnutrição.
Evitar que o Brasil volte à
vexatória lista da FAO e erradicar a fome exige a busca continuada por dados
que expliquem os efeitos positivos, nulos ou negativos de políticas públicas. É
preciso manter as ações comprovadamente bem-sucedidas e ir além, lançando o
olhar para os que ainda estão à sombra dos programas sociais.
Da festa dos livros em
Paraty para as listas das obras mais vendidas
O Globo
A 23ª edição da Flip termina
hoje esbanjando popularidade e influência sobre o mercado livreiro
Desde o ano de sua criação,
em 2003, a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) chamou a atenção como
sinônimo de literatura e, de forma mais ampla, de lazer. O sucesso retumbante
da edição que termina hoje em Paraty reforça o papel de destaque do evento na
cultura brasileira e também na agenda de escritores nacionais e estrangeiros.
Mais uma vez, um público fiel, caloroso e ávido por novidades encheu as ruas da
cidade fluminense do século XVII, patrimônio mundial pela Unesco.
De porto de embarque para
Portugal do ouro trazido de Minas Gerais, o lugar se converteu em escala
cobiçada por escritores interessados no contato com leitores e em impulsionar a
venda de seus livros. São inúmeros os casos de aumentos significativos em tiragens
após passagens marcantes pelo evento. “Autores que têm a capacidade de
performar ao vivo crescem muito durante a Flip. O carisma seduz a plateia, é
como um rastilho de pólvora que se espalha. A performance do autor fala tão
alto quando o próprio livro”, disse
ao GLOBO o ex-curador da festa literária Flávio Moura.
Um dos escritores
estrangeiros que se tornaram mais conhecidos após uma Flip é o angolano José
Eduardo Agualusa, hoje colunista do GLOBO. Ele foi pela primeira vez a Paraty
em 2004. O encontro começou com as atenções voltadas para nomes como Isabel
Allende (“A casa dos espíritos”), Margaret Atwood (“O conto da aia”), Ian
McEwan (“Reparação”) e Paul Auster (“Trilogia de Nova York”). A Flip, porém,
permite grande e longa proximidade e interação entre autores e leitores, que
podem se estender das palestras a conversas nas ruas de pedras, bares e
restaurantes.
Agualusa não deixou passar a
oportunidade. À época, Luis Fernando Verissimo escreveu no GLOBO que Agualusa
“conseguiu brilhar ao lado de Caetano Veloso”. O autor de “Vendedor de
passados” e “Teoria geral do esquecimento” credita à Flip, e a Caetano, a merecida
presença no mercado editorial brasileiro. “Vou a muitos festivais, mas nenhum
se compara à Flip. É realmente uma festa. A Flip tem o que nenhum festival
internacional consegue produzir: o público brasileiro. As pessoas te abraçam
nas ruas, você vira um pop star”, diz Agualusa. Vários escritores brasileiros
também saíram do evento bem mais famosos do que quando chegaram à cidade.
O autor homenageado da 23ª
edição foi o poeta curitibano Paulo Leminski (1944-1989). A festa começou na
quarta-feira com uma homenagem de Arnaldo Antunes no Auditório da Matriz.
Grande pergunta: quem foram os escritores que viraram sensação neste ano? Os
candidatos são a francesa Neige Sinno, o marfinense GauZ’, a mexicana Cristina
Rivera Garza, o italiano Sandro Veronesi, a amazonense Verenilde Pereira, o
linguista curitibano Caetano Galindo e, claro, Valter Hugo Mãe e Rosa Montero,
que já merecem o título de paratienses honorários. Para ter certeza, é preciso
esperar o fim da repercussão da festa nas redes sociais, nos clubes de leitura
e nos cursos de escrita espalhados por todo o Brasil.
Chantagem de Trump não
melhora situação de Lula
Folha de S. Paulo
- Datafolha revela que continua ruim a
avaliação do petista e acirrada a disputa pelo Planalto em 2026
- Ao não fazer um governo de conciliação
com público centrista que votou nele em 2022, presidente agora tem margem
de manobra reduzida
A crise desencadeada pela
chantagem de Donald Trump contra
o Brasil até agora não melhorou, a contrapelo do que alguns previam, a
popularidade do governo Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) nem as
perspectivas de reeleição do presidente no pleito de outubro de 2026.
A bateria de perguntas
realizadas pelo Datafolha com
uma amostra representativa do eleitorado nacional, três semanas após Trump
anunciar o tarifaço sobre as exportações brasileiras por razões políticas,
revela um quadro complexo da reação à inusitada e gravosa agressão estrangeira.
Dos entrevistados, 57%
repudiam a tentativa do governante dos EUA de interferir no julgamento do
ex-presidente Jair
Bolsonaro (PL)
por tentativa de golpe de Estado. Mas o que configura certa surpresa é uma
parcela volumosa, de 36%, apoiar o chefe da Casa Branca na motivação
declarada para a sanção econômica.
Outro indício da camada de
gelo fino sobre a qual caminha a política brasileira é o fato de 45%
concordarem que Bolsonaro é perseguido e injustiçado. Apoiam a medida de
impedir a entrada do ministro Alexandre
de Moraes nos EUA 47% dos consultados.
A manutenção da má avaliação
de seu governo —40%
continuam tachando-o de ruim ou péssimo—
e as simulações de desempenho eleitoral sobre o pleito de outubro de 2026
completam o diagnóstico de que a situação política do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva não melhorou após o achaque do chefe da Casa Branca.
Neste último aspecto,
ressalta a elevada rejeição a uma provável candidatura do presidente à
reeleição, com 47% dos entrevistados declarando que não votariam no petista de
jeito nenhum. Lula lidera com folga nos cenários de primeiro turno, mas nos de
segundo turno a sua folga é mínima em algumas hipóteses.
Enquanto há tumulto para
definir se haverá —e, nesse caso, de quem será— a candidatura única da oposição
à direita, isso parece mudar pouco o fato de que o nome que lograr passar para
o segundo turno, qualquer que seja ele, tende a ser competitivo.
Isso ocorre porque a
população parece continuar tão dividida quanto se mostrou nas eleições presidenciais
de 2022. Cerca de metade confia no presidente Lula, enquanto a outra metade o
rejeita. É a típica situação em que movimentos tênues de eleitores centristas
definem o vencedor.
Esse cenário já estava claro
no início do mandato e recomendava que Lula fizesse um governo de conciliação
com algumas pautas dos eleitores não petistas que circunstancialmente votaram
nele naquela eleição. Mas temas
como a prudência orçamentária e a modernização da economia foram
desprezados na sua terceira passagem pela Presidência.
Agora a margem de manobra do
presidente se estreitou a ponto de não conseguir tirar vantagem de um fato que
seria potencialmente benéfico para ele. Fica a lição de que, quanto mais Lula
marchar para a esquerda, menor ficará sua chance de reeleição.
Consumo de drogas não é caso
de polícia
Folha de S. Paulo
- Redução de registros de posse e uso é
bem-vinda; Congresso precisa debater legalização de psicoativos leves
- Ocorrências policiais de porte e consumo
pessoal caíram 26% de 2023 a 2024, enquanto as de tráfico subiram apenas
0,4% no período
Entre 2023 e 2024, o número
de ocorrências policiais de posse e uso de drogas no
Brasil caiu
26%, de 176,3 mil para 131,2 mil. A queda é positiva, já que o consumo de
psicoativos deve ser tratado como questão de saúde, não
criminal.
Os dados, divulgados pelo
Anuário Brasileiro de Segurança Pública em julho, revelam discrepâncias
regionais. A redução foi puxada por Amazonas (53%), Minas Gerais (52%) e
Roraima (39%), mas houve alta em Amapá (16%), Paraíba (7%) e Paraná (6%). Por
se tratar de tema multifatorial, as razões para o fenômeno ainda não são
claras.
Em junho do ano passado, o
Supremo Tribunal Federal descriminalizou o porte de maconha para
uso pessoal e fixou a
quantidade de até 40 gramas ou seis plantas fêmeas para diferenciar o
usuário do traficante.
Mas, como a pesquisa ora
divulgada não especifica o tipo de droga em cada ocorrência policial e o
período de vigência da medida do STF em 2024
foi curto, é cedo para estabelecer causalidade entre a diminuição dos registros
e a decisão do Supremo.
Importante ressaltar que a
redução dos casos de posse e uso não veio acompanhada de aumento das
ocorrências policiais de tráfico, que apresentaram alta de apenas 0,4% durante
o mesmo período. Ou seja, não há evidências de que parte do consumo não registrado
teria sido enquadrado como tráfico.
É boa notícia que essa
migração não tenha ocorrido. Como a Lei de Drogas, de 2006, não estabelece
critérios objetivos de diferenciação entre usuários e traficantes, muitos
suspeitos eram colocados na segunda categoria, mesmo sem conexão com
organizações criminosas que comercializam entorpecentes.
Dado que a pena para tráfico
é elevada, essa lacuna no diploma, aliada ao pendor punitivista do Judiciário,
gerou um salto no número de encarcerados no Brasil.
Espera-se que essa
trajetória de diminuição de ocorrências policiais de posse e uso se mantenha.
Entretanto o sistema de justiça precisa acelerar
a revisão dos casos dos que já foram condenados por porte ou consumo
pessoal de maconha. É desumano manter pessoas presas por uma atividade já
descriminalizada pela mais alta corte do país.
Ademais, já passa da hora de
o Congresso
Nacional reavaliar o ordenamento vigente, a partir de dados técnicos e
experiências internacionais, para legalizar drogas leves.
A sociedade não está mais segura com usuários atrás das grades, e o punitivismo só dificulta o tratamento daqueles que desenvolvem dependência.
Uma ode à miséria crônica
O Estado de S. Paulo
Enquanto Lula gasta saliva e
dinheiro público em propaganda para vender que, graças a ele, o País saiu do
Mapa da Fome, milhões de brasileiros ainda vivem sem a mínima dignidade
O Brasil saiu oficialmente
do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a
Agricultura (FAO). E o presidente Lula da Silva, como era previsível,
transformou esse dado em peça de propaganda sem nem tentar disfarçar o vezo
eleitoreiro. O que, na realidade, significa essa mudança de status do País no
triênio 2022-2024? A resposta honesta é uma só: um mero alívio estatístico que
nem remotamente apaga a cruel realidade de milhões de brasileiros que ainda
vivem em situação de insegurança alimentar, ou seja, sem acesso regular a
alimentos – e, ademais, a condições mínimas para uma vida digna, como água
tratada e esgotamento sanitário.
A propaganda ufanista do
Palácio do Planalto, veiculada em horário nobre na TV, diz mais sobre a
desfaçatez de Lula de manipular a realidade em nome de suas pretensões
eleitorais do que sobre as supostas conquistas de seu governo no combate à fome
e à miséria.
De fato, no triênio, o
Brasil registrou menos de 2,5% de sua população em risco de subnutrição ou de
falta de acesso a alimentação suficiente, indicador da FAO para determinar se
um país está ou não no Mapa da Fome. Entretanto, segundo a mesma organização,
há cerca de 7 milhões de brasileiros (3,4% da população) em situação de
insegurança alimentar “severa” – falta de capacidade para consumo de três
refeições por dia – e outros 28,5 milhões (13,5%) convivendo com insegurança
alimentar “moderada” ou “grave” – o que significa, respectivamente, incerteza
quanto à capacidade para obter alimentos no futuro e convívio com a fome em
algum período do ano.
Como se vê, não há o que
celebrar. Qualquer festejo a despeito dessa renitente indignidade soa como uma
ode à miséria crônica a que está submetida uma parcela expressiva de
brasileiros – para não dizer como falta de vergonha na cara.
Para piorar, Lula padece de
amnésia seletiva. O presidente da República, convenientemente, esqueceu de
mencionar na milionária propaganda do governo que o que afundou milhões de
brasileiros no Mapa da Fome foi a profunda recessão ocasionada pela incúria da
sra. Dilma Rousseff quando esteve na Presidência. Além disso, ficou implícito
na peça governamental que o País só saiu do Mapa da Fome porque o petista
derrotou Jair Bolsonaro na eleição de 2022. Em primeiro lugar, a melhora dos
indicadores de uma administração para outra foi observada dentro da margem de
erro estabelecida pela própria FAO. Em segundo lugar, é de justiça reconhecer
que a pandemia, ocorrida no governo Bolsonaro, provocou aumento dos níveis de
pobreza e fome não só no Brasil, como no mundo inteiro.
Portanto, quando atribui a
“conquista”, chamemos assim, exclusivamente a seu plano “Brasil Sem Fome”, Lula
disfarça um problema que nem de longe foi resolvido – malgrado o PT ter
governado o País por 16 anos nas últimas duas décadas. Estar no Mapa da Fome é
vergonhoso. Mas simplesmente não estar não reflete a complexidade da miríade de
dificuldades por que passam milhões de brasileiros dia sim, outro também. Não
há dinheiro nem marqueteiro que deem conta de manipular essa verdade factual
aos olhos de quem não foi cegado pela idolatria ao demiurgo petista.
Aquela peça de propaganda
eleitoral antecipada tinha o único objetivo de promover a imagem pessoal de
Lula e de seu governo. Mais grave, porém, é o fato de que o presidente dá
sinais inequívocos de que não está nem um pouco interessado na construção de um
ambiente macroeconômico que estimule o crescimento real do País e,
consequentemente, a geração de emprego e renda melhores para mais brasileiros –
a única saída sustentável para o problema da fome, pois alimentos há de sobra.
Tratar a insegurança alimentar como uma oportunidade de autopromoção é coisa de governo indecente. E é ainda mais indigno quando a empulhação é patrocinada por um governo que alardeia seu suposto compromisso com a justiça social. O País está longe de resolver seus problemas estruturais, e o combate à fome passa necessariamente por investimentos contínuos em educação básica, saúde, habitação e saneamento. Tirar o Brasil do Mapa da Fome, no papel, não é o mesmo que garantir que nenhum brasileiro – nenhum – jamais volte a se angustiar sem saber quando será sua próxima refeição.
Trump, o fora da lei
O Estado de S. Paulo
Seu furor protecionista não
ameaça só o livre comércio, mas o Estado de Direito. Judiciário dos EUA tem a
chance de restaurar as prerrogativas do Congresso e o respeito à Constituição
A Corte de Apelações do
Circuito Federal dos Estados Unidos ouviu na semana passada os argumentos
finais sobre a legalidade das tarifas impostas por Donald Trump a pretexto de
uma “emergência nacional”. O caso, movido por empresas importadoras e uma coalizão
de Estados, é mais que uma disputa tributária: trata-se de um teste decisivo
sobre os limites do poder presidencial. E, por extensão, uma batalha sobre o
futuro do Estado de Direito no país.
As tarifas fazem parte do
infame regime batizado de “Dia da Libertação”, anunciado em abril, que impôs
uma alíquota de 10% sobre praticamente todas as importações, com aumentos
adicionais para países como Índia (25%) ou Brasil (50%). Para justificar a manobra,
o governo recorreu à Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional
(Ieepa, na sigla em inglês), criada em 1977 para permitir sanções econômicas em
casos de ameaças extraordinárias vindas do exterior. O problema: o déficit
comercial americano – invocado como emergência – é tudo, menos extraordinário.
Como apontaram os próprios juízes, trata-se de um “fenômeno persistente há meio
século”.
Em maio, a Corte de Comércio
Internacional já havia concluído que o presidente ultrapassou os limites da
Ieepa ao usá-la para redesenhar, unilateralmente, a estrutura tarifária do
país. A decisão foi suspensa pela instância superior, que agora analisa o caso.
Durante as audiências, o ceticismo foi evidente: “É difícil enxergar como o
Congresso teria pretendido dar ao presidente autoridade irrestrita para rasgar
a tabela tarifária que levou anos para ser construída”, disse o juiz Timothy
Dyk. O argumento do governo – de que o termo “regular importações”
implicitamente autoriza a criação indiscriminada de tarifas – é um abuso sem
precedentes. Nenhum outro presidente, em mais de quatro décadas de vigência da
Ieepa, ousou tanto.
A Constituição é cristalina:
compete ao Congresso o poder de legislar sobre tarifas. A delegação dessa
prerrogativa ao Executivo, quando ocorre, deve ser explícita, limitada e
vinculada a procedimentos específicos. A interpretação maximalista de Trump não
apenas atropela o Legislativo, como desafia os fundamentos do sistema de freios
e contrapesos. Aí reside o verdadeiro perigo. As tarifas são o sintoma. A
doença é o projeto de um Executivo hipertrofiado que reivindica poderes
imperiais.
Desde seu primeiro mandato,
Trump vem sistematicamente testando os limites institucionais: declarou
emergências para construir um muro fronteiriço sem aprovação orçamentária;
desafiou o Congresso ao se apropriar da Guarda Nacional da Califórnia; ameaçou juízes
e promotores; sugeriu que seu adversário político merecia “pena de morte” –
isso sem falar na tentativa de obliterar a transferência de poder, instando
manifestantes a invadir o Congresso para impedir a ratificação das urnas em 6
de janeiro de 2021. Em seus atos e palavras, Trump vê as instituições
democráticas não como garantias, mas como obstáculos.
O caso das tarifas sintetiza
esse ethos autoritário: um presidente que usa poderes de
guerra para taxar tênis canadenses e brinquedos alemães, que trata o comércio
como instrumento de chantagem e que vê em cada desacordo diplomático uma
emergência nacional. E tudo com efeitos econômicos devastadores. Empresas
alertam para o aumento de preços e para a desorganização das cadeias de
suprimentos. Grupos como a U. S. Chamber of Commerce e a Consumer Technology
Association ingressaram na ação denunciando o impacto sobre investimentos,
empregos e inflação.
Não se trata, portanto, apenas de uma disputa sobre políticas comerciais. Trata-se de impedir que um presidente transforme o livre comércio – e a própria Constituição – em reféns de seu voluntarismo. Mais cedo ou mais tarde a questão precisará ser solucionada pela Suprema Corte. O desfecho do processo poderá definir os limites do Executivo nos anos por vir. Que a Justiça se recorde de que, numa democracia digna desse nome, o presidente não pode fabricar “emergências” para contornar o Congresso e suspender o império da lei.
Demagogia ao volante
O Estado de S. Paulo
Ministro quer acabar com
obrigatoriedade de treinamento prévio para tirar habilitação
O Ministério dos Transportes
pretende acabar com a obrigatoriedade de aulas de condução nas chamadas
autoescolas para quem deseja obter Carteira Nacional de Habilitação (CNH) das
categorias A (motocicletas) e B (veículos de passeio). O objetivo seria “democratizar”
o acesso à carteira de motorista, segundo informou o ministro Renan Filho.
Em princípio, é sempre
bem-vinda qualquer medida tendente a eliminar intermediários compulsórios nas
relações sociais mais corriqueiras. O cartorialismo é uma das faces mais
antigas e renitentes do nosso atraso.
Contudo, do modo como foi
apresentada, a ideia do ministro Renan Filho é imprudente, num país que já
registra alarmantes índices de letalidade no trânsito em razão da imperícia de
motoristas e motoqueiros, grande parte dos quais sem habilitação. Facilitar o
acesso à carteira de habilitação sem exigir treinamento profissional prévio
significa, na prática, aumentar significativamente a possibilidade de
acidentes.
A alegação de que países
como Inglaterra e Japão dispensaram esse treinamento prévio para conceder
habilitação não serve como argumento. Enquanto o trânsito no Brasil vem
registrando mais de 15 mortos por 100 mil habitantes ano após ano, o Japão e o
Reino Unido registram pouco menos de 3 por 100 mil. A diferença, óbvia, é que o
Brasil tem fiscalização frouxa, incapaz de tirar das ruas os motoristas
inabilitados ou despreparados. É lícito imaginar que sem a obrigatoriedade de
treinamento profissional prévio, por pior que seja, haverá ainda mais
acidentes.
Mas a demagogia fala mais
alto num governo desesperado para ganhar a simpatia de uma fatia robusta do
eleitorado que trabalha por conta própria e vive às turras com os governos
petistas. Não surpreende que o ministro Renan Filho tenha dito que um dos objetivos
da medida seria ajudar os mais pobres a terem acesso à carteira de habilitação
e, assim, conseguirem trabalhar como motoristas ou motoqueiros.
De fato, há toda uma
indústria montada em torno da emissão de licença para dirigir, o que encarece o
processo e, não raro, resulta em corrupção. Mas nada disso muda o fato de que é
preciso exigir dos candidatos a motorista ou motociclista que tenham preparo
mínimo, com conhecimento das regras de trânsito e de manejo do veículo, para
serem habilitados.
O ministro Renan Filho disse
à Folha de S.Paulo que o treinamento pode ser dado pelo “irmão
mais velho”, um claro incentivo à imprudência, pois o “irmão mais novo” teria
de dirigir sem habilitação, o que é ilegal, e num carro sem as devidas
adaptações para aulas, como são os carros de autoescola, que podem ser freados
pelo instrutor.
É por essas e outras que a
ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, correu às redes sociais
para dizer que a ideia “é do ministro Renan” e que ainda precisava ser
discutida no governo, porque, afinal, “dirigir exige muita responsabilidade”.
Sábias palavras.
Oxalá seja só mais uma
iniciativa voluntarista de um ministro ávido por ajudar o presidente Lula a
conquistar eleitores ariscos. Do contrário, caso prospere, será uma imensa
irresponsabilidade.
Inteligência artificial e o
futuro
Correio Braziliense
Em sua obra póstuma Brief
answers to the big questions, Hawking previu que a aprimoração da IA pode levar
a humanidade a ser simplesmente ignorada e mesmo colocada em segundo plano,
sendo então descartada como uma espécie superada
Ainda não temos a exata
medida da revolução trazida pela inteligência artificial (IA). O que se sabe
até agora vem de previsões, a maioria repleta de interrogações e de sinais de
mau agouro sobre essa nova tecnologia. De fato, o século 21 parece que será
moldado pela IA em múltiplos aspectos. Cientistas respeitados, como o físico
britânico Stephen Hawking, alertam para o perigo que a humanidade enfrentará
caso a IA venha a adquirir vontade própria aliada a uma competência extrema e
sobre-humana capaz, segundo ele, de representar uma ameaça à própria existência
humana sobre o planeta.
Em sua obra póstuma Brief
answers to the big questions, Hawking previu que a aprimoração da IA pode levar
a humanidade a ser simplesmente ignorada e mesmo colocada em segundo plano,
sendo então descartada como uma espécie superada. O fato é que a IA colocou o
homem numa espécie de encruzilhada decisiva entre a salvação e a destruição. A
questão é como estabelecer uma espécie de regulação ética e desenvolvimento
responsável para a IA quando se sabe que a espécie humana é guiada por desejos
— um deles o desejo pelo poder e pela dominação.
Desse modo, estaríamos numa
encruzilhada do tipo dialética, alimentando uma tecnologia que, no futuro, irá
simplesmente nos destruir sem remorsos, sem choro nem vela. Talvez, estejamos
inventando um novo tipo de pólvora ou bomba atômica que, mais cedo ou mais
tarde, irá explodir a todos. Nas últimas quatro décadas, Peter Diamandis,
empresário, médico e engenheiro, fundador da X Prize Foundation e da
Singularity University, vem tentando entender que tecnologias vão moldar este
século. Segundo ele, em pouco mais de uma década, o mundo tal qual o conhecemos
hoje será totalmente irreconhecível. A principal ferramenta responsável por
essa mudança será justamente a IA.
Neste mês, Peter Diamandis
estará presente no Rio Innovation Week (RIW) falando sobre esse tema. Ao
contrário de Hawking, ele é um otimista em relação ao futuro com a ajuda
da IA. O que temos em mãos é que a IA, como toda grande revolução tecnológica
da história, é ambivalente. Pode ser instrumento de dominação ou de libertação,
dependendo de como a humanidade escolher usá-la.
Vejamos algumas das
possibilidades concretas e positivas que a IA já começou a trazer. A medicina
personalizada e cura de doenças é uma dessas esperanças. A IA está
revolucionando a medicina com diagnósticos precoces mais precisos do que os
realizados por médicos, detectando câncer, doenças neurodegenerativas e
patologias raras com maior exatidão. Com o avanço de tecnologias como o machine
learning, será possível desenvolver terapias personalizadas, criadas para o
perfil genético de cada paciente, e prever surtos epidêmicos antes mesmo de se
alastrarem.
Na educação, em vez de um
modelo de ensino industrial, que trata todos os alunos como iguais, a IA
permitirá a criação de ambientes educacionais altamente personalizados, que se
adaptam ao ritmo, estilo de aprendizagem e interesses de cada estudante. Isso
pode levar à inclusão de populações tradicionalmente marginalizadas, como
adultos analfabetos, pessoas com deficiência e comunidades remotas.
Também na redução drástica
da pobreza, há esperanças. Se associada a políticas públicas inteligentes, a IA
pode significar maior acesso a bens, serviços e oportunidades e uma
redistribuição mais justa da riqueza produzida, abrindo caminho para a redução da
pobreza extrema em muitas regiões do mundo.
Na proteção ao meio
ambiente, pode ser utilizada para prever desastres naturais com mais
antecedência, otimizar o uso de recursos naturais, monitorar ecossistemas
ameaçados e desenvolver novas formas de energia limpa. Algoritmos estão sendo
usados para combater o desmatamento na Amazônia e para analisar os impactos das
mudanças climáticas em tempo real.
Na governança inteligente,
poderá ser responsável por tornar a gestão pública mais eficiente, transparente
e orientada por dados reais. A corrupção poderá ser reduzida com sistemas de
auditoria automatizados, e o planejamento urbano, a saúde pública e a segurança
poderão ser otimizados com base em análises profundas e imparciais.
No entanto, nada disso será
alcançado caso a IA venha a cair em mãos erradas. Algoritmos enviesados podem
reforçar injustiças; sistemas autônomos de armas já estão sendo testados em
zonas de conflito; e há o risco de concentração de poder nas mãos de poucas
corporações ou Estados que dominem essa tecnologia. Por isso, mais do que
discutir se devemos parar ou avançar, o centro da questão está no "como
avançar".
Ética, regulação
internacional, educação pública sobre tecnologia e a formação de uma
consciência coletiva global são elementos indispensáveis para garantir que a IA
seja uma ferramenta de emancipação, e não de escravidão digital. Assim como
aconteceu com as conquistas do fogo, da eletricidade e da energia nuclear, a IA
é uma ferramenta. Não é boa nem má em si mesma. Tudo dependerá daquilo que
faremos com ela. A pergunta que fica é: seremos capazes de guiar essa revolução
com sabedoria ou seremos guiados por ela rumo à obsolescência? A resposta, por
ora, ainda está em nossas mãos.
3 de agosto: um marco para a
redemocratização do País
O Povo (CE)
A data é muito mais do que
um registro no calendário: é válida como um relevante lembrete da importância
de proteger a liberdade de expressão e de combater qualquer forma de censura ou
cerceamento da liberdade. Deve ser, pois, um momento de reflexão acerca do
papel da sociedade na defesa da democracia e dos direitos fundamentais
O dia 3 de agosto é
considerado um marco histórico para a democracia do País. Nesse dia, em 1988, a
Assembleia Nacional Constituinte brasileira aprovava o fim da censura e da
tortura e garantia a liberdade de expressão intelectual e de imprensa, elementos
cruciais que fazem parte da Constituição de 1988. Desse modo, a data é
celebrada como o marco do fim da censura no Brasil, um período de restrição à
liberdade de expressão durante o regime militar.
É preciso lembrar sempre
para não esquecer o horror que marcou o regime militar (1964-1985), com a
prática comum da censura e da tortura, tendo a liberdade de expressão sendo
cerceada por meio de diversas formas, como censura prévia e controle da mídia. Assim,
o dia 3 de agosto foi representado pela votação do texto que estabeleceu o fim
da censura na Assembleia Constituinte, constituindo-se um símbolo da luta pela
liberdade de expressão no Brasil.
A data é considerada um
símbolo de extrema importância para o processo de redemocratização da política
brasileira depois do fim da ditadura militar. A Assembleia Constituinte, que
fora instalada no ano anterior, redigia no texto constitucional os artigos que
cessaram a censura e a tortura no País, e reestabelecia a liberdade de
expressão para todos os cidadãos. Também garantia o livre exercício do
jornalismo em território nacional.
Sabe-se que a função da
censura era calar as opiniões contrárias ao governo ou que manifestassem
avaliações que fossem de encontro à gestão vigente. A verdade do regime militar
era a que prevalecia. Outra forma de colocá-la em prática e atender aos interesses
do governo era por meio da violência, como prisões arbitrárias e sequestro
político, além do uso comum da tortura - em suas diversas maneiras - para
procedimentos interrogatórios.
A data é muito mais do que
um registro no calendário: é válida como um relevante lembrete da importância
de proteger a liberdade de expressão e de combater qualquer forma de censura ou
cerceamento da liberdade. Deve ser, pois, um momento de reflexão acerca do
papel da sociedade na defesa da democracia e dos direitos fundamentais.
A cronologia da censura no
Brasil, nesse período, começou em 9 de fevereiro de 1967, quando foi instituída
a Lei nº 5.250 ou Lei da Imprensa, que restringia a liberdade de expressão. Em
1968, no dia 13 de dezembro, foi instituído o Ato Inconstitucional nº 5 (AI-5),
que suspendeu as garantias constitucionais e institucionalizou a tortura no
País. Um ano depois, em 29 de setembro, o Decreto-Lei nº 898 ou Lei de
Segurança Nacional (LSN) foi elaborada para proteger o Estado contra um
"inimigo interno". Finalmente, em 21 de janeiro de 1970, o
Decreto-Lei nº 1.077 instituiu a censura prévia, por meio da qual uma equipe de
censores permanecia na redação dos jornais e das revistas para decidir o que
poderia ou não ser publicado.
Desse modo, a Assembleia
Nacional Constituinte, responsável por elaborar a nova Constituição, foi um
marco na redemocratização do Brasil. A Constituição de 1988, promulgada em
outubro do mesmo ano, consagrou a liberdade de expressão como um direito fundamental,
vedando a censura e a tortura. É essa democracia, conquistada sob o sangue e a
dor de muitos, que devemos defender todos os dias, prezando pelos direitos
fundamentais e cidadãos..
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