domingo, 3 de agosto de 2025

O tarifaço e as eleições - Miguel Caballero

O Globo

Conciliar a aliança com o bolsonarismo e o apoio do establishment é um falso dilema para Tarcísio

É comum presidentes com problemas de aprovação da gestão apelarem à figura do inimigo externo, inventado ou real, para recuperar popularidade. Lula e Donald Trump são antagônicos na política, mas nem por encomenda o brasileiro poderia receber uma oportunidade tão à feição como o tarifaço imposto pelo americano. A agressão foi tão descabida que o governo nem precisou se esforçar para demonstrar seu absurdo. No mérito econômico, é claramente injusta, vista a balança comercial entre os países. Na forma, uma tentativa autoritária de interferência na Justiça alheia em benefício de aliados, sejam os políticos bolsonaristas, sejam as big techs americanas.

Lula e o governo brasileiro têm até aqui reagido de forma correta. Foram firmes na defesa da soberania nacional e apontaram a falta de lógica econômica, sem se recusar a negociar. A reprovação majoritária da população ao tarifaço medida nas primeiras pesquisas de opinião ainda pode se refletir em alguma melhora na avaliação do governo nas próximas rodadas. O “modo Trump” de anunciar uma pancada de efeitos tectônicos e depois recuar ao menos parcialmente permite ao presidente brasileiro se sair com a imagem de que não se dobrou à investida, como colheu em elogios na imprensa internacional.

São sem dúvidas pontos positivos para Lula, mas, ainda a um ano do início da corrida eleitoral, a tendência é que tudo isso importe pouco quando a campanha começar. Ou importe menos do que os efeitos reais na economia daquilo que sobrar das tarifas após as negociações. Podem não ser nada desprezíveis, e a União Europeia terminou com um acordo comercial desvantajoso, por exemplo. Além disso, um ano é bastante tempo para Trump impor novos problemas ao Brasil — e o governo produzir os seus próprios.

Na direita, os estilhaços da bomba trumpista provocam ferimentos de graus distintos nos principais personagens. A dobrada de aposta na radicalização liderada dos Estados Unidos pelo deputado Eduardo Bolsonaro espanta apoios fora do bolsonarismo e reduz as chances do projeto de anistia no Congresso. Poderá, em pouco tempo, parecer só desespero diante da iminente prisão do pai, previsível desfecho da ação penal sobre a tentativa de golpe de Estado, dada a profusão de provas contra os acusados.

Convém não subestimar os efeitos da cadeia sobre qualquer pessoa. Jair Bolsonaro terá bastante tempo para refletir que sua chance de deixar a prisão será a vitória de um aliado na eleição presidencial, com o conseguinte indulto. Quanto mais se aproximar a condenação, e ainda mais depois que estiver preso, o ex-presidente perderá força na negociação de seu apoio a qualquer nome da direita. Uma coisa é desenhar cenários de uma candidatura da família para preservar seu cacife eleitoral e influenciar a escolha de quem realmente vai às urnas contra Lula. Outra é levar a aventura adiante quando nada importará mais do que deixar a cadeia, ainda que na forma de uma confortável instalação militar.

De longe o favorito a receber esse apoio é Tarcísio de Freitas, para quem o tarifaço talvez deixe menos danos do que pode ter parecido à primeira vista. Hesitante entre a defesa do padrinho político e a da economia paulista, o governador se viu sob pressão dos dois lados e sob a análise de que enfrenta o dilema de conciliar a aliança com um estrato golpista da política brasileira e o papel de representante da elite empresarial (ou da direita tradicional, do establishment, como se queira chamar). É um falso dilema ou, no mínimo, um dilema que ele não precisará resolver, basta “jogar parado”.

Preso, Bolsonaro precisará mais de Tarcísio do que o inverso e terá menos força para se incomodar com a “fantasia de moderado” a ser vestida pelo governador em campanha. O tempo também corre a favor de Tarcísio no outro lado da equação. Toda vez que faz acenos ao padrinho, é instado pelo empresariado a se isolar do bolsonarismo, sob o argumento de que a parceria com golpistas é um constrangimento. À parte a redundância de que constrangimento só acomete quem se sente constrangido, o governador entende que pode ignorar esses apelos e não fará gestos contra Bolsonaro. Ele sabe que não está ameaçado de perder esse apoio porque, embora o discurso de rechaço incondicional à fatia antidemocrática da política seja bonito, aos olhos dessa elite Lula e o PT seguirão sendo mal maior.

Sua participação na eleição, assim, dependerá menos dos apoios que já estão garantidos. E mais do peso que fatores externos, como o grau de recuperação que Lula conseguirá dar a seu governo, terão sobre sua decisão de trocar o favoritismo da reeleição estadual pela incerteza presidencial.

*Miguel Caballero é editor do Impresso do GLOBO

 

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