O Globo
Conciliar a aliança com o
bolsonarismo e o apoio do establishment é um falso dilema para Tarcísio
É comum presidentes com problemas de aprovação da gestão apelarem à figura do inimigo externo, inventado ou real, para recuperar popularidade. Lula e Donald Trump são antagônicos na política, mas nem por encomenda o brasileiro poderia receber uma oportunidade tão à feição como o tarifaço imposto pelo americano. A agressão foi tão descabida que o governo nem precisou se esforçar para demonstrar seu absurdo. No mérito econômico, é claramente injusta, vista a balança comercial entre os países. Na forma, uma tentativa autoritária de interferência na Justiça alheia em benefício de aliados, sejam os políticos bolsonaristas, sejam as big techs americanas.
Lula e o governo brasileiro
têm até aqui reagido de forma correta. Foram firmes na defesa da soberania
nacional e apontaram a falta de lógica econômica, sem se recusar a negociar. A
reprovação majoritária da população ao tarifaço medida nas primeiras pesquisas
de opinião ainda pode se refletir em alguma melhora na avaliação do governo nas
próximas rodadas. O “modo Trump” de anunciar uma pancada de efeitos tectônicos
e depois recuar ao menos parcialmente permite ao presidente brasileiro se sair
com a imagem de que não se dobrou à investida, como colheu em elogios na
imprensa internacional.
São sem dúvidas pontos
positivos para Lula, mas, ainda a um ano do início da corrida eleitoral, a
tendência é que tudo isso importe pouco quando a campanha começar. Ou importe
menos do que os efeitos reais na economia daquilo que sobrar das tarifas após as
negociações. Podem não ser nada desprezíveis, e a União Europeia terminou com
um acordo comercial desvantajoso, por exemplo. Além disso, um ano é bastante
tempo para Trump impor novos problemas ao Brasil — e o governo produzir os seus
próprios.
Na direita, os estilhaços da
bomba trumpista provocam ferimentos de graus distintos nos principais
personagens. A dobrada de aposta na radicalização liderada dos Estados Unidos
pelo deputado Eduardo Bolsonaro espanta apoios fora do bolsonarismo e reduz as
chances do projeto de anistia no Congresso. Poderá, em pouco tempo, parecer só
desespero diante da iminente prisão do pai, previsível desfecho da ação penal
sobre a tentativa de golpe de Estado, dada a profusão de provas contra os
acusados.
Convém não subestimar os
efeitos da cadeia sobre qualquer pessoa. Jair Bolsonaro terá bastante tempo
para refletir que sua chance de deixar a prisão será a vitória de um aliado na
eleição presidencial, com o conseguinte indulto. Quanto mais se aproximar a
condenação, e ainda mais depois que estiver preso, o ex-presidente perderá
força na negociação de seu apoio a qualquer nome da direita. Uma coisa é
desenhar cenários de uma candidatura da família para preservar seu cacife
eleitoral e influenciar a escolha de quem realmente vai às urnas contra Lula.
Outra é levar a aventura adiante quando nada importará mais do que deixar a
cadeia, ainda que na forma de uma confortável instalação militar.
De longe o favorito a
receber esse apoio é Tarcísio de Freitas, para quem o tarifaço talvez deixe
menos danos do que pode ter parecido à primeira vista. Hesitante entre a defesa
do padrinho político e a da economia paulista, o governador se viu sob pressão
dos dois lados e sob a análise de que enfrenta o dilema de conciliar a aliança
com um estrato golpista da política brasileira e o papel de representante da
elite empresarial (ou da direita tradicional, do establishment, como se queira
chamar). É um falso dilema ou, no mínimo, um dilema que ele não precisará
resolver, basta “jogar parado”.
Preso, Bolsonaro precisará
mais de Tarcísio do que o inverso e terá menos força para se incomodar com a
“fantasia de moderado” a ser vestida pelo governador em campanha. O tempo
também corre a favor de Tarcísio no outro lado da equação. Toda vez que faz acenos
ao padrinho, é instado pelo empresariado a se isolar do bolsonarismo, sob o
argumento de que a parceria com golpistas é um constrangimento. À parte a
redundância de que constrangimento só acomete quem se sente constrangido, o
governador entende que pode ignorar esses apelos e não fará gestos contra
Bolsonaro. Ele sabe que não está ameaçado de perder esse apoio porque, embora o
discurso de rechaço incondicional à fatia antidemocrática da política seja
bonito, aos olhos dessa elite Lula e o PT seguirão sendo mal maior.
Sua participação na eleição,
assim, dependerá menos dos apoios que já estão garantidos. E mais do peso que
fatores externos, como o grau de recuperação que Lula conseguirá dar a seu
governo, terão sobre sua decisão de trocar o favoritismo da reeleição estadual
pela incerteza presidencial.
*Miguel Caballero é editor
do Impresso do GLOBO
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