Folha de S. Paulo
Apoio na Câmara dos
Deputados a Trump põe em dúvida o sentido de que 'o patriotismo é o último
refúgio do canalha'
Um incidente na Câmara dos Deputados em Brasília põe em dúvida o sentido do conhecido aforisma "o patriotismo é o último refúgio do canalha". É que, apesar da indignação coletiva contra o ataque desvairado de Trump ao Brasil, um pequeno grupo alçou na Câmara dos Deputados enorme bandeira em homenagem ao agressor. O autor da frase, Samuel Johnson, literato inglês do século 18, queria dizer que o "scoundrel" (canalha), sem justificativa moral para suas ações, recorre malandramente ao motivo fácil do patriotismo.
O ato da camarilha esvazia o
sentido da frase: patriotismo não pode ser último refúgio de quem
implicitamente o rejeita em sua ação. Durou meia hora a exposição da sabujice
lesa-pátria, até que se tomasse a providência de retirá-la. Tarde demais. O
fato chegou às redes, o país inteirou-se da vilania impatriótica, isto é, da
exaltação a uma ameaça estrangeira de absurda intervenção no Judiciário
brasileiro, que acabou se concretizando.
Traição ao sentimento
nacional envergonha o bom senso. As lideranças do Congresso começam a cogitar de alguma
seriedade interna. Mas para o grande público fica a interrogação de como são
possíveis comportamentos tão aberrantes à liturgia do cargo, mesmo em se
considerando o estado civicamente regressivo da composição parlamentar.
Em princípio, seria
insuficiente a exclusiva atribuição do fenômeno à ultradireita, pois nem todos
os extremistas ousaram expor-se dessa maneira. Pode-se pensar no arroubo de
uma turma juvenilizada em estilo cafajeste. Jovens costumam
mostrar-se mais permissivos em companhia de pares. É a lógica das gangues, das
torcidas de futebol violentas.
Mas se trata de políticos
eleitos. Ocorre então a hipótese de uma demência coletiva manifestada como
síndrome de padrões disfuncionais de cognição e comportamento. Não figura em
manuais de psiquiatria. É um continente desconhecido, para além de motivações
apenas individualizadas, em que se age sem fundamento, por puro efeito
autodemonstrativo. No período Bolsonaro, deu-se atenção pitoresca a fenômenos dessa
natureza nas ruas e nas rodovias, quando pequenas aglomerações marchavam sem
rumo certo ou rezavam para pneu de caminhão. Voltados para as macrocausas
político-econômicas, os observadores sociais deixaram escapar, por
insignificante, a obtusa singularidade desses comportamentos. Neles se divisa
agora uma dimensão significativa, em que miúdos eventos aberrantes se conectam
a outros muito maiores numa escala continental. Ações egotistas, sem
negociação.
O ataque trumpista ao Brasil
é demencial. Os negociadores, diplomatas e empresários, atêm-se aos aspectos
econômicos das tarifas anunciadas, embora cientes da improcedência do argumento
de déficit comercial desfavorável aos EUA. Na realidade, trata-se de apelar ao senso comum. Sobra
assim o motivo de estreiteza territorial, imperial, animalizado de um indivíduo
que diz "faço porque posso". Como na fábula, o lobo fala ao cordeiro.
É a essência do terrorismo, cujos atos são inegociáveis.
Mas, neste milênio, a
suposta vítima pode se fortalecer, ao modo de minérios críticos, dentro da
cadeia produtiva global. A receita estaria na formulação de numa Grande
Política, que ponha fim à sua própria demonização por meio de um projeto
nacional coerente, em frente ampla. É a garantia de voz forte em negociação,
antídoto de canalhice, única escapatória do continente da demência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário