Correio Braziliense
A resposta brasileira
ao tarifaço não pode ser restringir ao patriotismo popular e à resiliência das
instituições, exige um projeto de desenvolvimento
A atual crise diplomática e
comercial entre o Brasil e os Estados Unidos, deflagrada pelo tarifaço de 50%
imposto pelo governo Trump sobre produtos brasileiros, não pode ser
compreendida apenas no contexto de uma disputa conjuntural. Ela reativa dilemas
históricos da formação nacional: a tensão entre um Brasil que busca a
modernização autônoma e outro que permaneceu subordinado a modelos externos,
seja pelo agrarismo conservador, seja pela industrialização tardia.
Estamos diante de uma inédita ofensiva tarifária do governo Trump, cujos objetivos não são apenas comerciais, porque adquirem um caráter político e simbólico ao tentar constranger e intimidar instituições brasileiras, principalmente o Supremo Tribunal Federal, diante do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro. Esse ataque encontra, porém, certa base de apoio político e social interno, que não deve ser subestimado.
O apoio aberto do
ex-presidente Jair Bolsonaro, de alguns governadores e setores da opinião
pública às chantagens da Casa Branca ecoa o passado do regime militar e tem por
lastro um “americanismo autoritário”, um dos traços do processo de modernização
conservadora no Brasil. Como diria o falecido sociólogo Luiz Werneck Vianna, na
história republicana, assimilamos superficialmente o liberalismo
norte-americano, sem sua alma democrática, transformando-o em instrumento
conservador e até mesmo reacionário de dominação interna.
Essa ambiguidade diante dos
EUA — ora como farol de progresso, ora como ameaça à soberania — remonta aos
anos 1930, quando pensadores como Oliveira Viana propunham uma modernização
autoritária, centrada na ordem agrária e no Estado forte. Como muitos ainda
imaginam, o campo era visto como o sustentáculo da identidade nacional e da
disciplina social. Não por acaso, setores conservadores do agronegócio hoje
ainda operam com essa lógica.
Mas o conflito político que
fratura nossa coesão social e provoca fissuras na unidade nacional não diz
respeito apenas ao agronegócio, que hoje exporta sobretudo para a China. Ele
atinge em cheio setores industrializados, como o café processado, o suco de
laranja e os produtos químicos exportados para os Estados Unidos. Isso nos
remete à divisão histórica entre os projetos de industrialização autônoma, como
o de Celso Furtado, e a industrialização dependente dos anos do “milagre
econômico”, sob a batuta de João Paulo dos Reis Velloso.
Furtado advertia que sem
reforma agrária, desenvolvimento regional e soberania tecnológica, o Brasil
seria permanentemente vulnerável às pressões externas. A questão agrária é
leite derramado, porém o desenvolvimento regional e avanço tecnológico ainda são
agendas da hora.
Projeto nacional
O tarifaço de Trump revela
essa vulnerabilidade. O Brasil de 2025 ainda exporta majoritariamente
commodities de baixo valor agregado e importa produtos de alta complexidade,
sem falar na dependência a insumos básicos para a nossa agricultura e a nossa
indústria, como fertilizantes e chips, respectivamente. Essa estrutura
regressiva nos deixa à mercê de chantagens geopolíticas como a atual. A
integração competitiva do Brasil à economia global, no qual a Embraer e a JBS
são os melhores exemplos, está apenas engatinhando. Entretanto, a
reestruturação das cadeias globais de valor, da qual o tarifaço é um ponto
crítico — no âmbito da guerra comercial dos Estados Unidos com a China, porque
não dizer, com o mundo –, pode ser também uma oportunidade.
A resposta brasileira ao
tarifaço não pode ser restringir ao patriotismo popular e à resiliência das
instituições, exige um projeto de desenvolvimento que articule soberania
política, justiça social e inserção internacional estratégica. O americanismo
no Brasil nunca foi uma simples importação de valores democráticos, mas uma
disputa interna sobre os caminhos da modernização. Nas últimas décadas, elites
políticas e econômicas oscilaram entre a dependência passiva dos EUA e
tentativas de construção de uma democracia plural e soberana.
Como disse o ex-presidente
José Sarney, “não podemos correr atrás de um doido”. Qualquer que seja o
desfecho das atuais negociações do governo Lula com a Casa Branca, estará
sujeito à imprevisibilidade e ao comportamento errático de Trump. A crise atual
mostra uma encruzilhada histórica. A reação brasileira precisa ir além do
tecnicismo no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) ou da negociação
de tarifas pontuais. É preciso construir um novo projeto nacional que articule
o campo e a cidade, a produção e o conhecimento, os interesses internos e os
vínculos externos em bases democráticas, como propõe a Constituição de 1988.
A resposta não está no retorno ao agrarismo conservador nem na rendição ao americanismo subalterno. Como dizia Celso Furtado, o subdesenvolvimento não é uma etapa, é uma armadilha. Escapar dela exige mais do que crescimento: requer imaginação política, projeto histórico e vontade coletiva. Ou seja, nossa elite política, empresarial e intelectual carece de um projeto nacional mobilizador da sociedade, como já houve em outros momentos de nossa história. O espelho norte-americano está rachado; como um país em desenvolvimento, com a 10ª economia do mundo, o Brasil precisa enxergar a si mesmo com mais lucidez e menos ilusões.
Nenhum comentário:
Postar um comentário