domingo, 3 de agosto de 2025

O espelho partido na histórica relação do Brasil com os EUA - Luiz Carlos Azedo

Correio Braziliense

A resposta brasileira ao tarifaço não pode ser restringir ao patriotismo popular e à resiliência das instituições, exige um projeto de desenvolvimento

A atual crise diplomática e comercial entre o Brasil e os Estados Unidos, deflagrada pelo tarifaço de 50% imposto pelo governo Trump sobre produtos brasileiros, não pode ser compreendida apenas no contexto de uma disputa conjuntural. Ela reativa dilemas históricos da formação nacional: a tensão entre um Brasil que busca a modernização autônoma e outro que permaneceu subordinado a modelos externos, seja pelo agrarismo conservador, seja pela industrialização tardia.

Estamos diante de uma inédita ofensiva tarifária do governo Trump, cujos objetivos não são apenas comerciais, porque adquirem um caráter político e simbólico ao tentar constranger e intimidar instituições brasileiras, principalmente o Supremo Tribunal Federal, diante do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro. Esse ataque encontra, porém, certa base de apoio político e social interno, que não deve ser subestimado.

O apoio aberto do ex-presidente Jair Bolsonaro, de alguns governadores e setores da opinião pública às chantagens da Casa Branca ecoa o passado do regime militar e tem por lastro um “americanismo autoritário”, um dos traços do processo de modernização conservadora no Brasil. Como diria o falecido sociólogo Luiz Werneck Vianna, na história republicana, assimilamos superficialmente o liberalismo norte-americano, sem sua alma democrática, transformando-o em instrumento conservador e até mesmo reacionário de dominação interna.

Essa ambiguidade diante dos EUA — ora como farol de progresso, ora como ameaça à soberania — remonta aos anos 1930, quando pensadores como Oliveira Viana propunham uma modernização autoritária, centrada na ordem agrária e no Estado forte. Como muitos ainda imaginam, o campo era visto como o sustentáculo da identidade nacional e da disciplina social. Não por acaso, setores conservadores do agronegócio hoje ainda operam com essa lógica.

Mas o conflito político que fratura nossa coesão social e provoca fissuras na unidade nacional não diz respeito apenas ao agronegócio, que hoje exporta sobretudo para a China. Ele atinge em cheio setores industrializados, como o café processado, o suco de laranja e os produtos químicos exportados para os Estados Unidos. Isso nos remete à divisão histórica entre os projetos de industrialização autônoma, como o de Celso Furtado, e a industrialização dependente dos anos do “milagre econômico”, sob a batuta de João Paulo dos Reis Velloso.

Furtado advertia que sem reforma agrária, desenvolvimento regional e soberania tecnológica, o Brasil seria permanentemente vulnerável às pressões externas. A questão agrária é leite derramado, porém o desenvolvimento regional e avanço tecnológico ainda são agendas da hora.

Projeto nacional

O tarifaço de Trump revela essa vulnerabilidade. O Brasil de 2025 ainda exporta majoritariamente commodities de baixo valor agregado e importa produtos de alta complexidade, sem falar na dependência a insumos básicos para a nossa agricultura e a nossa indústria, como fertilizantes e chips, respectivamente. Essa estrutura regressiva nos deixa à mercê de chantagens geopolíticas como a atual. A integração competitiva do Brasil à economia global, no qual a Embraer e a JBS são os melhores exemplos, está apenas engatinhando. Entretanto, a reestruturação das cadeias globais de valor, da qual o tarifaço é um ponto crítico — no âmbito da guerra comercial dos Estados Unidos com a China, porque não dizer, com o mundo –, pode ser também uma oportunidade.

A resposta brasileira ao tarifaço não pode ser restringir ao patriotismo popular e à resiliência das instituições, exige um projeto de desenvolvimento que articule soberania política, justiça social e inserção internacional estratégica. O americanismo no Brasil nunca foi uma simples importação de valores democráticos, mas uma disputa interna sobre os caminhos da modernização. Nas últimas décadas, elites políticas e econômicas oscilaram entre a dependência passiva dos EUA e tentativas de construção de uma democracia plural e soberana.

Como disse o ex-presidente José Sarney, “não podemos correr atrás de um doido”. Qualquer que seja o desfecho das atuais negociações do governo Lula com a Casa Branca, estará sujeito à imprevisibilidade e ao comportamento errático de Trump. A crise atual mostra uma encruzilhada histórica. A reação brasileira precisa ir além do tecnicismo no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) ou da negociação de tarifas pontuais. É preciso construir um novo projeto nacional que articule o campo e a cidade, a produção e o conhecimento, os interesses internos e os vínculos externos em bases democráticas, como propõe a Constituição de 1988.

A resposta não está no retorno ao agrarismo conservador nem na rendição ao americanismo subalterno. Como dizia Celso Furtado, o subdesenvolvimento não é uma etapa, é uma armadilha. Escapar dela exige mais do que crescimento: requer imaginação política, projeto histórico e vontade coletiva. Ou seja, nossa elite política, empresarial e intelectual carece de um projeto nacional mobilizador da sociedade, como já houve em outros momentos de nossa história. O espelho norte-americano está rachado; como um país em desenvolvimento, com a 10ª economia do mundo, o Brasil precisa enxergar a si mesmo com mais lucidez e menos ilusões.

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