Correio Braziliense
O Jornal Nacional precisa se
reinventar como o mediador da opinião pública na era das redes sociais. Ocorre
que o leito de formação dessa opinião está oculto na nuvem de algoritmos
No livro A Globo – Hegemonia (1965-1984),
primeiro volume da trilogia sobre a emissora, o jornalista Ernesto Rodrigues,
um ex-profissional da casa, mostra que não haveria Rede Globo sem o Jornal
Nacional. Walter Clark, chefão da Globo, convenceu um reticente Armando
Nogueira, diretor de jornalismo, a colocá-lo no ar: “Vai ser o primeiro jornal
nacional do país, um estouro”. Com aval de Roberto Marinho, a ideia era
aproveitar a rede de micro-ondas da Embratel, financiada pelo regime militar, e
atrair anunciantes.
O JN estreou em 1º de setembro de 1969, apresentado por Cid Moreira e Hilton Gomes, com censura e presença do SNI nos estúdios. A principal notícia, a posse da Junta Militar que substituiu Costa e Silva, teve apenas 46 segundos. O alargamento da Praia de Copacabana, a morte de Rocky Marciano e o gol de Pelé rumo à Copa de 1970 receberam maior cobertura. Era a regra do jogo da ditadura. Mas assim nasceu o mais importante programa da TV brasileira.
O noticiário tornou-se o carro-chefe da
Globo, fundamental na derrota da Tupi. Nas décadas seguintes, foi palco de
momentos decisivos e polêmicos, como a vergonhosa edição do debate Collor x
Lula em 1989. Passaram pela bancada Sérgio Chapelin, Celso Freitas, Carlos
Nascimento, Lillian Witte Fibe, Fátima Bernardes, Patrícia Poeta, Renata
Vasconcelos e William Bonner, que se tornaria também editor-chefe.
A transição para Bonner é detalhada no
segundo volume da trilogia, A Globo – Concorrência (1985-1999). Rodrigues
mostra como Evandro Carlos de Andrade, vindo de O Globo, assumiu a direção do
jornalismo com “autoridade imperial” e decidiu renovar a imagem do JN. Bonner,
então âncora do Jornal da Globo, foi chamado em 1996 para ocupar o posto
deixado por Cid Moreira, e inaugurar um ciclo de modernização e
reposicionamento editorial da emissora.
Na disputa interna, Carlos Nascimento, Paulo
Henrique Amorim e Eliakin Araújo, entre outros que haviam ocupado a bancada do
JN, ficaram pelo caminho. Bonner assumiu ao lado de Lillian Witte Fibe, logo
substituída por Fátima Bernardes, com quem era casado. Inspirado nos
apresentadores norte-americanos, o novo modelo exigia improviso e jogo de
cintura, rompendo com a solenidade engessada de Cid e Chapelin e, ao mesmo
tempo, com a imagem de “porta-voz” do regime militar.
Desde então, Bonner encarnou o “âncora
absoluto”, herdeiro de uma tradição de busca da qualidade e centralidade
política. Nenhum veículo de imprensa fechava sua primeira página antes da
escalada do Jornal Nacional, que pautava o que era relevante na vida do país.
Com um estilo próprio, que combinava formalidade, simpatia e improviso, Bonner
conduziu o jornal JN em momentos que marcaram a história política recente, com
intensas coberturas sobre o mensalão, a Lava Jato e a ascensão de Bolsonaro,
entre outros temas que levaram o país ao atual estado de radicalização.
Novo ciclo
Bonner foi a última grande encarnação da
Globo como “voz de autoridade”. No relato de Rodrigues, o JN ainda funcionava
como agenda diária da nação. Agora, se despede e em breve passará o bastão a
César Tralli, repórter de origem, consolidado no SP1 e no Jornal Hoje, que
também deixou à margem da estrada alguns dos grandes profissionais da emissora.
Sua imagem é de proximidade com as fontes e agilidade na apuração da notícia,
em busca de sintonia com a era digital. Diferentemente da autoridade
centralizada de Bonner, Tralli terá o desafio de dialogar com públicos
fragmentados e desconfiados.
O JN sempre foi o coração da Globo, mesmo
diante da concorrência do esporte e das novelas, em prestígio político e em
receitas comerciais. A emissora, hoje, enfrenta cortes, demissões e a perda de
hegemonia para plataformas digitais. Apostar em Tralli é uma tentativa de
preservar a tradição e a credibilidade, mas com uma linguagem nova, coloquial,
politicamente menos categórica e mais flexível. Da fundação sob Nogueira e
consolidação na ditadura, a Globo passou por diversas fases: redemocratização
com Moreira e Chapelin, modernização nos anos 1990 e a era Bonner, que se
encerra agora.
Cada uma dessas fases foi uma tentativa de
pacto com a sociedade, em sintonia com as contingências políticas das suas relações
com os governos. A saída de Bonner encerra o último desses pactos, o da
televisão como espaço central da vida pública, autônoma em relação ao poder. No
terceiro volume de sua trilogia, A Globo – Metamorfose (1999-2025),
recém-publicado, Rodrigues mostra como esse pacto se fragmenta: a centralidade
da TV cede lugar às bolhas digitais, que radicalizam a política e corroem a
confiança nos meios de comunicação de massa.
O JN deixou de ser absoluto, precisa se
reinventar como o mediador possível da era das redes sociais. O problema é que
o eixo da formação da opinião pública brasileira deixou de ser a Rede Globo, já
não tem um endereço determinado, está oculto numa nuvem de algoritmos
controlados pelas big techs.
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