domingo, 7 de setembro de 2025

O voto da barata no chinelo. Por Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

A idiotia permitiria a inclusão na política de indivíduos alienados da vida pública pelo elitismo de pensamento

Indaga um leitor: por que, na eleição de Donald Trump, a barata votou no chinelo? A pergunta resume a perplexidade de milhões com o fato de que latinos, negros, mulheres brancas (negras, não) ajudaram a instalar no poder a sua Nêmesis, entidade de vingança e ressentimento, fonte de terror e medo. E votaram cientes do paradoxo temerário, desde sempre transparente nas ameaças do autocrata-laranja.

A questão amplia-se até nós quando pesquisas recentes atestam a existência de um "bolsonarismo-raiz" de 12% no eleitorado (Instituto Ideia). Nenhuma surpresa em 26%, de não-bolsonaristas, que votam na direita. A persistência da "raiz", porém, é tão intrigante quanto os milhões simbolizados pela barata. Após exposição a céu aberto da quinta-coluna antipatriótica, o clã ex-presidencial, o réu Bolsonaro mantém-se cabo eleitoral da direita. De cada ato de traição, vexame nenhum repercute na "raiz" e seus rizomas: doença autoimune, "mente defensiva, como um condomínio fechado" (Luis Fernando Veríssimo).

No conceito de classe social e suas diferenças, nascido da racionalidade da produção, não cabe explicação razoável para a insanidade extremista emergente das máquinas de desamparo e solidão. É mais delírio de pensamento, ao modo da distorção barroca (uma perversão da forma) do que loucura como doença mental. Daí a figura do idiota, não como oligofrênico, mas sujeito de uma razão privada, distorcida.

Por mais inatual que seja a filosofia, dela partem sugestões para a iluminação do fenômeno, a saber, a idiotia como personagem conceitual (Gilles Deleuze e Félix Guattari em "O que é Filosofia?"). O idiota permitiria a inclusão na política dos indivíduos alienados da vida pública pelo elitismo de pensamento. Não exatamente o doido, portanto, mas o produto imbecilizado de uma relação difícil com o plano da existência. Na frase "a internet deu voz aos imbecis" (Umberto Eco) ressoa essa lógica. Imbecilidade, idiotia são estratégias de rejeição ao "penso, logo existo" em favor de verdades prontas e acabadas, os dogmas.

Dessa forma, uma cômoda ignorância torna-se motivo de orgulho pessoal e de ódio às ciências, artes e educação emancipadora.

Não significa que uma cultura elevada ou com grandes ideias sobre as contradições históricas tenham gerado um homem fraterno, aberto à diversidade. O nazismo contou com renomados intelectuais.

Himmler, o mentor dos campos de concentração, vangloriava-se de buscar métodos de matar que não ofendessem a tradição humanista. Sem mediação compreensiva, o sol do Iluminismo pode cegar, como hoje acontece com os sistemas de conhecimento e seus algoritmos impermeáveis às massas. O fechamento em dogmas religiosos e formas de vida regressivas funciona como autodefesa dos alienados. E grito de alerta: cristalizada em doença social, a idiotia faz o trânsito natural para as perversões facinorosas da extrema direita. Tonta de inseticida histriônico, a barata arrisca-se a atravessar o galinheiro ou vota no chinelo.

 

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