Folha de S. Paulo
A idiotia permitiria a inclusão na política
de indivíduos alienados da vida pública pelo elitismo de pensamento
Indaga um leitor: por que, na eleição de Donald Trump, a barata votou no chinelo? A pergunta resume a perplexidade de milhões com o fato de que latinos, negros, mulheres brancas (negras, não) ajudaram a instalar no poder a sua Nêmesis, entidade de vingança e ressentimento, fonte de terror e medo. E votaram cientes do paradoxo temerário, desde sempre transparente nas ameaças do autocrata-laranja.
A questão amplia-se até nós quando pesquisas
recentes atestam a
existência de um "bolsonarismo-raiz" de 12% no eleitorado
(Instituto Ideia). Nenhuma surpresa em 26%, de não-bolsonaristas, que votam na
direita. A persistência da "raiz", porém, é tão intrigante quanto os
milhões simbolizados pela barata. Após exposição a céu aberto da quinta-coluna
antipatriótica, o clã ex-presidencial, o réu
Bolsonaro mantém-se cabo eleitoral da direita. De cada ato de traição,
vexame nenhum repercute na "raiz" e seus rizomas: doença autoimune,
"mente defensiva, como um condomínio fechado" (Luis
Fernando Veríssimo).
No conceito de classe social e suas
diferenças, nascido da racionalidade da produção, não cabe explicação razoável
para a insanidade extremista emergente das máquinas de desamparo e solidão. É
mais delírio de pensamento, ao modo da distorção barroca (uma perversão da
forma) do que loucura como doença mental. Daí a figura do idiota, não como
oligofrênico, mas sujeito de uma razão privada, distorcida.
Por mais inatual que seja a filosofia, dela
partem sugestões para a iluminação do fenômeno, a saber, a idiotia como
personagem conceitual (Gilles Deleuze e Félix Guattari em "O que é
Filosofia?"). O idiota permitiria a inclusão na política dos indivíduos
alienados da vida pública pelo elitismo de pensamento. Não exatamente o doido,
portanto, mas o produto imbecilizado de uma relação difícil com o plano da
existência. Na frase "a internet deu voz aos imbecis" (Umberto Eco)
ressoa essa lógica. Imbecilidade, idiotia são estratégias de rejeição ao
"penso, logo existo" em favor de verdades prontas e acabadas, os
dogmas.
Dessa forma, uma cômoda ignorância torna-se
motivo de orgulho pessoal e de ódio às ciências, artes e educação emancipadora.
Não significa que uma cultura elevada ou com
grandes ideias sobre as contradições históricas tenham gerado um homem
fraterno, aberto à diversidade. O nazismo contou com renomados intelectuais.
Himmler, o mentor dos campos
de concentração, vangloriava-se de buscar métodos de matar que não
ofendessem a tradição humanista. Sem mediação compreensiva, o sol do Iluminismo
pode cegar, como hoje acontece com os sistemas de conhecimento e seus
algoritmos impermeáveis às massas. O fechamento em dogmas religiosos e formas
de vida regressivas funciona como autodefesa dos alienados. E grito de alerta:
cristalizada em doença social, a idiotia faz o trânsito natural para as perversões
facinorosas da extrema direita. Tonta de inseticida histriônico, a barata
arrisca-se a atravessar o galinheiro ou vota no chinelo.
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