Julgamento terá lugar na história
Por Correio Braziliense
No momento em que as democracias liberais enfrentam a ação de inimigos em diversas partes do mundo, a resposta brasileira contra os desatinos autocráticos ganha relevância ainda maior
O Brasil acompanha, em meio às comemorações dos 203 anos de independência, um evento da maior importância para a nação. Desde o último dia 2, o Supremo Tribunal Federal se debruça sobre o julgamento dos réus acusados de exercer papel crucial na trama golpista engendrada contra o regime democrático entre 2022 e 2023. Até aqui, o rito processual tem sido irretocável. Falou o juiz relator do processo, ministro Alexandre de Moraes; em seguida o procurador-geral da República, Paulo Gonet; e os advogados de defesa dos acusados. Na terça-feira, começará a vir a público o voto dos integrantes da 1ª Turma, definindo-se assim a palavra da mais alta instância do Judiciário.
A decisão da Suprema Corte acerca dos envolvidos em atos contra a ordem democrática e as insituições da República tem uma dimensão histórica. No momento em que as democracias liberais enfrentam a ação de inimigos em diversas partes do mundo, a resposta brasileira contra os desatinos autocráticos ganha relevância ainda maior. Há poucas semanas, o ministro Edson Fachin, que assumirá a presidência do STF no próximo dia 29, alertou para a gravidade da atual conjuntura. “Vivemos tempos de apreensão, com tentativas de erosão democrática e ataques à independência judicial nas Américas”, alertou em recente sessão do Conselho Nacional de Justiça.
A atuação do Judiciário na defesa dos valores democráticos constitui reação necessária para conter impulsos autoritários. Como assinalou o norte-americano Steven Levitsky, autor do best seller Como as Democracias Morrem, a ofensiva contra os tribunais constitucionais tem sido parte do manual autocrático em diversos países do mundo – de diferentes cores ideológicas, diga-se. O abuso antijudicial pode ser visto tanto em regimes de direita, como na Hungria de Victor Orban, quanto na ditadura esquerdista de Maduro na Venezuela.
Em tempos de radicalismo exacerbado, o Judiciário tem se mostrado como o sustentáculo do arcabouço democrático. Sem o mandamento constitucional, abre-se a porta para a instabilidade política. É como diagnosticou o ex-presidente da Corte Interamericana de Direito Humanos Roberto Caldas, em entrevista ao programa CB.Poder, dos Diários Associados: “O Judiciário é o poder da independência, da estabilidade. É o Poder da prudência, é o que faz jurisprudência. Essa instabilidade interessa a todos os países que querem desenvolver a democracia e combater o crime. Isso não interessa a quem pratica crimes, quem atenta contra a democracia ou quer uma democracia à sua moda”.
Conclui-se que, por razões que vão muito além do momento político, o Supremo Tribunal Federal precisa sinalizar à nação o que a Constituição Cidadã determina de punição para aqueles que a atacaram. Em nome da democracia, em nome da independência e da soberania.
Por Folha de S. Paulo
Tentativa de golpe exige punição do
ex-presidente, com equilíbrio e sem vingança
Jair
Bolsonaro (PL) fez uma escolha em
outubro de 2022. Entre preparar-se para liderar a oposição no quadriênio seguinte
e embarcar numa aventura de sucesso improvável, preferiu a segunda opção. Não
deixou escolha aos magistrados que agora o julgam a não ser condená-lo por
atentado à democracia.
Depois que acusação e defesas expuseram suas teses, ficou atestada para além de dúvida razoável a atuação do então presidente para coagir o oficialato militar a desfechar um golpe de Estado. Um arremedo de decreto de intervenção daria o verniz jurídico à quartelada concebida pela imaginação autoritária.
O assédio à caserna sustentou-se pela pressão
de falanges do candidato derrotado defronte a instalações das Forças
Armadas e pelo constrangimento nos bastidores aos generais
resistentes. Ambos os movimentos tiveram o apoio tácito ou explícito do chefe
do governo e de seu núcleo liberticida. Bolsonaro pretendeu obter pela força o que
lhe foi negado pelos votos.
Faltou a ele e a seu séquito nostálgico de
ditaduras, mas não aos então comandantes do Exército e da Aeronáutica, o
discernimento para entender que o Brasil mudou. Decorridos 40 anos desde o
restabelecimento da democracia, não resta espaço na sociedade e nas
instituições para retrocessos golpistas.
A conduta do ex-presidente o enquadra em
descrições sancionadas pelo Código Penal, que criminaliza tentativas de
derrubar o regime constitucional pelo emprego de violência. Por essa razão,
estritamente jurídica, os ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal
Federal deveriam considerá-lo culpado.
A boa Justiça não age para se vingar. Não
responde nem se submete a pressões e paixões políticas. Equidistante das partes
que acusam e se defendem, aplica a lei após cotejo metódico entre argumentações
contraditórias. Seu objetivo ao punir os faltosos de hoje é inibir as
delinquências de amanhã.
O colegiado apropriado para condenar um
ex-presidente por articulação subversiva seria o plenário da corte, não a
turma. Excessos não deveriam se repetir na definição das penas e do regime do
cárcere.
Em seus votos, o ministro Alexandre de Moraes e seus quatro colegas dialogarão com o futuro. Um acórdão solar e equilibrado estimulará o respeito às regras eleitorais, a observância dos limites do poder e o abandono das conspirações militares.
Quatro décadas de devastação florestal
Por Folha de S. Paulo
Série histórica revela a imensa área do
Brasil atingida pelo desmatamento, que foi mais intenso até 2005
Entre 1985 e 2024, a destruição atingiu 1,17
milhão de km². Quase metade da perda de vegetação nativa ocorreu na amazônia
A cada ano, cerca-se de ansiedade a
divulgação de dados de desmatamento nos
biomas brasileiros, com amazônia e cerrado à
frente. Em porcentagem do território as perdas parecem pequenas, mas são
dezenas de milhares de quilômetros quadrados derrubados anualmente —e o impacto
acumulado disso, acabrunhador.
Para marcar o Dia da Amazônia, 5 de setembro,
a Folha compilou informações do levantamento da iniciativa não
governamental MapBiomas, de 1985 a 2024, realizado com base em imagens de
satélites. A série
aponta que o país perdeu 1,17 milhão de km² em quatro décadas,
superfície equivalente às da França e da Espanha somadas.
Áreas florestadas prestam serviços
ecossistêmicos essenciais. Um deles está na estocagem de carbono, que, uma vez
derrubada a mata, alcança a atmosfera na forma de gás carbônico (CO2) e agrava o
aquecimento global, impulsionando a crise do clima.
Também é preocupante a perturbação do ciclo
hidrológico garantido pelas florestas, que regularizam chuvas e vazão dos rios.
Assim, minoram os riscos de erosão, tempestades, enchentes e deslizamentos. O
MapBiomas emite alarme a respeito: em 40 anos, o Brasil perdeu 12% de áreas
úmidas, com destaque para o pantanal,
assolado por secas e incêndios nos últimos anos.
O avanço da agropecuária aparece como vetor
principal de desflorestamento, que vitimou de modo acentuado a região
amazônica. Lá está quase metade da perda de vegetação nativa nos últimos 40
anos. Em seguida, vem o cerrado, onde a superfície tomada por pastagens e
plantações saltou de 27% a 47% no período.
O ritmo da devastação foi mais intenso nas
duas primeiras décadas consideradas na pesquisa, a evidenciar que o Estado
despertou para implementar medidas de controle. No decênio seguinte, as taxas
de desmate começaram a cair, mas, a partir de 2015, nova tendência de alta se
manifestou.
Segundo dados do programa Prodes do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe),
em 2004, a área derrubada na amazônia foi de 27,7 mil km², cifra que foi
encolhendo até chegar a menos de um quinto disso, em 2014. Vieram então
repiques que chegaram a 13 mil km² em 2021, no governo de Jair
Bolsonaro (PL), recuando até 6,3 mil
km² em 2024,
Para o cerrado, a série histórica do Prodes
foi iniciada apenas em 2019. Ali também se observou expansão acentuada até
2023, quando a destruição atingiu 11 mil km². Em 2024, houve recuo para 8,2 mil
km² nesse que é o bioma mais devastado do Brasil depois da mata
atlântica —onde a maior parte do corte raso ocorreu antes de
1985.
A dois meses da COP30, o Planalto tem alguns
trunfos para exibir na contenção de sua principal fonte de emissões de gases do
efeito estufa. Uma análise retrospectiva mais atenta, contudo, deixa claro que
a governança ambiental é frágil no país e sujeita a vendavais políticos.
Xi mostra as cartas
Por Folha de S. Paulo
Líder chinês faz tour de force diplomático e
militar em encontro com Narendra Modi e Vladimir Putin
Donald Trump revelou ciúme ao declarar em tom
irônico que os EUA perderam Índia e Rússia para a China, ignorando seu papel no
roteiro
Um dos três mais poderosos dirigentes nos 76
anos de ditadura comunista na China, Xi Jinping vinha
mantendo certo distanciamento da balbúrdia geopolítica detonada pela volta
da Donald Trump ao
poder nos Estados
Unidos.
A recíproca, diferentemente do que ocorreu no
primeiro mandato do republicano, também era verdadeira. Na sua destrambelhada
guerra tarifária, Trump recuou do confronto direto com os chineses e adotou uma
política de esticar as negociações.
O conflito soa inevitável, todavia, dada a
posição de Washington como a potência estabelecida e de Pequim como a
desafiante.
Na semana que passou, Xi deixou o casulo e promoveu
um extraordinário exercício de demonstração de poder. Arregimentou aliados e,
de quebra, envergou um paletó à Mao e desfilou um renovado poderio militar.
Seu "tour de force" começou na
diplomacia, aproveitando-se de um erro do americano —que afastou de sua órbita
a emergente Índia,
punida com sobretaxas de importação por ser a segunda maior consumidora do
petróleo da Rússia de Vladimir
Putin.
O premiê Narendra Modi,
que até outro dia estava perto de um conflito fronteiriço com Xi, uniu-se ao
chinês e a Putin numa simbólica reunião da Organização de
Cooperação de Xangai (SCO).
As fotos dos três irmanados e falando de nova
ordem global correram o mundo, valendo mais como marca do que todas as 17
cúpulas do Brics,
que integram ao lado de Brasil e outros.
Mais, Xi sugeriu a criação de um banco de
desenvolvimento, ao estilo do existente sob o Brics, na SCO, ente de segurança
estratégica —assim militarizando decisões econômicas, ao estilo de Putin desde
a invasão da Ucrânia.
O russo ficou para o mais grandioso desfile
militar da história chinesa recente, que teve exposição de armas avançadas, ou
ao menos maquetes convincentes. Com designações escritas em bom alfabeto
latino, Xi apresentou novos mísseis nucleares capazes de alvejar os EUA.
O ditador atômico Kim Jong-un,
da Coreia do
Norte, que aliou-se a Putin e chegou a enviar soldados para a
guerra, também foi honrado no evento em que Xi celebrava os 80 anos do fim da
Segunda Guerra mostrando armas para evitar, ou travar, a Terceira.
Nesta sexta-feira (5), Trump revelou ciúme. "Parece que perdemos a Índia e a Rússia para a China mais profunda e sombria. Que eles tenham um longo e próspero futuro juntos!", tentou ironizar, ignorando seu papel no roteiro e explicitando os limites estreitos de sua perspectiva global.
Cenário é promissor para acordo Mercosul-EU
Por O Globo
Fator Trump é crítico para urgência. Com aval
da Comissão Europeia, perspectiva é assinatura até o Natal
As exportações brasileiras aos Estados Unidos
caíram 18,5% em agosto — trazendo os primeiros efeitos do tarifaço de Donald
Trump. Apesar de a balança comercial ter fechado com superávit de US$ 6,1
bilhões, 36% acima do ano passado, o resultado reforça a necessidade de
diversificar o destino das exportações. Foi, por isso, alvissareira a decisão
da Comissão Europeia, braço executivo da União Europeia (UE), de referendar o
acordo comercial com o Mercosul e submetê-lo à votação dos líderes dos 27
países do bloco. A expectativa é que o texto seja aprovado por pelo menos 15,
abarcando 65% da população, depois aclamado no Parlamento Europeu. O tratado
poderá ser enfim assinado em dezembro, em Brasília, na cúpula de presidentes do
Mercosul. Já era hora.
Quando a ideia de criar uma zona de
livre-comércio entre os maiores blocos da Europa e da América do Sul surgiu há
mais de 20 anos, já havia justificativas sólidas. As economias eram
complementares, por isso a abertura não seria tão traumática. Com prazos
longos, todos os setores teriam tempo para explorar oportunidades ou se
preparar para a maior competição. Infelizmente, interesses protecionistas
fizeram de tudo para adiar o acordo, mesmo depois que seus principais pilares
estavam firmados. Com a guerra tarifária promovida por Donald Trump, porém, de
repente ele ganhou urgência para ambos os lados. Diante das barreiras à entrada
no mercado americano, todos os países precisam de mercados alternativos para
seus produtos.
Há anos, Alemanha, Espanha e Holanda estão
entre os que defendem o livre-comércio com o Mercosul. A oposição maior sempre
veio da França. O agronegócio europeu, em especial o francês, teme a competição
e, desde o começo das negociações, fez de tudo para inviabilizar qualquer
acerto. Alguns argumentos não tinham sentido, como uma imponderável defesa das
tradições europeias. Outros são sensatos, como a restrição ao desmatamento da
Amazônia ou a exigência de regras equivalentes para produtos equivalentes. Os agricultores
conseguiram barrar os avanços, até Trump provocar uma convulsão no comércio
internacional.
Para aplacar o agronegócio europeu,
representantes da UE negociarão salvaguardas. Entre as possíveis demandas está
a suspensão da redução de tarifas para produtos do Mercosul por dois anos. Num
primeiro momento, a reação do governo brasileiro foi positiva. Salvaguardas
estão previstas no acordo. São um gesto político para os críticos mais
estridentes. E é legítimo os europeus apressarem sua regulamentação. Mas o
governo acertou ao avisar que qualquer coisa fora do que consta no texto já
acertado será barrada. Não se pode mais ceder aos protecionistas diante da
atual conjuntura.
Na análise de Bernd Lange, presidente da
Comissão de Comércio Internacional do Parlamento Europeu, a cada dia fica mais
claro que Trump não é um parceiro confiável. Para ele, o acordo firmado
recentemente entre UE e Estados Unidos é irreal. Para manter as tarifas
americanas em 15%, os europeus fizeram todo tipo de concessão — de abertura do
mercado para produtos industriais e agrícolas a investimentos nos Estados
Unidos. Houve gritaria no Parlamento Europeu. Ante esse quadro, a aposta agora
é o Mercosul. Lange espera “oferecer um maravilhoso presente de Natal para o
mundo”. Será, sem dúvida, um pacote festejado.
Reflorestamento será insuficiente para deter
o aquecimento global
Por O Globo
Árvores ajudam, mas sozinhas não capturam
carbono na quantidade necessária, revelam novos estudos
Não há solução fácil para conter o
aquecimento global. Durante muito tempo, acreditou-se que o reflorestamento
seria a chave para compensar as emissões de gases causadores do efeito estufa.
É evidente que o carbono capturado pelas árvores ajuda. Mas não resolve, como
acaba de demonstrar uma equipe de 16 cientistas, chineses, americanos,
franceses e britânicos em artigo publicado na revista científica americana
Science.
Os pesquisadores levantaram dados sobre a
oferta real de terras para reflorestamento e plantio de novas árvores, de modo
a calcular quanto elas poderiam absorver do carbono atmosférico. O resultado
ficou muito aquém do que esperavam. Os 389 milhões de hectares disponíveis,
área equivalente a dez Paraguais, retirariam 39,9 bilhões de toneladas de
carbono da atmosfera até 2050, “substancialmente abaixo das estimativas
anteriores”. Para ter uma ideia, só em 2024 foram emitidos 42 bilhões de
toneladas. E as áreas já comprometidas com projetos de reflorestamento somam
apenas 120 milhões de hectares.
Desses 120 milhões de hectares disponíveis
para projetos de conservação e restauração florestal, 71% estão em países de
média e baixa renda. As Américas respondem por 42% do total, e a Europa por
26%. Brasil, Rússia e Estados Unidos abrigam 36%. Só o Brasil, em função da
Amazônia, aparece com 20% dos espaços disponíveis para a captura de carbono por
florestas. É disparado o primeiro do ranking. Europa e América do Sul têm
projetos para reflorestar, respectivamente, 12,8% e 16,1% das áreas com
potencial, bem menos que a média global de 59%.
Os projetos de reflorestamento e conservação
ambiental não contribuirão para capturar carbono na medida das estimativas
otimistas não apenas em virtude de expectativas irreais sobre a disponibilidade
de terras, mas também por causa de limites intrínsecos ao sequestro de gases a
partir das árvores.
Empresas de petróleo têm investido bastante
em reflorestamento para compensar suas emissões. Pesquisadores britânicos
levantaram as reservas de petróleo e gás das 200 maiores empresas do setor,
calcularam quanto carbono elas contêm e a área florestal necessária para
compensá-lo. Concluíram, noutro estudo publicado na revista Nature, que seria
preciso cobrir de árvores todo o território da América do Norte e da América
Central. “O público pode entender esse tipo de compensação como uma espécie de
mágica, mas simplesmente não é”, afirma Nina Friggens, da Universidade de
Exeter, coautora do estudo.
As pesquisas trazem uma medida da limitação no uso de florestas para mitigar o aquecimento global. Sem deixar de seguir com projetos de conservação e reflorestamento, além de outras tecnologias usadas no sequestro de carbono da atmosfera, continua importante conter quanto antes as principais fontes de emissões de gases. Não há como fugir disso.
O Supremo precisa voltar à normalidade
Por O Estado de S. Paulo
Uma vez encerrado o julgamento dos golpistas,
não haverá mais desculpas para que o STF conserve os poderes excepcionais que
invocou para enfrentar a ameaça à democracia
O julgamento dos acusados de tramar um golpe
de Estado para aferrar Jair Bolsonaro ao poder, a despeito de sua derrota nas
urnas em 2022, pode representar não só um civilizado acerto de contas da
democracia brasileira com seus inimigos recentes. Este jornal espera que a
conclusão da Ação Penal (AP) 2.668 também seja o marco de transição para uma
nova fase do Supremo Tribunal Federal (STF) – que nada mais seria do que um
retorno da Corte ao leito da normalidade institucional. Jurídica e
simbolicamente, a punição exemplar dos eventuais condenados pela sedição
encerrará o período mais turbulento da história constitucional inaugurada em
1988, no qual a sobrevivência do próprio Estado Democrático de Direito
consagrado desde o preâmbulo da Constituição foi posta em xeque.
Não se deve minimizar a gravidade desse
risco. Jamais, desde o fim da ditadura militar, o Brasil havia assistido a um
ataque tão desabrido às instituições republicanas, com a tentativa deliberada
de subverter a vontade popular expressa no voto. Bolsonaro esgarçou o sistema
de freios e contrapesos, recorreu a expedientes típicos de regimes autoritários
e tentou arrastar o País para o abismo social e político – com prováveis e
severas consequências econômicas – exclusivamente porque, ora vejam, perdeu uma
eleição limpa. Nesse contexto, coube ao STF a faina de defender a democracia
contra agressões inauditas – processo em que, em nome de imperativos
excepcionais, lançou mão muitas vezes de expedientes que ultrapassaram o que
previam a lei e a Constituição.
Muitas dessas medidas excepcionais, se não
todas, seriam inaceitáveis em condições normais. Colegiada ou monocraticamente,
pela lavra do ministro Alexandre de Moraes, o STF determinou o cerceamento
prévio da liberdade de expressão de investigados, impôs medidas cautelares
questionáveis e conduziu inquéritos sob sigilo por tempo demasiadamente longo.
Mas também é verdade que, se a Corte tivesse sido leniente diante do golpismo
de Bolsonaro e sua grei, decerto o País estaria submetido hoje aos horrores de
um Estado verdadeiramente de exceção.
Como já sublinhamos neste espaço, a condução
dos inquéritos dos atos antidemocráticos e da AP 2.668, em linhas gerais, não
foi imaculada, mas o STF acertou muito mais do que errou. Foi firme quando
tantos outros foram tíbios. Resistiu a tremendas pressões e assumiu riscos não
triviais para, ao fim e ao cabo, preservar o que mais importa: o regime de
liberdade previsto na Constituição. A própria realização do julgamento ora em
curso é a prova de que a República resistiu ao assalto autoritário. Os que se
provarem golpistas serão condenados e punidos.
E é justamente porque a democracia venceu
seus inimigos que o STF precisa reconhecer que a era de excepcionalidades
contra o golpismo chegou ao fim. A preservação das instituições e das
liberdades democráticas não mais depende de expedientes judiciais
extraordinários. O desafio, agora, é outro: devolver a Corte ao leito da
normalidade institucional, como de resto exige a Lei Maior.
Na prática, isso significa mais contenção decisória
e sobriedade comportamental dos ministros. O STF não pode continuar a ser
percebido como um ator político, a cada dia emitindo juízos e projeções sobre o
futuro do País, sob pena de corroer a autoridade que lhe resta. Se nos últimos
anos foi inevitável que os ministros ocupassem espaços que os políticos, por
omissão, interesse direto ou conveniência, deixaram vagos, o movimento agora
passa a ser de retração. Nesse sentido, não deixa de ser auspiciosa a mudança
de ares na presidência da Corte. Edson Fachin, que toma posse este mês, é
reconhecido por sua discrição, diferentemente do atual presidente, o loquaz
ministro Luís Roberto Barroso – que não perdeu a chance de dar sua opinião
política ao dizer que o julgamento dos golpistas vai “encerrar os ciclos do
atraso no País”.
No geral, o STF cumpriu bem seu dever na
defesa da ordem constitucional democrática. Daqui em diante, sua grandeza está
em saber recuar. Mais perigoso do que o golpe derrotado seria um Supremo que,
inebriado pelo protagonismo, também se encantasse pela perspectiva de conservar
poderes excepcionais e resistisse à ideia de regressar ao lugar que a
Constituição lhe reserva.
O País do futuro do pretérito
Por O Estado de S. Paulo
Ao menosprezar o impacto transformador do
investimento prioritário nas crianças, o Brasil condena gerações à dependência
do Estado, à demagogia fácil e a um futuro medíocre
“O tempo é o mágico de todas as traições”,
escreveu Guimarães Rosa num dos contos reunidos no livro Primeiras Estórias. O
escritor mineiro traduzia ali o conflito perene entre o que é tido como melhor
no momento presente e as necessidades do futuro. A frase inspira perguntas
relevantes ao Brasil: que peso tem o futuro nas decisões tomadas hoje? Até onde
sacrificar o presente em nome de um futuro supostamente mais auspicioso? Quais
os riscos de jogar para o futuro a conta de um presente de aparente bonança,
impondo demandas adicionais às gerações seguintes? São perguntas cujas
respostas definem a condição de indivíduos, famílias e nações. No caso do
Brasil, suas lideranças parecem satisfeitas em sermos eternamente o “país do
futuro”. Aqui, enquanto é dificílimo alterar as regras da Previdência Social
para fazê-la caber no Orçamento, frequentemente falta dinheiro para creches e
livros didáticos nas escolas. Ou seja, o passado tem dinheiro garantido; já o
futuro, que espere dias melhores.
Recentemente, por exemplo, o Ministério da
Educação informou que será impossível comprar todos os livros necessários para
o próximo ano. Por falta de verbas, segundo alegou, ficarão de fora do Programa
Nacional do Livro Didático obras de História, Geografia, Ciências e Artes do
ensino fundamental. Não é possível deixar de atribuir essa situação a uma
indiferença generalizada em relação às crianças – que não votam. Não falta
dinheiro, como mostram os bilionários recursos destinados ao financiamento
partidário e a emendas parlamentares que enchem os cofres de prefeituras para
bancar obras eleitoreiras. O que falta é imaginar como será o futuro de
crianças mal e porcamente alfabetizadas.
Um estudo recente do Instituto Mobilidade e
Desenvolvimento Social mostrou que a probabilidade de que um brasileiro que
nasceu pobre morra pobre é alta. Menos de 2% das crianças cujos pais estão
entre os 50% mais pobres alcançarão a renda dos 10% mais ricos, e o mais
provável é que 66% delas ainda estejam na mesma faixa quando chegarem à fase
adulta. Registre-se que, segundo o IBGE, metade das crianças vive em situação
de pobreza (ante menos de 15% entre os idosos, que votam). Ou que apenas 40%
das crianças de 0 a 3 anos estavam matriculadas na creche no ano passado.
Enquanto isso, o Brasil gasta
proporcionalmente mais com idosos, embora a vulnerabilidade infantil seja maior
e o retorno social de investir na infância seja superior. Tempos atrás, ao
analisar o Benefício de Prestação Continuada (BPC), concedido a idosos e
pessoas com deficiência cuja renda mensal seja igual ou inferior a 1/4 do
salário mínimo, o economista Pedro Fernando Nery, colunista do Estadão, advertiu: trata-se do
programa assistencial mais caro do Brasil. Outro colunista deste jornal, o
economista Fabio Giambiagi, vem alertando há anos para o avanço insustentável
das despesas com aposentadoria. O gasto com o INSS, que era de 2,5% do PIB em
1988, chega hoje a cerca de 8%.
O envelhecimento acelerado complica tudo. Os
idosos representavam 4% dos brasileiros em 1980 e atualmente já são 10%.
Enquanto isso, a taxa de fecundidade caiu de 4 filhos para 1,6 no período. Tais
mudanças resultam no fim do chamado bônus demográfico – quando a população
jovem e adulta atinge o seu auge e o número de idosos ainda é pequeno, num
processo que costuma impulsionar a produtividade. O Brasil não educou
adequadamente essa população jovem, desperdiçou seu bônus demográfico e o ônus
chegará sem tardança. Em pouco mais de cinco anos, a população com idade
produtiva deve começar a cair, aumentando os dependentes – crianças,
adolescentes e idosos.
Essas mudanças etárias exigirão mais, e não
menos, escolhas difíceis, com prioridade aos grupos de dependentes com maior
poder de transformação futura. Mas seguimos menosprezando o investimento
prioritário nas crianças e resistindo a realizar mudanças duras nas regras da
Previdência. Com isso, condenamos gerações inteiras ao perverso ciclo de
dependência do Estado, à demagogia fácil e a um futuro medíocre.
O inferno astral de Milei
Por O Estado de S. Paulo
Província de Buenos Aires vai hoje às urnas
em um momento desafiador para o presidente libertário
Eleitores da província de Buenos Aires, a
mais populosa da Argentina, vão às urnas hoje para escolher 46 deputados e 23
senadores, o equivalente à metade dos assentos na Câmara e no Senado da
província.
Vistas como uma espécie de referendo sobre a
gestão do presidente Javier Milei, as eleições ocorrem num momento bastante
delicado para o libertário, que precisa aumentar a reduzida participação de seu
partido, A Liberdade Avança, no Legislativo, algo que a essa altura revela-se
bastante desafiador.
Às vésperas do pleito, o Senado argentino
derrubou por 63 votos a 7 o veto de Milei a um projeto de lei que amplia
proteções e gastos com pessoas com deficiência. Em agosto, a Câmara também
tinha rejeitado o veto. O governo, agora, considera judicializar a questão.
O veto se deu na esteira de um escândalo de
corrupção que envolve Karina Milei, irmã do mandatário e figura-chave do
governo – ela é a secretária-geral da Presidência. Em áudios, o agora ex-chefe
da Agência Nacional de Deficiência, Diego Spagnuolo, sugere que Karina cobrava
propina de fornecedores de medicamentos e insumos hospitalares para a rede
pública argentina. Advogado pessoal de Milei, Spagnuolo adorava ostentar sua
proximidade com o libertário.
Após um breve período de silêncio – pouco
usual para um líder verborrágico como Milei –, o presidente optou por atacar a
oposição e a imprensa. Atendendo ao Executivo, a Justiça proibiu a divulgação
dos áudios que comprometem Karina por entender que eles foram obtidos
ilegalmente. Para entidades jornalísticas e juristas, porém, trata-se de
censura.
Além de os áudios que implicam Karina
abalarem o discurso de “incorruptíveis” dos Milei, o libertário também enfrenta
problemas na área que fez dele uma estrela global: a economia.
Apesar de as medidas de austeridade do
presidente terem permitido ao país voltar a registrar superávits fiscais e
derrubar a inflação, que caiu do patamar anual de três para o de dois dígitos –
um feito inegável –, a Argentina segue vítima de um problema crônico: a falta
de dólares.
Em junho, em razão das dificuldades para
acumular a divisa norte-americana, o país se viu obrigado a pedir permissão
para descumprir meta de níveis de reservas líquidas em dólares, desobedecendo a
um dos compromissos que resultou na assinatura de um acordo de US$ 20 bilhões
com o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Agora, em meio ao escândalo de corrupção às
vésperas das eleições legislativas provinciais, uma prévia das legislativas
nacionais que ocorrem em outubro, o governo resolveu intervir no câmbio para
conter a desvalorização da moeda local, cuja cotação chegou próxima ao teto da
banda de 1.467 pesos por dólar estabelecida em abril. Diante da fuga de divisa
forte, Milei, que há pouco gargalhava sobre a possibilidade de intervir no
câmbio, teve de voltar atrás.
Eis o cenário para as eleições de hoje, que também são um teste para a oposição, cujo maior expoente, a ex-presidente Cristina Kirchner, encontra-se em prisão domiciliar. Ainda desmoralizada e desarticulada, essa oposição pode ter recebido um presente do próprio Milei. Com a palavra, as urnas.
O Sete de Setembro da soberania
Por O Povo (CE)
A democracia brasileira está fortalecida, mas
é preciso manter o estado de alerta, pois os mercadores do autoritarismo não
descansam nunca
Este 7 de Setembro, dia em que o Brasil
comemora a independência de Portugal, em 1822, acontece pela terceira vez tendo
como personagem central o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Nas outras duas ocasiões, em 2021 e 2022, ele
ainda exercia a presidência da República, com a capacidade de convocar grandes
manifestações. Hoje, encontra-se em prisão preventiva domiciliar e só pode
receber visitas autorizadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Além disso, até o dia 12 deste mês sairá a
sentença que vai absolvê-lo ou condená-lo por tentativa de golpe de Estado,
entre outros crimes, que podem lhe custar até 40 anos de reclusão.
Mas os militantes do bolsonarismo estão
convocando manifestações para o dia 7 de setembro, tendo como principal tema a
anistia aos golpistas do 8 de janeiro.
Não é possível prever qual será o tamanho da
manifestação, pois os atos recentes são mais esvaziados, em comparação com as
multidões que Bolsonaro conseguia mobilizar quando estava na Presidência. Além
disso, a esquerda também se movimenta para levar simpatizantes às ruas, como o
mote da soberania nacional.
Portanto, a situação atual é bem diferente da
conjuntura anterior, quando bolsonarismo estava em uma ofensiva que parecia
irrefreável em sua tentativa de submeter as instituições. Hoje, a principal
preocupação da extrema direita é livrar seu principal líder da cadeia.
Na manifestação de 2021, Bolsonaro fez um
discurso agressivo, chamando o ministro Alexandre de Moraes de
"canalha" e avisando que "nunca" seria preso.
No ano seguinte, véspera da eleição
presidencial, Bolsonaro foi além. Em um ato com milhares de pessoas, em
Brasília, ameaçou desfechar um golpe. Ele disse que, ou o presidente do STF, na
época Luiz Fux, "enquadrava o seu ministro" (Alexandre de Moraes) ou
o Supremo sofreria "aquilo que nós não queremos".
Não por acaso, o procurador-geral da
República, Paulo Gonet, sustentou em sua apresentação durante o julgamento do
"núcleo crucial" do golpe, que Jair Bolsonaro utilizou o 7 de
Setembro de 2021 para iniciar a a escalada contra as instituições democráticas.
Quanto a 2022, Gonet destacou que Bolsonaro
utilizou o aparato estatal para transformar o Bicentenário da Independência em
comício eleitoral. O então presidente, segundo Gonet, ainda reforçou a
"narrativa" de fraude eleitoral e continuou a atacar as instituições.
A diferença visível entre o 7 de setembro
deste domingo e os anteriores acima citados, é que a democracia saiu
fortalecida dessa refrega. E a forma como o Brasil está lidando com o problema,
protegendo as instituições e levando os golpistas ao banco dos réus, é mostrado
ao mundo como exemplo de maturidade democrática. Um País que sabe proteger a
sua soberania contra ataques externos e internos.
A democracia brasileira está fortalecida, mas é preciso manter o estado de alerta, pois os mercadores do autoritarismo não descansam nunca.
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