domingo, 7 de setembro de 2025

Que é a filosofia? Por Antonio Gramsci*

Uma atividade puramente receptiva ou quando muito ordenadora, ou uma atividade absolutamente criadora? Deve-se definir o que se entende por “receptivo”, “ordenador”, “criador”. “Receptivo” implica a certeza de um mundo exterior absolutamente imutável, que existe “em geral”, objetivamente, no sentido vulgar do termo. “Ordenador” aproxima-se de “receptivo”: se bem que implique uma atividade do pensamento, esta atividade é limitada e estreita. Mas o que significa “criador”? Significara que o mundo exterior é criado pelo pensamento? Mas por qual pensamento e de quem? Pode-se cair no solipsismo e, na realidade, toda forma de idealismo cai necessariamente no solipsismo. Para escapar ao solipsismo, e, ao mesmo tempo, as concepções mecanicistas que estão implícitas na concepção do pensamento como atividade receptiva e ordenadora, deve-se colocar o problema de modo “historicista” e, simultaneamente, colocar na base da filosofia a “vontade” (em última instancia, a atividade pratica ou política), mas uma vontade racional, não arbitrária, que se realiza na medida em que corresponde as necessidades objetivas históricas, isto é, em que é a própria história universal no momento da sua realização progressiva. Se esta vontade é inicialmente representada por um indivíduo singular, a sua racionalidade é atestada pelo fato de ser ela acolhida por um grande número, e acolhida permanentemente, isto é, de se tornar uma cultura, um “bom senso”, uma concepção do mundo, com uma ética conforme a sua estrutura. Até a filosofia clássica alemã, a filosofia foi concebida como atividade receptiva ou, no máximo, ordenadora; isto é, foi concebida como conhecimento de um mecanismo que funcionaria objetivamente fora do homem. A filosofia clássica alemã introduziu o conceito de “criatividade” do pensamento, mas num sentido idealista e especulativo.

Ao que parece, somente a filosofia da práxis realizou um passo à frente no pensamento, com base na filosofia clássicas alemã, evitando qualquer tendência para o solipsismo, historicizando o pensamento na medida em que o assume como concepção do mundo, como “bom senso” difuso no grande número (e esta difusão não seria concebível sem a racionalidade ou historicidade) e difuso de tal maneira que se converte em norma ativa de conduta. Deve-se entender criador, portanto, no sentido “relativo”: no sentido de pensamento que modifica a maneira de sentir do maior numero e, em consequência, da própria realidade, que não pode ser pensada sem a presença deste “maior numero”. Criador, também, no sentido em que ensina como não existe uma “realidade” em si mesma, em si e para si, mas em relação histórica com os homens que a modificam, etc.

*Antonio Gramsci (1891-1937) Cadernos do Cárcere, p.202, v.1 – Editora Civilização Brasileira, 2006.

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