quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Falta clima de Copa ao julgamento de Bolsonaro. Por Wilson Gomes

Folha de S. Paulo

Com sensação de jogo jogado, bolsonarismo aposta em levar a partida ao tapetão da anistia

Tratando-se de um julgamento, é claro que reviravoltas sempre podem pintar por aí, mas a expectativa das principais torcidas políticas no Brasil hoje é que nada disso deva acontecer. O julgamento de Bolsonaro e de seu círculo militar mais íntimo é um divisor de águas na atribulada história da nossa democracia, não resta dúvida.

Para os torcedores, no entanto, não está mobilizando emoções coletivas, com milhões diante da TV, o coração saindo pela boca, como aconteceu em outros momentos igualmente decisivos da vida política recente, a exemplo do julgamento do impeachment e das sessões mais dramáticas da Operação Lava Jato.

O contraste não poderia ser maior. De um lado, a democracia brasileira fazendo história ao responsabilizar penalmente um ex-presidente e militares da mais alta patente por crimes contra a ordem republicana. De outro, a ausência daquele clima de Copa do Mundo a que nos acostumamos na política nacional, com cada cidadão vestindo as cores de um time, torcendo pelo resultado que lhe interessa e acompanhando cada detalhe dessa final decisiva.

Por que isso acontece? Porque as torcidas políticas têm, até o momento, a sensação de "jogo jogado". Um lado apenas aguarda a confirmação formal da condenação que já dá como certa para iniciar a festa. No campo contrário, ainda se esperneia, mas por puro reflexo, já convencido de que esse jogo está perdido. Faz isso enquanto escala os jogadores e elabora táticas para tentar virar o resultado em outro lugar: o tapetão da anistia.

Sob vários aspectos, um julgamento é literalmente uma competição de narrativas. Os fatos, em si, não falam. Encaixados em cadeias plausíveis de causas e consequências é que dizem alguma coisa, tornam-se coerentes —contam, enfim, uma história. Os protagonistas dos tribunais tratam de compor, com as mesmas peças, diferentes mosaicos, quadros em que cada elemento ganha sentido. A expectativa que em geral acompanha essas situações é sobre qual, afinal de contas, será a história mais convincente, aquela em que se apoiará o juízo dos magistrados e da opinião pública

Mas não é o que ocorre agora. Os espectadores não esperam surpresas ou reviravoltas.

Os bolsonaristas, por exemplo, que deveriam estar esperando provas ou revelações capazes de inocentar seus líderes, não demonstram ansiedade. Eles acreditam que já sabem o que ocorreu e têm uma tese indiscutível sobre o julgamento. Na narrativa canônica do grupo, não houve golpe. Se houve, Bolsonaro e os seus generais não estavam envolvidos. O julgamento é uma farsa política, um ato de revanche de um Judiciário autocrático contra um governo popular. A condenação já estava escrita antes mesmo da investigação.

Está aí o único script possível no grupo, o enredo no qual todos os fatos devem caber. E, se algo não couber, que se danem as evidências: histórias sempre darão uma surra nos fatos toda vez em que entrarem em conflito com eles. Nada pode ser dito, apresentado ou provado naquele tribunal que desafie a narrativa já aceita e consolidada.

Nada há de singular nesse procedimento: é da natureza de grupos coesos em situação de extrema competição política se comportar assim, principalmente quando se convencem de estar sob grave ameaça. Nada que seja dissonante dos pilares das crenças fundamentais do grupo sobre os acontecimentos pode ser considerado ou assimilado. Nenhuma prova tem o condão de convencer, nenhum fato é capaz de persuadir. Cada membro do grupo passa a ser um vigilante: exige adesão dos demais, pune quem se desvia e repele com dureza qualquer dissidente.

Nessa circunstância, repetir a mesma história e reiterar as mesmas crenças não têm a função de persuadir a sociedade ou a opinião pública. A percepção do grupo é que os "de fora" e os "do outro lado" é que são dogmáticos, imunes aos fatos e tendenciosos —não vale a pena perder tempo com eles. O mantra deve ser repetido, sim, mas como liturgia e profissão de fé. Sua função é reforçar a coesão e a disciplina do grupo.

Afinal, como se sabe em política e em religião, quanto mais prospera a narrativa de perseguição e complô, mais crescem a submissão ao grupo, a adesão incondicional às suas normas e a intolerância contra quem discorda. Como os bolsonaristas já dão por certa a condenação, a repetição das crenças sobre perseguição e inocência tem como objetivo simplesmente garantir que ninguém largue a mão de ninguém.

Pelo menos até que chegue o tempo da desforra e a partida possa ser jogada de novo —quem sabe em outro campo, com outras regras e outro juiz.

 

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