quarta-feira, 10 de setembro de 2025

O sorriso amarelo de Ulysses. Por Carlos Melo

O Globo

Hoje é o Legislativo que define um jogo de má qualidade

Questionado sobre a qualidade do Congresso Nacional, Ulysses Guimarães, segundo contam, aconselhou a “esperar pelo próximo”, que, no seu entender, seria pior. A frase entrou para o folclore político e hoje pesa como maldição. As últimas legislaturas têm feito indagar se é falso o fundo do poço da política brasileira.

Em 2026, o eleitor precisará fazer muito esforço para piorar o que aí está. A mera manutenção já será elemento de deterioração. Difícil imaginar períodos em que interesses particularistas tenham se alinhado de modo tão pernicioso quanto agora. O Congresso, sobretudo a Câmara dos Deputados, é o centro da crise brasileira.

A dominância do Executivo sobre a agenda legislativa distorcia o sistema, esvaziava o Parlamento. A distorção mudou de lado. Hoje é o Legislativo que define um jogo de má qualidade. Imprescindível para a democracia, o Congresso precisa demonstrar que não é útil apenas para si. Sem isso, põe em risco a própria democracia.

Na última semana, isso ficou gritante. Interesses da extrema direita, voltados a livrar Jair Bolsonaro da condenação no Supremo Tribunal Federal, foram ao encontro dos interesses do Centrão e delinearam o que pode vir a ser um desastre institucional.

Articula-se uma agenda que reúne anistia ao golpe com a blindagem parlamentar; alterações na Lei da Ficha Limpa e até intervenção no Banco Central. Além, é claro, da construção da candidatura oposicionista à Presidência da República que depende do consentimento da família Bolsonaro, embaixadores do iluminismo sombrio no país.

O abandono da pauta econômica e social completa o quadro: a regulamentação da reforma tributária vai a passo de cágado; a discussão da revisão de incentivos e desonerações a setores empresariais parece estar sob veto político; a isenção do Imposto de Renda até R$ 5 mil é analisada com oportunismo e incomum má vontade.

Ao mesmo tempo, inúmeros casos de defesa corporativa batem à porta, passando ao largo do regimento das Casas e de comissões de ética jamais tão pouco atuantes. Mesmo os esdrúxulos casos dos amotinados na Câmara ou a atuação de Eduardo Bolsonaro — que, nos Estados Unidos, conspira contra o país — são tratados com vulgar desfaçatez.

Não se trata apenas de falta de pulso do presidente da Câmara. Definitivamente, Hugo Motta não é um líder, condutor político de processos de transformação histórica e aperfeiçoamento institucional. Mas seu problema maior reside em, antes, ser (e aceitar ser) compreendido como representante de interesses patrimonialistas definidos por caciques que o apadrinharam e que, de fato, estão acima dele.

Desse alinhamento, conforma-se uma maioria devastadora, autônoma em relação à sociedade, crente de que seu poder se sobrepõe à própria Constituição, alvo recorrente de ameaças feitas em nome da conveniência dessa maioria.

Não espanta: fundos partidário e eleitoral e emendas ao Orçamento com verbas às mancheias fizeram do curral político a bússola que norteia novos coronéis, alheios às transformações do mundo que os rodeia. Não devem satisfação à opinião pública nacional; basta-lhes o clientelismo.

O velho PMDB — de Ulysses Guimarães e mesmo depois — não se resumia a apenas um centro de barganha fisiológica, troca de cargos e verbas por apoios. Configurava-se também como núcleo ativo na mediação de conflitos e na garantia da governabilidade. Sabedores da natureza do Estado, seus quadros tinham noção de limites institucionais. Ocasionalmente, seus interesses coincidiam com o interesse geral.

Em tudo diferente do Centrão, esse centro político está morto. Ficou no passado, que, não se sabia, não era tão feio quanto pintávamos. Com piora crescente, o futuro previsto por Ulysses chegou. De onde estiver, o deputado sorri amarelo, com o desalento de quem acertou quando preferiria ter errado.

 

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