quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Essencial à democracia – e imperfeito. Por Nicolau da Rocha Cavalcanti

O Estado de S. Paulo

O Ministério Público almeja que o STF o autorize a violar, sem rito e sem controle, a garantia constitucional do sigilo

O País tem uma trajetória viva de golpes e de tentativas de golpes. Parece haver sempre uma tentação autoritária rondando a nossa política. No entanto, o autoritarismo está não apenas na política – como se fosse distante do nosso cotidiano. Ele está presente em nossos costumes, em nossa mentalidade, em nossa cultura – também na jurídica. Ele permeia profissões, corporações, instituições – também aquelas benéficas para a sociedade, também aquelas indispensáveis ao regime democrático. Refiro-me aqui, em concreto, ao Ministério Público.

Não basta falar de democracia quando interessa ao nosso lado, mas sem modificar nosso comportamento quando as normas democráticas trazem limites, lembram deveres ou estabelecem ritos. Democracia não é uma fórmula vazia que se preenche com carteirada ou com o grito da última eleição. É, em primeiro lugar, respeito à Constituição.

É de estarrecer, por exemplo, a manifestação do Ministério Público Federal (MPF), no RE 1.537.165/SP, negando a garantia constitucional do sigilo fiscal e financeiro. Sem nenhum rubor, ele postula que as autoridades persecutórias possam requisitar dados ao Coaf sem autorização judicial. Não é “apenas” que o Ministério Público venha adotando, em escala industrial, práticas que ignoram o sigilo fiscal e financeiro, o que, por óbvio, é um absurdo constitucional. Com todas as letras, o MPF almeja que o Supremo Tribunal Federal (STF) o autorize a violar, sem rito e sem controle, a garantia constitucional do sigilo.

No RE 1.537.165/SP, foram reconhecidas duas questões com repercussão geral. O Ministério Público pode, sem autorização judicial, requisitar dados sigilosos às autoridades fiscais? O compartilhamento de dados fiscais pressupõe a instauração de procedimento de investigação penal formal? Pois bem, o MPF lê a Constituição de 1988 e entende que não precisa de autorização judicial para requisitar dados sigilosos ao Coaf e que tampouco necessita haver uma investigação formal para que ele possa acessar tais dados.

Em tal compreensão, destacam-se, entre outros, dois grandes problemas: (i) desrespeito à Constituição e ao Judiciário; e (ii) atropelo da legalidade.

Prevista na Constituição, a garantia do sigilo de dados fiscais e financeiros é uma decisão fundante dos limites do poder do Estado. Para entrar na esfera da intimidade e da privacidade, o órgão de persecução criminal precisa da autorização do Judiciário. É antirrepublicano e antidemocrático – autoritário e inconstitucional – tratar a necessidade de intermediação da Justiça como obstáculo para a efetividade do trabalho persecutório.

Segundo. O trabalho de inteligência do Coaf nasce dos dados. O chamado Relatório de Inteligência Financeira (RIF) espontâneo é constitucional precisamente porque é produzido e enviado de acordo com uma normativa impessoal previamente estabelecida. Ele não nasce de uma vontade persecutória. A lei determina que haverá comunicação do Coaf às autoridades quando o órgão concluir pela existência de crimes ou de fundados indícios de sua prática, e não quando as autoridades de persecução criminal requisitarem – o que é completamente diferente. Se o sigilo fica à mercê de quem investiga, não existe sigilo.

Uma advertência. Este texto não é um ataque ao MPF ou a seus membros, numa tentativa negacionista de ignorar sua diária, efetiva e fundamental contribuição ao Estado Democrático de Direito. Temos, enquanto sociedade, muito a agradecer ao Ministério Público. O ponto é outro. Onde há cultura autoritária – e, no Brasil, há cultura autoritária –, é quase automático transigir com limites, deveres e ritos. Em vez de compromisso com a democracia, a observância da legalidade é vista como empecilho burocrático – como é evidente na manifestação do MPF no RE 1.537.165/SP.

Daí decorre uma consequência prática. Por mais equivocada e absurda que seja, não devemos ficar surpresos com a posição do MPF sobre a garantia do sigilo. O fato de a Constituição atribuir ao Ministério Público a missão de defesa da ordem jurídica e do regime democrático não faz com que ele seja sempre equilibrado ou que tenha sempre a posição mais ponderada. Sua contribuição ao Direito não advém de uma suposta infalibilidade – da qual não dispõe –, mas de sua participação no contraditório.

Ver o Ministério Público como fiscal (perfeito) da lei é uma ingenuidade, contrária às evidências e fonte de sérios desequilíbrios institucionais. Seus membros são pessoas normais, com as limitações, enviesamentos, rigidezes e preconceitos inerentes à condição humana. O Judiciário não deve e não pode tratá-los como infalíveis.

O MPF talvez não tenha se dado conta, mas, ao defender a prescindibilidade do Judiciário na requisição de dados sigilosos, escancarou a razão de fundo para a Constituição não lhe conceder acesso direto a tais dados. A atividade estatal persecutória não tem nada de isenta, obnubilando até mesmo a compreensão das garantias mais básicas. A democracia também é feita dizendo não – com fundamento, mas sem medo – ao Ministério Público.

 

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