Valor Econômico
Os desafios que se apresentam são enormes e nenhum país, por mais poderoso que seja, estará imune
Como está a economia mundial? A resposta, como observou recentemente meu colega Tej Parikh, é que ela está confusa. Isso não deveria ser uma surpresa. Além de algumas incertezas macroeconômicas evidentes - como as preocupantes tendências de déficits e dívidas fiscais em muitos países importantes, para citar um exemplo -, estamos testemunhando dois grandes acontecimentos: a abdicação dos EUA de sua hegemonia global e o surgimento descontrolado daquilo que poderá se revelar a mais importante de todas as inovações tecnológicas da humanidade, a inteligência artificial. Não é de admirar que estejamos confusos. O notável, porém, é o quão bem a economia mundial tem lidado com os choques e a incerteza, pelo menos até agora.
Esse é o tema central tanto do discurso de
abertura de Kristalina Georgieva, diretora-gerente do Fundo Monetário
Internacional (FMI), nas reuniões anuais deste ano em Washington, quando do
mais recente relatório Perspectivas da Economia Mundial. A grande conclusão é
que o FMI prevê uma desaceleração modesta do crescimento em 2025 e em 2026. Desnecessário
dizer que qualquer conclusão desse tipo carrega um alto grau de incerteza. Mas
ela é coerente com o que se observou até agora neste ano, apesar da
turbulência.
Por que a economia mundial tem se mostrado
relativamente vigorosa? Georgieva (e o Perspectivas da Economia Mundial)
oferecem quatro explicações: tarifas menos severas do que se temia; a
capacidade de adaptação do setor privado; condições financeiras favoráveis; e
melhores fundamentos políticos.
Primeiro, é verdade que as tarifas acabaram ficando
um pouco abaixo do que havia sido anunciado no “dia da libertação” de Donald
Trump, 2 de abril de 2025. No fim das contas, argumenta Georgieva, “a tarifa
média ponderada pelo comércio dos EUA caiu de 23% em abril para 17,5% agora”.
Além disso, surpreendentemente, houve pouca retaliação. Ainda assim, essas
tarifas continuam elevadas.
Em segundo lugar, o setor privado reagiu de
forma positiva. Isso se mostrou especialmente verdadeiro no curto prazo. Como
observa o relatório semestral do FMI, “famílias e empresas anteciparam seu
consumo e os investimentos em antecipação às tarifas mais altas”. Além disso,
atrasos na implementação permitiram a exportadores e importadores absorver
parte dos ajustes de preços. Ainda assim, o repasse está ocorrendo. Tarifas são
um imposto nocivo: elas acabam distorcendo a estrutura e o crescimento da
produção mundial.
Em um momento como este, em que o sistema
mundial está sendo virado de cabeça para baixo, é perigoso ter confiança sobre
o que vem pela frente. Como observa o Fundo Monetário, há muitas fragilidades,
sobretudo nos déficits e nas dívidas fiscais
Em terceiro lugar, os mercados de ações
continuam aquecidos e as condições financeiras, de modo geral, seguem
favoráveis. Parte disso se deve, especialmente nos EUA, ao boom dos
investimentos em inteligência artificial. Ainda não se sabe, porém, se esse
movimento tem bases sólidas ou se é o tipo de bolha que tantas vezes acompanhou
inovações desse tipo.
O quarto ponto parece se aplicar
especialmente às economias emergentes. Muitas delas aprenderam com as
experiências dolorosas do passado e, por isso, vêm adotando políticas fiscais e
monetárias mais disciplinadas do que antes. Esse é o tema do segundo capítulo
do Perspectivas da Economia Mundial. O problema é que as condições externas
dificilmente ficarão mais favoráveis para muitas dessas economias. A China
enfrenta hostilidades dos EUA e fragilidades internas. Brasil e Índia foram
atingidos pelas tarifas americanas escandalosamente altas de 50%. No caso do
Brasil, isso se deve em grande parte ao fato de que, relembrando suas ditaduras
militares, o Judiciário do país condenou seu aspirante a ditador, Jair
Bolsonaro, a 27 anos de prisão. Por que Trump se incomoda tanto com isso?
Em um momento como este, em que o sistema
mundial está sendo virado de cabeça para baixo, é perigoso ter confiança sobre
o que vem pela frente. Como observa o FMI, há muitas fragilidades, sobretudo
nos déficits e nas dívidas fiscais. Ele observa, por exemplo, que a relação
entre o saldo fiscal do governo geral dos EUA e o PIB deve piorar em 0,5 ponto
porcentual em 2026, em grande parte devido à aprovação do “projeto de lei
grande e lindo” [de Trump], apesar de uma compensação estimada em cerca de 0,7
ponto porcentual do PIB proveniente das receitas tarifárias projetadas”. Isso
também torna pouco provável uma redução significativa dos desequilíbrios em
conta corrente no mundo, embora o FMI preveja quedas modestas.
Isso, por sua vez, seria o prenúncio de novas
escaramuças na guerra comercial global, especialmente entre os EUA e a China.
Além da tendência de Trump de ver qualquer superávit comercial bilateral como
prova de que o parceiro está “passando a perna” nos EUA, a China também é vista
como uma concorrente estratégica em todos os campos. Os EUA estão particularmente
irritados com o fato de Pequim usar seu peso comercial nessas disputas.
Scott Bessent, secretário do Tesouro dos EUA,
acusou a China de tentar prejudicar a economia mundial depois que o país impôs
amplos controles sobre as exportações de terras raras e minerais críticos.
Então, como Bessent imagina que se sentem as vítimas americanas da guerra
comercial que está sendo travada contra elas?
As reuniões do FMI e do Banco Mundial são uma
oportunidade não apenas para considerar o estado geral da economia mundial e os
riscos evidentes de novas perturbações, mas também para concentrar atenção na
situação dos países e das pessoas mais pobres. O relatório Perspectivas da
Economia Mundial observa que “as economias mais pobres do mundo, incluindo
aquelas que sofrem com conflitos prolongados, correm risco particular de ver
seu ímpeto de crescimento desacelerar”. Uma das razões para isso são os cortes
em doações e empréstimos concessionais. O fechamento abrupto da Usaid deverá
ser particularmente significativo para a saúde. Um estudo preocupante publicado
na “The Lancet” conclui que o desmantelamento da agência “poderá resultar em
mais de 14 milhões de mortes adicionais até 2030”.
O FMI e o Banco Mundial foram criados em 1944
para estabelecer o princípio da cooperação econômica global. A necessidade
disso certamente não desapareceu. É encorajador que os EUA continuem sendo
membros. Os desafios que se apresentam são enormes, não só pela necessidade de
manter o progresso econômico em um momento de tamanha turbulência geopolítica.
Nenhum país, por mais poderoso que seja, estará imune se, ao contrário, o
sistema econômico global entrar em colapso. (Tradução de Mário Zamarian)
*Martin Wolf é o principal
comentarista econômico do “Financial Times”.
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